NOAH-15 – Capítulo 3 – Crescei e Multiplicai-vos

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Leia antes:

Prólogo

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeficcaocientifica/7704577

Capítulo 1

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeficcaocientifica/7717944

Capítulo 2

https://www.recantodasletras.com.br/contosdeficcaocientifica/7727012

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* Escolhas e ditaduras *

Quando nos foi passado o plano de reprodução para a população de NOAH-15, eu e Amikô ficamos muito afetados emocionalmente, uma vez que ia contra vários preceitos religiosos que compartilhávamos mas, em face a esta grande aventura humana, resolvemos encarar o problema de maneira filosófica e assim o aceitamos. Haveremos de passar a nossa religiosidade para os nossos filhos, junto com muitos que ali estavam e a compartilhavam-na conosco.

Após um ano e seis meses da nossa partida, já estávamos no espaço interestelar (entre estrelas) à velocidade relativa de 20% da velocidade da luz. Todos os seres vivos dentro de NOAH-15 não sentiam mais os efeitos da inércia, uma vez que a aceleração já tendia a zero.

Animais menores tinham pouco controle de natalidade, exceto os insetos, que mantínhamos sob controle para evitar pragas catastróficas. Assim, bovinos, caprinos, ovinos, suínos, aves e vários outros animais eram estimulados à reprodução até ao limite que estava estudado como ideal.

Dois terços da área habitável de NOAH-15 era reservado a toda a vida vegetal e animal, ainda que as cinco astronaves anteriores levassem milhões de tipos de sementes para deixar os domos de habitação inicial imediatamente habitáveis quando chegarmos, a nossa astronave também os tinha, vivos, e sendo usados para alimentação de todos os animais que nela habitam, incluindo nós mesmos.

A miríade de vida vegetal viva em NOAH-15 é de diversidade bem menor que as sementes enviadas nas cinco astronaves anteriores mas, mesmo assim, era composta de milho, trigo, cevada, café, sorgo, feijões e mais uma dezena de grãos, capim, duas dezenas de frutas e cerca de uma centena de verduras e vegetais.

Enfim, todas as formas de vida crescendo e se multiplicando e, agora, era a vez dos seres humanos. Havia uma sequencia de nascimentos a ser seguida e a margem de erro era muito pequena. Apesar desta primeira onda de reprodução humana ser bem próxima à partida, um ano e meio depois, era essencial que acontecesse pois a segunda onda teria que acontecer em um ano e nove meses após esta pois era previsto que a população humana na astronave dobrasse em cerca de quatro anos após a partida.

Até agora NOAH-15 era um ambiente de tarefas diárias e repetitivas para todos e nos mantinha ocupados com essas tarefas básicas mas, agora, teríamos que ter filhos. Em menos de dois anos, cada um dos mil e quinhentos casais teriam que ter dois filhos.

Até hoje, na Terra, discutia-se a imposição dessas regras, que faziam com que quase a totalidade dos terráqueos se sentirem mal, comparando essa imposição às antigas e nefastas dominações de poucos sobre muitos, às chamadas ditaduras, as ideologias totalitárias e tantos outros regimes que ceifaram a vida de milhões de humanos a troco do desejo de poder de poucos. Mas, pelo menos nos próximos anos, não poderíamos concordar com essas comparações pois não fomos obrigados a isto, escolhemos estar aqui e sabíamos das regras.

Nessa noite, abraçados no amor que atravessaria a eternidade, Amikô puxou pelo assunto:

- Allan, para nós, que nascemos livres e pudemos decidir o nosso destino, Deus reservou esta aventura que consumirá uma vida inteira de provações, mas ainda assim, nosso livre arbítrio foi respeitado.

- Assim o foi Amikô, assim o foi. No auge do nosso egoísmo decidimos aceitar esta missão e Ele nos abençoou e nos fez descobrir que estávamos sendo altruístas com toda a humanidade.

Aparentemente não entrei no assunto que ela esperava. Amikô, após pensar por dois minutos antes de falar novamente, com sua voz que me soava como uma doce melodia, disse:

- Mas e nossos filhos? Eles não serão livres para poderem usufruir do livre arbítrio. A saga deles será viver neste nosso paraíso, ainda que se sintam amarrados dentro de uma masmorra. Correrão e passearão, viverão e amarão nestes nove quilômetros de astronave que temos à disposição de nossa vida. Terão poucos amigos. Isso me entristece muito quando penso nesse futuro.

