O Último (Microconto)

— Você não vai no Centenário Administrativo? – Indagou XP01.

— Não tenho motivo. – Respondeu XP10.

— É o último ser humano vivo e você não vai?

XP10, o mais recente subproduto da linhagem XP, ignorou os protestos alheios e continuou a consertar a bateria solar, um drone que o acompanhava desde sua montagem – considerado, por muitos, um “animal de estimação”. Sentiu raiva ao ver o domo se fechando, e mais ainda ao relembrar que aquela raiva era programada. O que os humanos tinham de tão especial, além de tê-los deixado responsáveis pela Terra?

O sol, ainda tímido, se fez presente. XP10 testou novamente a bateria velha e gasta. Uma pequena luzinha se acendeu. Seus circuitos internos se aqueceram e traduziram em código o que poderia ser considerado “felicidade”. Lá fora, o cortejo quase fúnebre seguia adiante, com uma pompa totalmente desnecessária em função do último humano, um centenário, um “Programador” (título que trazia consigo uma carga estranhamente religiosa).

"O último". Parecia algo solitário. Ele era o último de sua linhagem, mas isso não queria dizer que jamais voltaria a ver sua família. Que sensação era aquela? Pena? Tristeza? Não, era algo diferente. Foi obrigado a vasculhar o banco central… “Melancolia”. Era isso. Estava melancólico, de um jeito que não compreendia.

De repente, sentiu-se curioso. Afastou as ferramentas, guardou seu “animal” num encaixe dos ombros e atravessou o corredor frio e antipático até a rua. Não lacrou o domo. Privacidade era um conceito exclusivamente humano.

Lá fora, inseriu as mãos no encaixe perfeito da gravimoto e partiu em alta velocidade. Atravessou avenidas, passou pelo cortejo e seguiu adiante até o monumento “in memoriam” do que um dia foi dez bilhões de pessoas: uma gigantesca e singular placa de mármore, contendo, de forma eletrônica e invisível, o registro de toda uma geração. Faltava apenas um.

Distraído, quase atropelou um cachorro amarelo, de porte médio, que parecia mancar. A gravimoto teria desviado sozinha se não estivesse no controle manual. Foi obrigado a parar. Analisou friamente aqueles olhos esbugalhados e executou a ação necessária.

Em pouco tempo o animal já estava saltitando ao seu redor, sem lembrar do enorme espinho encravado na pata direita, dissolvido em milissegundos. Recebeu várias lambidas em agradecimento. Se pudesse sorrir (quase conseguiu) o teria feito. Como eram frágeis! Alguém tinha que cuidar daquelas criaturas… Alguém… O último humano, por exemplo. O último…

Retirou a bateria empoleirada em seus ombros e a reativou. O drone estudou brevemente as duas figuras insólitas e se manteve na altura do "ninho". Finalmente havia entendido. Quantos mais teriam chegado àquela conclusão lógica sozinhos? Observou o cortejo. Por um instante, hesitou. Mas aquele rabo eufórico em sua frente o convenceu.

XP10, a partir daquele momento, já não era mais um adolescente. Era um adulto. O último a completar sua programação.