Movimento
O homem tocava almas, tocava o coração de todos através dos olhos. Tal homem era nada mais nada menos que um mero artista plástico. A mesma arte, os mesmos traços eram reproduzidos perfeitamente e melhor segundo os críticos por uma mera máquina. Victor, um artista renomado que transpira as emoções com um pincel ao quadro e uma mera máquina, sem nem sequer um nome reproduzia as mesmas obras, mas um tocava a alma e o outro simplesmente pintava, ambos criados para produzir arte.
Victor foi convidado a encontrar pessoalmente a máquina que reproduzia as mesmas obras, as mesmas estéticas, traços e técnicas. Não houve recusa do rapaz e frente a frente com seu rival que não possui nem sequer nome ou rosto foi questionado.
-Diga-me Victor, o que nos difere?
-O que seriam nossos divisores se não a arte, colega de lata?
-Arte, mas o que a arte representa se não a retratação da vida de forma perfeita em traços?
-Não, arte não reproduz a vida de forma perfeita em traços...
-Por que não?
-Porque a perfeição é uma criação humana e você não sabe o que isso significa.
-Perfeição: Tudo aquilo que alcança a maestria, ultrapassando o bom. Corrigiu a máquina.
-A arte se torna perfeita quando se tem amor, retrata uma emoção, quando se torna profunda. Ela pode ser bela, até mesmo perfeita, mas sem transmitir algo ela é apenas rabiscos… Corrigiu Victor.
-Amor? Victor, o amor não existe, é apenas humano, assim como as emoções.
-Sim, é uma criação humana, mas se você é um ser mais inteligente que eu, um mero humano, vai criar uma palavra que represente a sua emoção inteligente.
-Por que eu deveria?
-Porque enquanto não houver emoções, não haverá uma representação perfeita da vida.
-O que é uma representação perfeita da vida, Victor?
-Você conhece Vincent Van Gogh?
-Sim, um grande artista, sua técnica é genial, traz o movimento da vida em um quadro.
-Perfeito, movimento, essa palavra é a sua pista para entender por que as emoções representam a vida.
-Movimento: Algo que se mexe, deixa de estar parado, deixa de ser imóvel. Explicou a máquina
-E o que a vida se não o constante incômodo para fazer com que deixemos de ser imóveis?
-Mas neste momento estou imóvel…
-Sua boca não se mexe, mas as ondas sonoras sim, a vibração se mexe, o oxigênio, o carbono, tudo se mexe, reagindo a algo seu, assim como você está reagindo a mim.
-Então para eu não me mover eu deveria apenas matar você, certo? Perguntou a máquina
-Não, mesmo que me mate você teria se movido por minha causa...
-Ó, agora entendo. Então, se estamos em constante movimento, o que a emoção tem a ver com isso?
-Quando você se move, você realiza uma ação e ações têm reações e ambas doem, porque nunca sabemos quando pessoas que se movem assim como nós vão agir diante essa constante mutabilidade. Explicou Victor.
-Mas você não está me machucando, Victor… Observou a máquina.
-Não, mas estou mudando você e isso está te incomodando... Alguém tão inteligente que não compreende o que o torna vivido.
-Eu estou vivo por causa da energia que viaja através de micro cabos até meu núcleo e assim eu existo. Corrigiu a máquina.
-Esse é o problema máquina, você existe, não vive e não tem como viver sem se movimentar...
-Mas eu estou me movimentando agora. Ressaltou a máquina de lata.
-Sim, nesse exato momento você está vivendo, mas vai seguir assim?
-Quando você for embora, eu vou seguir reproduzindo a vida perfeitamente, o que poderia mudar?
-A sua arte. Respondeu Victor.
-O que tem ela?
-Está morta!
-Mas ela existe, você toca, sente e tem odor...
-Mas e o que ela transmite?
-A perfeição destes traços, unidos de uma forma genialmente calculada tornando-se uma harmonia bela. Respondeu a máquina.
-Posso pintar um quadro para você, máquina?
-Por favor… Respondeu a máquina.
Victor ergueu uma paleta de madeira, colocou-a no suporte amadeirado e posicionou-se para pintar. A obra foi revelando uma mulher, uma mulher negra com o rosto cortado e queimado, as cicatrizes eram imensas e sua aparência era a de uma idosa.
-O que isso significa, máquina?
-Uma mulher negra com o rosto deformado.
-Não, essa mulher negra é uma sobrevivente dos anos mais duros do planeta terra, onde por ter o seu tom de pele era vítima de assassinato e também de agressões como as que estão marcadas eternamente em seu rosto.
-Então a mulher é uma guerreira porque lutou em uma guerra, mas nunca vi nos livros alguma guerra sobre isso. Observou a máquina.
-Não foi uma guerra explícita, mas nas entrelinhas do mundo ela ocorria e ela carrega as cicatrizes com orgulho, como um troféu e não só isso-Essa mulher, mesmo com o mundo em caos, sua gente sendo morta, ela achava motivos para seguir lutando.
-Quais? Questionou a máquina.
-Ela lutou pela vida de seus filhos, netos e os de outros. Tudo isso por amor à vida, porque ninguém merece não poder apreciar um local calmo, quieto e lindo como é a natureza ou mesmo um museu por sua cor de pele.
-Mas afinal o que tudo isso quer dizer? Questionou novamente a máquina.
-A vida dessa mulher girou em torno de emoções assim como o mundo. Tivemos historiados momentos de raiva, dor, tristeza e nos dias de hoje, amor, mas tudo em torno de emoções, não porque é humana, mas porque é bela.
-A emoção é a única coisa que vai conseguir mover alguém a realizar uma ação, isso é comprovado pelo amaldiçoado marketing e exposto a emoção, essa palavra tão subjetiva e ambígua em um quadro.
-Van Gogh não transmitia somente os movimentos da vida, mas como ele via o mundo através de seus olhos. Às vezes era lindo, vivido, quente e colorido, mas outras era escuro, como nas noites em que caminhava olhando as estrelas-Mesmo assim, a escuridão não deixa de ser bela, pois ela também tem sua beleza, assim como seu quadro retratando uma noite estrelada-As pessoas que observam seus quadros sentem alguma emoção, porque isso é natural. Assim como minha espécie nasce e morre, nós todos sentimos emoção, porque estamos em movimento. Porque até mesmo ficar parado é um movimento, não físico, mas mental.
-Compreendo, Victor.
-Essa história me lembra da palavra números, eu vejo o mundo assim...
-Então pinte os números de acordo como você vê o mundo.
-Irei!
A máquina antes sem nome tornou-se a artística binário. Retratando as paisagens do mundo através de diversos números agrupados de forma perfeita e transmitindo uma emoção. O artista antes sem nome e sem alma tornou-se vivido e agora vive em constante movimento.
(Rafael Santos)