- A pensar dessa forma, meu amor, realmente tenderás a sentir essa angustia em teu coração pois há poucas décadas, nós humanos nos livramos dos ditadores e tiranos – pelo menos os maiores deles – e esta situação lembra muitos os momentos em que humanos eram servos obrigatórios de tiranos, debaixo de ditaduras que ceifavam a opinião, a religião, o livre arbítrio, o direito de ir e vir e tantos outros que hoje são respeitados como direitos naturais de qualquer ser humano.

- Então, ainda bem que o teu pensamento está em comunhão com o meu.

- Está tarde minha linda Amikô. Comungo contigo muitos pensamentos mas acredito que neste caso estamos diante de algo que não pode ser comparado a uma ditadura. Discutiremos isso em outro momento, com mais profundidade sobre o que acho dessa situação.

- Assim seja, 私の最愛の夫 (“Watashi no saiai no otto” ou “meu amado marido”).

- Vamos agradecer por mais este dia e vamos dormir, meu amor.

* O momento da vida *

Nesta primeira fase de procriação, nenhum dos mil e quinhentos casais precisou de auxílio motivacional ou psicológico para que se dispusessem completamente à tarefa de procriação. Imaginei que assim o seria afinal, somos feitos para crescer e multiplicar, de acordo com o Criador e, porque não, para os que Nele não acreditam, pela própria ação da natureza.

No último ano e meio, cada casal em sua privacidade, tinha se amado e feito amor com a frequência que a doce idade de quase trinta anos lhes permitia, mas sempre com os devidos cuidados com a maternidade inesperada. Assim eram as regras e não seria permitido sair delas, ainda que sob protestos veementes dos mais religiosos, incluindo Amikô e, em silêncio de oficio, eu mesmo.

No dia em que comuniquei o inicio desta fase, fui procurado por um casal, Eva Parkinson e Mumbalala Okubä, que solicitaram uma reunião urgente com os Conselheiros.

No dia seguinte, em frente ao conselho dos treze, o ansioso casal inicia a sua fala, através da voz absoluta de Eva, notadamente três oitavas acima do normal:

- Senhores Conselheiros, é com grande pesar e arrependimento que vos trazemos uma notícia que nos torna infratores...

A sala ficou repentinamente murmurosa, e até mesmo barulhenta, na afã de adivinhar em pouquíssimos segundos qual seria o motivo de tal pesar. Solicitei silêncio, atendido prontamente, e Mumbalala seguiu então a explanação tão esperada:

- Soubemos, somente ontem, durante a nossa revisão médica para os preparativos da primeira onda de reprodução, que minha bondosa esposa já se encontra grávida há cerca de dois meses.

Definitivamente a sala explodiu em discussões que duraram alguns minutos, minutos esses em que fechei os meus sentidos e imergi rapidamente em tudo que estudei para saber como agir e, com a mesma velocidade emergi para a razão, voltei ao nosso mundo e novamente, com uma enfase bem maior que a anterior, solicitei silêncio para podermos tratar do assunto que pulava à nossa frente. Peguei a palavra para que pudéssemos iniciar as tratativas de tal falta.

- Caros Eva e Mumbalala, em casos como esse a lei versa, de forma inequívoca, em textos friamente escritos por burocratas, cientistas, juristas e tantos outros, que a punição será a retirada da criança, tratado pelos mesmos por “feto”, do ventre de sua mãe e seus restos colocados nos dutos de reciclagem orgânica.

Nesse momento, a fortaleza saxônica de Eva, sustentada pelo enorme pilar africano, desmoronaram no chão sobre seus joelhos e por seus olhos completamente encharcados saia um liquido que poderia ser um pouco da alma abandonando os corpos banhados de culpa. Continuei.

- Queridos amigos Eva e Mumbalala, na minha religião, Eva foi a primeira mãe humana e, de frente a este problema, novamente Eva tenta ser a primeira mãe entre este grupo pequeno de humanos neste mundo diminuto. Solicito que voltem à vossa casa e amanhã, posto que existe uma emergência orgânica que prospera dentro de si, neste mesmo horário, retornem ao Conselho para que possamos então proferir a nossa decisão.

Como se a força da gravidade tivesse aumentando repentinamente, ambos se levantaram de sua posição de penitência lenta e sofridamente e pela porta saíram cabisbaixos, a passos lentos e cansados, como nunca os tinha visto até então.

