Vistopia

Em um mundo fictício, não muito diferente do nosso, um adolescente encontra por acaso um cachorro na rua.

O cachorro é bastante grande, escapou de uma fazenda de criação, onde vivem animais da mesma espécie que a sua, selecionada pelo rápido crescimento e alta quantidade de músculos e gordura.

O animal tem uma expressão triste no rosto, que deixa o adolescente impactado. Sente medo do grande animal, mas é incapaz de desviar o olhar.

Nunca tinha visto um cachorro pessoalmente antes. Apenas nas propagandas da televisão e nas ilustrações na caixa de leite, nos pacotes de carne e nas logos dos restaurantes. Não sabia que eram capazes de expressar algo como tristeza no olhar.

Já em casa, o adolescente abre a geladeira e observa seu conteúdo, leite, queijo, carne fatiada, bolo… tudo derivado direta ou indiretamente de cachorro. Ele leva a mão ao peito como se precisasse segurar seu coração, o olhar do animal não sai da sua mente.

Escolhe uma fruta. Talvez fosse melhor se pudesse viver apenas de frutas e legumes, mas infelizmente não é possível.

O adolescente cresce e este episódio se torna apenas uma lembrança distante. Já adulto conhece uma pessoa que se declara plantariana. Curioso, faz muitas perguntas e indaga várias vezes se não é muito difícil viver dessa forma.

Nos próximos meses, essa pessoa se torna parte do seu círculo de amizades e se encontram frequentemente. Um dia ela perde a paciência e o repreende:

- Já percebeu que quase toda vez nos vemos você me pergunta se não é muito difícil ser plantariano?

Nos próximos dias, extremamente envergonhado, pensa muito no assunto e percebe que mesmo sabendo que estava fazendo algo ruim quando comia derivados de cachorros, passou todos esses anos justificando isso com o pensamento de que era impossível ou extremamente difícil viver de outra forma.

Após apenas algumas semanas indo e vindo em tentativas de retirar alguns ingredientes de sua alimentação, de um dia para o outro toma uma decisão resoluta e definitiva de retirar todos os derivados de cachorro da sua alimentação e da sua vida.

Seu coração se torna leve, um peso que nem sabia que estava lá desaparece. Assiste vários documentários sobre plantarianismo e sobre cachorros. Descobre que são animais muito carismáticos e amigos. Capazes de sentir dor, tristeza e solidão.

Durante os anos seguintes, conhece mais pessoas como ele. Sem nem mesmo ter essa intenção, se vê cercado de amizades plantarianas. Nos seus círculos de amizades, como a maioria vive a base de plantas, quando se encontram só cozinham plantas e só frequentam lugares plantarianos. Sem pessoas que comem cachorro a sua volta, chega mesmo a se esquecer de qual era o cheiro e a aparência desses produtos.

Um dia vai em um churrasco de família e se esforça a tarde toda para ignorar o cheiro forte da carne de cachorro que lhe incomoda demais. Tenta não pensar que são pedaços de cachorros que estão na churrasqueira. Se concentra nas pessoas e nas conversas e sai de lá com a sensação de ter tido sucesso.

Mas quando chega em casa e se deita na cama, sua mente está em turbilhão. Só não se encontra em estado mais deplorável que seu coração destroçado e seu estômago embrulhado. As lágrimas invadem seu rosto e seu pequeno corpo se contorce em agonia, incapaz de evitar a crise que lhe domina.

Uma frase que ouviu naquele dia se repete em sua mente “na verdade eu não como tanta carne assim, fico tranquilamente dois ou três dias sem comer cachorro antes de sentir falta”.

Então entende, o que lhe afeta não é o cheiro em si. Mas o fato de que pessoas que ele ama e respeita ainda vivem em uma distopia onde comer cachorro é perfeitamente normal, e não comer cachorro é o comportamento incomum.

Se pergunta o que sentiriam se acordassem um dia em uma realidade alternativa em que todos a sua volta comessem carne de humanos, seus amados e inteligentes animais de estimação. Será que passariam a comer carne humana? Conseguiriam conviver com as consequências sociais de se recusar a fazer isso? O que sentiriam ao saber que uma enorme quantidade de humanos são reproduzidos e assassinados repetidamente para serem vendidos como alimento? Sendo incapazes de fazer as pessoas perceberem o quão horripilante é isso? Quanto tempo conseguiriam manter a sanidade mental?

Raon Hao
Enviado por Raon Hao em 09/07/2023
Reeditado em 03/08/2023
Código do texto: T7832467
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