REALTEC - TECNOLOGIA A SERVIÇO DA VIDA
Marlon não sabia, mas Tessa sentiu sua presença ao lado da cama por todos os longos dias em que viajou em estado de coma na UTI do Hospital Albert Einstein. Ela sentiu o seu desespero quando teve o terrível AVC que a fez cair da bicicleta quando já estava chegando ao portão de casa. Aquele foi seu último passeio ciclístico diário ao lado do marido. Um costume ininterrupto por quase uma década. Ela estava desacordada, mas o sentiu pegando-a nos braços, ajeitando-a no carro e a levando às pressas pelas ruas entupidas do difícil rush paulistano.
Marlon não sabia, mas ela participou de toda a sua dor, já que por si não teve nenhuma. Tudo o que ela sentia era um nada do tamanho do mundo. E a dor do companheiro.
Tessa só sentiu dor quando, de repente, Marlon parou de se importar. Parece que tinha desistido. Ela acreditava piamente que iria sair daquela situação, mas algo dizia que ele não cria mais nisso.
Tal como previra, de uma hora para outra, Tessa se viu livre das amarras da doença e pôde voltar para casa. Sozinha, já que nem para buscá-la no hospital Marlon prestou. Sua apatia era insuportável.
Mesmo com todo o ressentimento por tanto descaso, ela o procurava, mas a fleuma dele sempre vencia o esforço dela. E assim, viveram juntos e separados por um tempo.
Algo no comportamento de Marlon, no entanto, chamou a atenção de Tessa – suas escapadelas diárias e misteriosas na boquinha da noite - algo que não era muito de seu feitio. Por experiência, Tessa sabia que boa coisa não deveria ser. Seu instinto feminino detectava cheiro de outra mulher na história. Um dia decidiu segui-lo, e o que viu causou-lhe assombro. Não poderia estar mais enganada a respeito do homem reto que julgava conhecer tão bem. O marido estava frequentando a Realtec. Imaginem só. Justo ele, que sempre foi crítico ferrenho desse tipo de empreendimento. Uma empresa feita para alienar e arrancar dinheiro dos incautos, como ele mesmo dizia.
A Realtec era uma empresa de software holandesa que uns dez anos atrás havia se fixado num dos prédios mais luxuosos da Avenida Paulista e seu produto era vendido para os clientes como a mais pura e genuína realidade que a tecnologia já conseguira produzir. Não era uma reles produtora de realidade virtual, como se podia pensar, mas uma agência de viagens insólitas e inimagináveis - pelo menos era isso o que ela pregava. E o sucesso só aumentava. A cada produto novo lançado, a empresa se consolidava mais e mais como a gigante do ramo e reinava soberana com suas ações explodindo em Wall Street.
Seu produto mais vendido era o Realsex. Consistia no seguinte: o cliente entra em uma luxuosa cabine, assenta-se em uma confortável poltrona, prende dois chips nas frontes – um na direita e outro na esquerda – e lentamente vai sentindo um choquezinho elétrico de aproximadamente nove volts, até que sua mente se desliga desse mundo e o leva para um outro, mil vezes mais interessante. Lá ele é o que sua mente quiser que ele seja. Aqui, ele pode ser o sujeito mais feio do mundo; lá ele pode ser o mais formoso, tão bonito quanto o maior galã de Hollywood. Idem para as mulheres. E é nesse mundo que os encontros amorosos entre deuses e deusas ocorrem. Lá não há preconceito. Cada um é o que quiser ser. Com pessoas reais – pessoas de toda a parte do mundo conectadas “on demand”. Todas lindas, maravilhosas e superafins. Livres de compromissos e doenças venéreas.
Na sequência, vinha o Realspace. Esse era para os Nerds? Que nada! Quem não gostaria de fazer uma viagem pelo espaço, visitar os anéis de Saturno, conhecer um buraco negro de perto sem correr risco algum de ser engolido, passear pelas luas de Júpiter sem tirar os pés do chão? A empresa jurava que não era realidade virtual pura e simples. A interação era real, proporcionada por imagens tridimensionais sensíveis a toque transmitidas por câmeras hiper-realistas extrassensoriais colocadas pela Realtec em cada um dos locais disponíveis, que eram muitos.
Um dos serviços mais relevantes, no entanto, de utilidade pública comprovada, era o Realfind. Por intermédio dele muitas pessoas desaparecidas foram encontradas. Parentes que perderam o contato se reaproximaram e o programa acabou se tornando uma forma de amigos e familiares poderem se abraçar e até sentir o cheiro uns dos outros a milhares de quilômetros, sem precisar viajar. A conexão se dava de forma similar ao Realsex, só que com outra finalidade, mais social, digamos.
Havia vários outros tipos de serviços, mas o mais polêmico e criticado, principalmente por Marlon, era o Real-life. Nele as pessoas poderiam encontrar um avô, um tio, o pai, a mãe, qualquer pessoa. Até aí tudo bem, mas o que incomodava as pessoas, e atraía para a Realtec graves acusações de engodo era o fato de que o usuário poderia, (pasmem!), por meio do Real-life, encontrar essas pessoas depois de mortas. Poderia conversar com elas, tocá-las, abraçá-las beijá-las, desde que houvesse consentimento mútuo, é claro. A Realtec jurava que tinha tecnologia suficientemente avançada e hábil a localizar espíritos de pessoas desencarnadas, desde que o usuário quisesse, de fato, com muita força de vontade, reencontrá-las. Isso causava espanto e incredulidade nas pessoas do mundo todo, principalmente porque, ao contrário dos outros produtos, nesse caso, a Realtec não explicava como isso seria possível. Esse programa era pioneiro no sentido de explorar o mundo metafísico, e como se sabe, tudo o que é novo assusta. Além disso, o sistema capitalista que criou a Realtec e ditava a regra entre seus endinheirados clientes, era essencialmente materialista.
Em breves linhas, essa era a Realtec - tão criticada por Marlon, e agora frequentada tão assiduamente por ele. Isso foi o que Tessa constatou. Mas ela queria saber mais. Qual era o setor que ele estaria frequentando? No que estaria ele tão interessado ao ponto de mudar tão drasticamente assim, sua opinião? Seria sexo? O Universo? Ela não poderia imaginar.
Foi assim, de forma sutil e discreta, que foi se esgueirando entre a multidão que se espremia para entrar nas dependências do prédio, que seguiu de perto o marido sem perdê-lo de vista. Até que ele parou, passou a digital no sensor e se dirigiu para uma das cabines - para a total surpresa da mulher - do programa mais criticado e repudiado por ele: o Real-life. Daí para a frente ela não viu mais nada.
Tessa saiu da Realtec totalmente desnorteada. O que estava acontecendo, afinal? Que tinha dado na cabeça de Marlon? Ele não estava apenas esquisito, estava maluco. O Real-life era um disparate total. Só maluco acreditava naquilo. E agora seu marido, um homem prático, razoável, inteligente, frequentando esse lixo tecnológico...
- Tessa! Tessa!
Ela não ouvia seu nome pronunciado por aquela voz fazia um bom tempo, mas tinha certeza de que era Marlon chamando desesperadamente por ela.
- Espere Tessa! Ah, meu Deus!
- Pirou de vez o coitado – pensou ela. Mas antes que pudesse concluir qualquer outra coisa, foi ofegantemente abraçada por ele até quase sufocar.
- Tessa, meu amor! Eu sabia! Sabia que conseguiria te encontrar novamente.