Após breve discussão, decidimos que o Conselho deveria ficar reunido decidindo o que fazer e só se desfaria após uma decisão de consenso da maioria. E o décimo terceiro membro do Conselho já havia sido chamado e mostrava-se nas telas do salão, era o Conselheiro Yahudha, do Domo Terra. Fiquei eu com o voto de desempate, caso necessário, assim como Minerva, a deusa grega da sabedoria, uma das três da Tríade Capitolina com voz final sobre as decisões.

E assim começamos nossa reunião, e Conselheiro após Conselheiro, suas decisões foram sendo tomadas. Com grandes explanações ou com frases quase de uma só palavra, cada um emitiu a sua opinião sobre a retirada de uma vida do ventre de sua mãe.

Ao fim de oito exaustivas horas, dez dos Conselheiros já haviam votado e a escolha estava totalmente dividida e empatada. Ainda faltavam o nosso Conselheiro Jérôme Lejeune e o representante do Domo Terra. Solicitei que começasse então a sua explanação o Sr Jérôme:

- “Se um óvulo fecundado não é um ser humano, ele nunca poderia tornar-se um pois nada mais é acrescentado a ele.” (1) Sei que existem regras para a nossa sobrevivência nesta astronave mas não consigo encontrar em todo o meu arcabouço moral e intelectual um único motivo para perpetrarmos este assassinato. A concepção ocorreu há pouquíssimo tempo e a diferença de idade desta criança será quase nula com relação às próximas mil quatrocentas e noventa e nove outras que neste momento podem já estar sendo gestadas, inclusive a minha própria. Em nada essa vida precoce comprometerá a segurança da Astronave, que está pronta para uma viagem de até cento e cinquenta anos, sessenta e três anos a mais, como segurança, do que está previsto o nosso destino.

E após a brilhante e curta explanação do Sr Jérôme, a qual acalmou silenciosamente o meu coração, solicitei que o Sr Yahudha se pronunciasse:

- Como é de vosso conhecimento, esta jornada humana não permite falhas e, como conhecem por antecedência a minha quase militar obediência às regras, recomento a imediata remoção do feto do ventre de sua mãe, sem que seja permitido contato seque visual entre a mãe e o feto após a sua extração, e que seus restos sejam colocados no duto de reciclagem orgânica imediatamente. Assim o Domo Terra se posiciona.

Novamente o empate acontece e, nesta feita, eu, o voto de Minerva, precisarei proferir a minha decisão que, aos final, será a realmente executada. Qual fosse a decisão, ânimos seriam contidos e outros exaltados mas eu estou preparado para a liderança desta Epopeia humana.

Desfizemos o conselho para continuarmos no dia seguinte, já com os litigantes presentes. Nessa noite, liguei para Amikô e pedi desculpas mas meus pensamentos não paravam de bombardear meu cérebro e preferi ficar acordado a noite inteira nas dependências do Conselho até ter a respostas para mim sobre o fato.

Após a noite eterna que se passou, finalmente começou o dia e todos novamente reunidos no Conselho, inclusive Eva e Mumbalala.

A minha explanação foi precedida de um tempo de contemplação, ainda que todos ali soubessem, com uma grande margem de acerto, qual seria a minha posição, me ajudou a pensar na melhor explicação para a minha decisão. Estava em minha cabeça, não a transcrevi para meio algum que não para mim mesmo. É chegado o momento. Comecei então…

- Passei a noite pensando no teste que o Rei Salomão, citado no Antigo Testamento da Bíblia Cristã, fez para saber quem era a verdadeira mãe de uma criança em disputa por duas mulheres. Eva, acredito que se eu te propusesse a sua morte para que o seu filho pudesse nascer, certamente a darias sem necessitar sequer de pensar. Isso torna a vida que carrega em seu ventre uma alma que receberá todo o amor que poderá ter de ti. Definitivamente, eu mesmo precisaria tomar a minha decisão, como o Rei Salomão, e se decidisse ceifar tal alma do direito à vida, eu renunciaria ao meu cargo e meu coração se desfaria, comprometendo toda esta jornada humana. Cada vida neste nosso Universo importa, a partir do momento da concepção e, como renunciar ao meu cargo não é minha intenção, deixarei que essa vida vingue e prospere e que seus frutos se espalhem pelo universo.

