Jacarandá - Fernando Couto de Magalhães - Parte da antologia Meta Humanos - Editora Carnage

*O texto a seguir foi desenvolvido para o concurso literário Meta Humanos - Editora Carnage e faz parte da antologia de mesmo nome. O desafio é criar uma narrativa na qual a personagem possua alguma habilidade especial.

Lá estava ela, ao menos o que restava do seu corpo.

Os ossos jaziam pacificamente dentro da cova e o crânio, com os seus olhos vazios e obscuros, encaravam a sua descobridora. Sobre os tecidos bem preservados que cobriam os restos mortais, estava a tábua esculpida. Não tinha mais que quarenta centímetros de altura, trinta de largura e uma grossura de oito. Era belíssima! Inúmeras formas, ilustrações minúsculas e detalhadas, grafismos, pareciam contar uma história longa e complexa. Uma narrativa cósmica de toda a existência de um povo.

“Era isso que você queria que eu encontrasse?!” Naiara sussurrou enquanto tirava várias fotografias com o seu smartphone e removia, cuidadosamente, a terra que ainda cobria a tábua. A inquietação por revelar aquele segredo fazia com que a mulher ignorasse sua terrível dor nas costas, acumulada após tantas horas escavando a terra seca que se estendia a poucos metros da bocarra daquela caverna isolada e esquecida do sertão. A admiração pelo artefato arqueológico era inevitável! Toda a equipe de Naiara estava do lado de fora, aguardando ansiosamente o retorno da diretora do laboratório de arqueologia e líder da expedição.

“Pobre Pity!” Era triste ver os restos mortais da sua amiga. Mais de trezentos anos se passaram desde a sua morte, três séculos antes do próprio nascimento de Naiara, mas a conexão entre as duas era profunda. Peteî eté yvága era o seu nome real, quase impronunciável para Naiara, que o simplificou de forma carinhosa para Pity. “Não se preocupe, minha amiga, a sua história será contada!” Uma lágrima fresca escorreu pelo rosto suado da mulher. Os joelhos estalaram quando Naiara levantou-se. Com cuidado, ela embrulhou a tábua numa toalha seca e a colocou em sua mochila. As devidas autoridades seriam alertadas sobre a descoberta do sítio arqueológico, mas aquela tábua era importante demais para apenas ficar aguardando naquele local. Afinal, ela estava sendo perseguida por aquele homem maldito e sabia disso, conhecia os riscos.

KABUM! Um baque ecoou por toda a caverna e um estranho calor tomou conta do braço direito de Naiara. Era o seu próprio sangue. O projétil de um revólver 38 a pegou em raspão e a levou para o chão, assustada. O sol brilhava forte através da única saída da caverna, transformando o agressor em uma silhueta obscura, camuflada pela claridade. Do lado de fora a equipe de alunos e pesquisadores gritava em pânico.

– Você achou a tábua, não achou? – Ele gritou. – Entregue-a para mim, já!

“Ganhe tempo!” Uma voz familiar cochichou na mente da mulher.

– Que tábua? É só uma escavação da universidade... estamos treinando os alunos! – Naiara tentou desconversar, observando a figura se aproximar cada vez mais dela. Como ele conseguiu passar pela segurança? ¬– Merda, quanto tempo você precisa? – Ela sussurrou para si mesma.

“Deixe-o se aproximar mais!”

– Ele vai me matar, Pity! – Naiara estava em pânico.

“Só mais um pouco...”

A voz era propositalmente calma, uma caraterística típica da Pity. “Acalme a mente!” Ela insistia! Peteî eté yvága sentia a liberação da adrenalina no corpo da arqueóloga, afinal, as duas compartilhavam os seus corpos e a suas mentes, porém em espaço-tempos diferentes.

“Entregue o seu corpo a mim!”

Um grito alto e um disparo propagaram-se simultaneamente. Silêncio.

A estranha habilidade de Naiara, se é que podemos chamar de habilidade, não surgiu de repente. Desde pequena ela tinha sonhos estranhos e vívidos numa cidade com grandes ocas, pessoas parcialmente nuas com pinturas corporais azuladas, e um enorme pátio central que abrigava uma majestosa árvore rosada com a copa cor violeta. Um jacarandá. Com o passar dos anos, os sonhos tornaram-se visões que atormentavam a menina. Diversos problemas sociais desencadearam esta estranha condição que a levou diretamente para a sala de um psiquiatra.

As visões tornaram-se mais concretas quando a menina completou doze anos de idade. Enquanto brincava na beira da piscina do seu prédio, Naiara foi atraída pelo seu próprio reflexo, mas, ao encarar-se, percebeu que enxergava outra garota, de mesma idade. A menina tinha algumas semelhanças físicas, como o cabelo preto e liso, nariz largo e rosto arredondado. Porém, aquela que ocupava o seu reflexo tinha uma linha azul pintada em seu rosto, atravessando o meio da testa, descendo pelo nariz até o queixo. Acima da estranha menina, refletindo no céu, Naiara reconheceu os galhos de jacarandá dos seus sonhos, com suas flores roxas que soltavam algumas pétalas sobre a água. A moça do rosto pintado sorriu e acenou para o reflexo. Naiara imitou o gesto, sem imaginar que, do outro lado, a jovem encarava a tranquila água de um rio e enxergava Naiara no seu reflexo.