A alegria e o imenso choro tomou conta do casal, mas ainda não tinha terminado a minha fala. Solicitei que se recompusessem e continuei.

- Entretanto, ainda que possa ter sido um incidente, dado o frágil equilíbrio do ambiente em que vivemos, vossa punição será engravidar do vosso segundo filho com dois meses após o inicio da data marcada. Termino usando o incidente gerado por vocês para mudar as regras de vistorias médicas. A partir do nascimento de cada filho, o casal passa a ter a obrigação de conviver com métodos contraceptivos químicos ministrados pelos médicos da nave uma vez a cada trinta dias, sendo a última trinta dias antes do segundo ciclo de reprodução e, após o final desse ciclo, esses métodos deverão ser repetidos até o final da vida produtiva de cada mulher. E que essa regra se repita para os ciclos de reprodução da gerações vindouras, enquanto dentro desta astronave. Exceções deverão ser discutidas neste Conselho.

E por ser meu o último e decisivo voto sobre o assunto, assim foi cumprido e nesse dia tive a pior noite de toda a minha vida, até então, pedindo ao Senhor que me perdoasse as heresias cometidas.

* A Odisseia da vida no ventre da mãe *

Sete meses se passaram desde a reunião do conselho. E o primeiro choro de um humano recém nascido ecoa no espaço interestelar. Assim, porque a vida imita a arte, nasce Kain Okubä, um menino saudável, grande, de pele morena e cabelos ralos e lisos, olhos verdes e, pelo estridente choro, com pulmões com toda a força que a natureza poderia lhe fornecer.

Tantos outros a caminho nos próximos meses que deixou a astronave numa verdadeira confusão, confusão essa que começou, como disse, sete meses antes.

- Sete meses antes -

Ainda que a minha pior noite tivesse sido ontem, havia em NOAH-15 milhares de pessoas sob meus cuidados e um novo dia raia nos céus artificiais do nosso mundo diminuto.

- Allan, meu amor, acredito que hoje o teu atraso possa ser justificado – disse Amikô em nosso leito. - Para acalmar a tua alma, fiz um café da manhã com tudo que gostas e gostaria que o compartilhasses comigo esta manhã.

- Minha doce Amikô, se um pedido análogo à perfeição pudesse ser feito por alguém hoje, seria esse que acabaste de fazer. Sim, minha amada mulher, é tudo que quero neste amanhecer, ter um incrível café da manhã contigo.

Juntos, eu e minha esposa Amikô tivemos o melhor café da manhã que pudemos usufruir nos últimos dezoito meses, e conversamos muito sobre os futuros filhos e sobre toda a odisseia humana dentro de NOAH-15. A minha alma estava mais calma depois desse maravilhoso café da manhã, acompanhado por Ele e da mulher que escolhi para toda a minha vida.

A caminho do meu posto de trabalho, passeando pelas ruas silenciosas de nossa cidade espacial, perdido em meus pensamentos sobre tudo que conversei com Amikô, passei por vários momentos de desconforto e de má educação, deixando de dar Bom Dia a diversas pessoas que cruzaram meu caminho durante o trajeto diário para a chamada Ponte de Comando de NOAH-15.

Já que não estava mais perdido em meus pensamentos, uma vez que o meu dia de trabalho já havia começado. Ao passar pelo corredor principal da Ponte de Comando, a caminho do meu escritório, notei olhares e múrmuros que, definitivamente, não eram olhares e múrmuros comuns, como os que se escancaravam diariamente. Algo de diferente acontecia. Algo que em breve, com certeza, saberia a razão de tais atos de questionamentos silenciosos. Mas não agora. Havia toda a rotina diária de abertura do dia a ser seguida, fazer o relatório para o Domo Terra, verificar os índices e avisos do dia anterior, delegar tarefas, definir ações urgentes e uma série de coisas que eram de minha exclusiva alçada, sempre com a possibilidade da linha sucessória ser acionada no caso da minha falta. Definitivamente o clima estranho demonstrado pelos meus colegas não era uma emergência imediata. Controlei a minha ansiedade e tratei então de resolver o que precisava ser resolvido.

Tarefas realizadas, espaçonave no caminho correto, navegando a uma velocidade incrível pelo espaço negro e desértico. À volta de nós, o que podemos ver era milhares de pontos de luz que deliciavam o coração mas, como sabíamos que se tratava de estrelas e da sua imensa distância, nosso cérebro nos impedia de divagar para tão longe quanto o nosso coração clamava.