“Somos uma!” A menina com o rosto pintado disse calmamente.

Demorou para que as duas meninas entendessem o real significado dos trezentos anos que as separavam. Naiara, nascida em 1992, era naturalmente carioca, filha de Maria do Carmo, e não conhecia o seu pai, enquanto Peteî eté yvága, nascida na primavera do Tucunaré de ouro, era filha de Sỹryguaasu, uma das três mulheres governantes da misteriosa Cidade do Jacarandá Rei. Ou seja, pertenciam a realidades completamente distintas. Com o passar dos anos, as duas desenvolveram uma estranha relação na qual a curiosidade reinava. Não passavam um dia sequer sem trocar pensamentos, exigindo respostas, informações e curiosidades uma da outra. Por vezes, Naiara se sentava em sua cama para beber um refrigerante enquanto Pity bebia um delicioso chá de ervas e flor de jacarandá, típico de seu povo.

“É o que nos permite conversar com nossos familiares de outras épocas!” Pity deu um gole no chá enquanto estava sentada debaixo de uma árvore.

– Podia ser um pouco mais docinho! – Naiara respondeu, sentindo o gosto amargo que Pity sentia ao beber do líquido.

As duas gargalhavam enquanto conversavam dentro de suas mentes. Mal compreendiam que as ervas específicas daquele chá, combinadas com as substâncias da flor do jacarandá, tinha efeito direto na codificação do DNA dos indivíduos que era transmitida de geração em geração. Isso fazia com que os descendentes daquele povo, que consumia a droga há séculos, tivessem acesso direto à memória genética, gerando uma conexão direta, em tempo real. Como diziam em Jacarandá Rei: "Não há passado, não há futuro, só há o hoje!" Ou seja, na cosmovisão daquela civilização, passado, presente e futuro coexistiam.

Ao completar dezessete anos, Naiara conseguiu entrar numa universidade pública, onde iniciou os seus estudos sobre a História do Brasil, porém, nada encontrava sobre a Cidade do Jacarandá Rei. Não havia nenhum registro histórico e tudo o que sabia era relatado pela sua amiga do passado. Quando iniciou o seu curso de mestrado, já com vinte e dois anos, ela resolveu se jogar de cabeça nos mistérios dessa estranha civilização perdida do nordeste brasileiro. Contudo, não poderia escrever sobre a cidade sem nenhuma referência bibliográfica, ou sem qualquer evidência, o que acabou levando o seu tema para populações originárias desaparecidas. Aos vinte e seis anos, Naiara ingressou no doutorado e passou a liderar expedições para o sertão, determinada a encontrar a cidade natal de sua amiga e compreender a estranha conexão entre as duas. Pity, também aos vinte e seis anos, já se tornara uma exímia guerreira, líder de uma tropa de cem homens e mulheres que protegiam a cidade de ameaças externas, ataques de tribos vizinhas, ou dos colonizadores europeus. Aquele era o seu destino!

Enquanto liderava um grupo de alunos no estado de Alagoas, Naiara se deparou com um homem estranho que apareceu no sítio arqueológico em busca dela. Aparentava ser um homem simples, com traços tipicamente brasileiros, mas falava alto com um português de Portugal exagerado, autoritário e arcaico. Assim que ela se apresentou para o homem, ele tentou esfaqueá-la com um pequeno canivete que estava pronto para o saque. Todos os alunos ficaram impressionados com a resposta da professora Naiara. Tomada por movimentos involuntários, ela agarrou a mão do homem e a torceu, trazendo o braço inteiro do indivíduo contra a sua axila, que fechou numa poderosa chave de braço. O tornozelo do agressor estalou e o canivete caiu no chão. Pity assumira o controle do corpo de Naiara, salvando a vida da colega do futuro. Ao ser preso, o homem alegou ter perdido o controle do seu corpo e que, nos últimos dias, tinha sido tomado por um “espírito” chamado Afonso da Prata.

O nome, ignorado pela polícia, que achava o agressor louco, deu um novo rumo à sua pesquisa. Outras pessoas também teriam esta habilidade? Determinada, Naiara buscou por um conhecido antropólogo chamado Charles Capucci para ajudá-la em sua busca e, numa mistura de sorte e de uma incrível habilidade de pesquisa por parte do professor, uma referência à Cidade do Jacarandá Rei foi encontrada no arquivo do Museu Nacional de Lisboa.

Diário do capitão Afonso da Prata. 1689. Finalmente apagámos aquela maldita cidade do mapa. A história esquecer-se-á para sempre de Jacarandá!

Capitão Afonso da Prata era líder de um grupo de desbravadores europeus que infernizou o Povo de Jacarandá por anos. Assim que Charles, o antropólogo, projetou uma pintura renascentista do capitão português na tela do computador, Pity, através dos olhos da sua descendente, o reconheceu imediatamente.

“Da última vez que o enfrentamos, ele prometeu que queimaria Jacarandá. Ninguém nos odeia tanto quanto este homem!” Naiara sentiu que Pity sentia raiva. “E parece que ele conseguirá, assim como conseguirá colocar as mãos no nosso chá sagrado! Por isso tentou te matar através de um descendente! Está se certificando de que a nossa história permaneça esquecida!” Lágrimas tomaram os olhos das duas através da conexão emotiva que possuíam. “Não vou deixar que isso aconteça! Vou te indicar uma caverna e você me encontrará nela, pena que não poderei te dar um abraço!”

Poucos meses após a descoberta do diário de Afonso da Prata, Naiara estava diante da cova de sua amiga Pity, no exato local que planejaram. Uma caverna isolada e escondida, tanto dos colonos, quanto da civilização moderna. “Preciso de um documento histórico, que resista ao tempo!” A solicitação da arqueóloga foi clara e Pity atendeu. Talhou toda a história de seu povo numa única tábua, a escondeu e solicitou que fosse enterrada com o objeto após a sua morte, num local específico. O clima seco e protegido da caverna ajudaria na preservação dos restos mortais de Peteî eté yvága e, com ela, a história da Cidade de Jacarandá. Pity sentiu-se estranha ao ver, através dos olhos da amiga, os seus próprios ossos, mas se sentiu bem ao ver que Naiara agora possuía a tábua à qual ela havia tanto se dedicado. A história de Jacarandá estava a salvo, assim como o contato com os antepassados que lá habitaram. Porém, outro ataque súbito as pegou de surpresa!

– Você achou a tábua, não achou? Entregue-a para mim, já!

“Deixe-o se aproximar só mais um pouco...”

Naiara moveu-se lentamente até a mochila, com os braços erguidos, e pegou a tábua. Estava ganhando tempo, torcendo para que o homem não disparasse. Era mais um descendente de Afonso da Prata, controlado pelo terrível homem.

“Entregue o seu corpo a mim!” Pity disse num tom reconfortante.

O revólver estava a menos de um metro de distância. Naiara inspirou devagar e, assim que soltou o ar, Pity, a guerreira, assumiu o seu corpo. Com o braço direito, ela rapidamente agarrou o cano do revólver e o empurrou para o lado.

Um grito alto e um disparo propagaram-se simultaneamente. Silêncio.

O projétil adentrou a caverna ricocheteando nas paredes rochosas, porém a cápsula ficou presa ao tentar sair pela saída da arma, interrompida pela palma da mão firme de Naiara, que impedia que um novo disparo fosse realizado. Um golpe de sorte! O homem puxou o braço com força, o que só deu mais impulso para a cotovelada que Pity projetou no nariz do agressor, quebrando-o com facilidade. Um segurança que acompanhava a expedição entrou na caverna. Ele estava ferido, pois fora golpeado pelo invasor na cabeça, mas ao atravessar a bocarra da caverna, com uma arma em mãos, deparou-se apenas com o homem inconsciente deitado sobre o chão e a líder da equipe com o braço sangrando.

Em poucos minutos, Naiara estava com um curativo no braço, sentada no banco do passageiro do seu jipe, enviando todas as fotos da tábua para o antropólogo Charles Capucci, que a ajudaria com a tradução do artefato assim como a publicação da tese de doutorado da mulher. Finalmente o mistério estava solucionado! O mundo em breve conheceria a história da civilização e da guerreira Peteî eté yvága. O agressor, descendente de Afonso da Prata, estava algemado e aguardava confuso pelas autoridades.

– Consegui Pity, eu consegui! – Ela gritou animada! – Pity? Cadê você?

“Conte a minha história, minha amiga!” Ela disse com aquela calma irritante. Afonso da Prata não tinha conseguido apagar a história de Jacarandá Rei, e seus descendentes tinham falhado no futuro. Homens fracos e sem determinação, ele os chamava. Porém, agora estava montado em seu cavalo ao lado de centenas de homens fortemente armados aguardando o seu comando. Peteî eté yvága estava de pé, agarrada à sua lança e com o corpo pintado com formas azuis intimidadoras. Os colonos estavam prestes a invadir a Cidade do Jacarandá Rei!

“Eles estão aqui minha amiga! É hora de encarar o meu destino!”

Naiara deu um grito e implorou para que a amiga fugisse, mas não teve resposta. Lágrimas escorriam pelo rosto da arqueóloga, que socava o painel do jipe com força. Não queria perder a sua amiga e, uma última vez, a voz calma de Pity surgiu em sua mente.

“Eu te amo, Nah! Somos uma!”

Fernando Couto de Magalhães
Enviado por Fernando Couto de Magalhães em 10/05/2023
Código do texto: T7784734
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