Era chegada a hora do almoço. Pela abordagem matutina silenciosa da minha equipe, achei melhor tratar do assunto em um ambiente impessoal, fora da Ponte de Comando. Se fosse algo oficial, teria sido tratado em uma reunião convocada por eles.

Passei então pelo corredor principal da Ponte de Comando e convidei a todos:

- Porque não almoçamos todos juntos hoje? A nossa casa espacial continua em caminho conhecido e esperado, sem novidades, urgências ou emergências que nos possa roubar algum tempo de solução. Se algo acontecer, temos os nossos comunicadores ligados e funcionando.

Com cara de admiração, olharam para mim em semblante de concordância, que acredito era porque achavam que já era de meu conhecimento a mensagem que queriam me passar. Mal sabiam que eu sequer imaginava do que se tratava, mas completei o convite para que não houvesse duvidas sobre o meu conhecimento sobre tal causa.

- E assim poderão me explicar o motivo de vossas caras carrancudas e questionadoras para comigo. Minha ansiedade, sem sombra de duvidas, só é superada pelas vossas.

Todos se levantaram lentamente, arrumando minimamente seus locais de trabalho e, parecendo uma tropa de ataque seguindo seu Tenente, andaram atrás de mim, em duplas, até o refeitório.

O almoço bem balanceado, como todos os dias, agradando a maioria dos gostos, foi sorvido por todos em um quase mórbido silêncio. Ultima pessoa cruza os talhares e a tensão, que antes já estava grande, aumentou absurdamente. Achei que estava na hora de acabar com a tal tensão e falarmos abertamente o que estava gerando tal problema.

Iniciei eu a falar:

- Pessoal, acredito que estejam todos tensos por causa da decisão sobre a gravidez de nossos amigos Eva e Mumbalala. A partir deste momento tudo que falarem não será julgado ou criticado e, com a garantia da minha palavra, todas as opiniões serão anotadas para que possam ser discutidas, se assim desejarem, no Conselho a partir de então. Apesar dos nossos rígidos controles sociais sobre ações e opiniões, aqui e agora seremos um parlamento aberto de liberdade total, e ninguém, ninguém mesmo, será criticado ou punido por suas opiniões neste parlatório improvisado.

Murmuros e conversas paralelas iniciaram e interrompi pedindo que cada um pedisse a vez e o parlatório virtual criado será dado à palavra de quem solicitar.

Sem mais, um dos meus oficias, Dosh Stevenson solicitou e recebeu a vez de uso do parlatório.

- Sr Capitão - interrompi e solicitei que me chamasse pelo nome -, digo então, Allan, acredito que falarei por vários aqui, mas incluam ou subtraiam o que acharem de diferente do que eu disser.

E assim Dosh começou a sua fala.

- Não falo por todos mas, acredito, pela maioria dos que aqui estão. Ficamos muito decepcionados consigo por ter infingido as regras, regras essas que nos foram ensinadas desde o dia que nascemos. Não concordamos com a sua decisão, ainda que não tenha sido a única, de não ter exigido o aborto assistido de Eva.

Nesse momento previ uma tarde longa e complicada, de uma nova discussão que não estava com vontade de participar, mas por alguma razão fui escolhido para ser a autoridade máxima a bordo. Então Dosh continuou.

- A sua decisão abre precedentes para muitas exceções daqui para a frente. Como poderá decidir diferente em situações similares? Como poderemos confiar em suas decisões se a qualquer momento pode quebrar as regras da nossa missão?

Olhos mais fixos do que os de águias durante a caça, todos na sala os viraram para mim. Minha mente, ainda cansada, precisou de alguns segundos para pensar. Esses segundos, com certeza, me foram mais demorados do que a viagem inteira. A vontade de desistir tomou posse de todas as minhas células, meus neurônios imploravam para que eu me virasse e fosse embora, mas algo maior que eu e as palavras maravilhosas de Amikô ao raiar do nosso dia artificial me fez ter a força para me controlar e responder a tais indagações tão bem formuladas. Falei então, compassadamente, respondendo aos questionamentos.

- Me perdoem a concisão da minha resposta mas, pelo preparo intelectual que todos dentro desta astronave temos, acredito que terão toda a condição de a entender.

Todas as caras relaxaram um pouco com a ansiedade que gerei. Resolvi não alimentar mais um sentimento neste ambiente.

- A minha decisão se baseou, como todos sabem, na incrível obsessão que tenho por cada vida humana, resultado de todas as minhas crenças religiosas mas, uma decisão muito mais prática e matemática foi tomada e a evitei de comentar anteriormente pois não achei necessário. Dois meses a menos, em média, de uma criança com relação a todas as não seria vital em absolutamente nada no nosso bioma mas, após um aborto, ainda que assistido, deixaria Eva impedida de ter filhos por mais de 6 meses e isso, sim, geraria um desequilíbrio tal a essa criança e ao bioma. Então, acredito que a minha decisão possa ter parecido somente religiosa, mas foi também muito técnica para a saúde de nossa astronave. Além do mais, lembrem-se das novas regras com relação aos contraceptivos, que impedirão novos casos desses.

Silêncio total no salão por alguns segundos. Pequenas conversas começam a pulular e por alguns bons minutos, enquanto me refrescava com um suco, a assistência discutiu a minha resposta. Interrompi.

- Pessoal, como Dosh disse, ele não representa todas as opiniões desta sala. Alguém mais que me indagar?

As pessoas se levantaram e, uma a uma vieram me cumprimentar e me abraçar, fazendo pequenas declarações de confiança em mim. E todos retornaram ao trabalho com um semblante muito melhor.

E, porque não, eu mesmo tive uma injeção de prazer no meu corpo e relaxei definitivamente. Esse assunto não foi mais comentado desde então.

* Primeiro e Segundo Ciclo da primeira geração *

O primeiro ciclo de reprodução humana terminou, de forma incrivelmente perfeita como uma conta básica de matemática sem variáveis para complicar, ou quase não.

Amikô e eu somos pais felizes de uma linda menina, cabelos lisos e rosto liso como os da mãe, apesar de um nariz um pouco mais redondo como o meu. A nossa linda Antônia Chintaó Carvalho.

Contudo, a matemática da vida não obedece a equações perfeitas. Vários problemas apareceram, que só poderá ser resolvido no segundo ciclo de reprodução, dentre eles: oito meninas a mais que meninos, três casais que acabaram tendo gêmeos, um casal acabou abortando e o numero total de crianças ficou 1% acima da meta quantitativa.

Já sem tanta euforia e ansiedade, o segundo ciclo de reprodução iniciou-se seis meses após o nascimento da ultima criança do primeiro ciclo. Em parte, toda a falta de tantos sentimentos tinha um motivo muito óbvio: mais de mil e quinhentos bebes chorando e gritando em nosso pequeno mundo.

Acabei tendo muito trabalho em lembrar aos casais que não queriam mais filhos de que estávamos em uma missão em que a humanidade era um fator maior que o humano. Lembrei-os várias vezes que tinham uma obrigação até contratual de fornecer tal diversidade de DNA ao grupo, na forma de filhos. O cumprimento das funções que aceitei, ainda na Terra, envolviam esse momento desagradável. Assim o fiz e farei.

Obviamente teremos punições para aqueles casais que não cumprirem tal contrato previamente assinado e, por motivos de vontade própria e não da natureza, não fornecessem dois filhos à nossa sociedade, sofrerão tais sansões.

Felizmente não houve necessidade de aplicar punição a ninguém. Este primeiro grupo de humanos foi criado com todas as regras rígidas na Terra e a minha tarefa foi enormemente facilitada por esse motivo.

Findado o segundo ciclo de reprodução, os números esperados ficaram dentro das margens de erro, que acabaram sendo:

1. 3027 crianças

2. Dessas, 1516 do sexo masculino e 1511 do sexo feminino

3. Um casal sem filhos no primeiro ciclo e mais um casal no segundo ciclo

4. Três casais com gêmeos no primeiro ciclo e incríveis 26 casais com gêmeos neste ciclo. Esta situação foi atribuída a alguma condição especifica da nossa condição no espaço e está sendo analisada pelo Domo Terra e pelos nossos cientistas.

Glossário

(1) Jérôme Jean Louis Marie Lejeune, Francês, nasceu em 1926 e morreu em 1994, além de ter falado a frase citada, descobriu os efeitos da anomalia cromossômica sobre a capacidade mental de crianças com Síndrome de Down.