DIABINHOS ACIZENTADOS
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Se tivessem me dito que em apenas sete horas minha vida viraria de ponta a cabeça, provavelmente teria rido até não aguentar mais. Era praticamente impossível imaginar uma virada excepcional em minha vida pacata. Não havia nada de especial nela, tratava-se apenas de uma garota normal crescida em um lar de discórdia e agressividade parental e, consequentemente pais divorciados, assim como acontece com a maioria das crianças, infeliz realidade. Atualmente tenho enfrentado alguns problemas comuns a todos os frequentantes do ensino médio – professores irritantes que tentam nos fazer engolir suas ideologias hipócritas e destrutivas, alunos metidos a superiores e outros que se acreditam estar no direito de humilhar os mais vulneráveis. Minha alegria é pensar que faltavam alguns meses para me livrar da escola. Ainda assim não faço a menor ideia do que fazer depois disto.
Para ajudar minha mãe, decidi ir à procura de algum emprego de meio período. Eu não podia me dar o luxo de ficar parada assistindo ela se esforçar tanto para manter as contas em dias. Então, depois de pouco tempo encontrei um emprego que me permitia ajudar nas economias de casa sem ter que sacrificar meus estudos. Comecei meu primeiro emprego no cinema do shopping principal da cidade. No começo colocaram-me na venda de ingressos, logo depois me deslocaram para a parte de alimentação com a venda de pipocas e tudo o mais. O gerente disse que gostaria de observar se eu me sairia bem nesta área. Disse-me que todos ali haviam passado por aquele processo. No entanto, ele não me convenceu.
Não posso reclamar, o salário não era um dos melhores, mas pelo menos, servia para o que de fato precisávamos. Dito isto, é de se imaginar que eu estava sendo sincera quando disse que em minha vida não havia nada de especial.
Em relação a amigos, eu poderia contá-los nos dedos de apenas uma única mão. Apesar de monótona, havia alguém que tornava toda essa rotina um tanto quanto menos entediante. Miguel. Meu melhor amigo. Eu não intitulava nossa amizade dessa maneira, porém, se você é amiga e confidente dessa pessoa desde a infância pode-se dizer que ela desempenha tamanho papel em sua vida. Sabíamos segredos um do outro que terceiros sequer podiam imaginar.
Estudamos no mesmo colégio, apenas em classes separadas, mas cursando o mesmo ano. Eu poderia descrevê-lo em três palavras: teimoso, alegre e barulhento. Ele deve ser uma das pessoas mais animadas que eu já conheci na minha vida. Miguel possui essa personalidade barulhenta e às vezes até mesmo um tanto escandalosa. Ele dificilmente se deixava abater por algo. Admito que admiro isso nele. Raramente, mas nem tão raro assim, é ele quem me ajuda a me erguer do chão quando preciso. Somos parceiros. Pólos extremos de um ímã que se atraiam. Se Miguel era alegre e vibrante eu era o oposto: pessimista e estática. Era como colocar uma fotografia de cores vivas ao lado de uma em preto e branco. Existia um contraste em nós, que ao contrário de nos afastar, acabou nos deixando mais próximos um do outro.
Sinceramente não sei o que fiz para merecer sua amizade, mas sinto-me feliz por tê-lo.
Entretanto, para situá-los dos acontecimentos das próximas sete horas não posso dizer se estou tão feliz assim. A culpa não foi de Miguel. No fim das contas, como poderíamos imaginar que algo tão terrível poderia nos acontecer?
Tudo tomou um rumo terrível numa manhã de sábado quando recebi uma mensagem de Miguel pedindo-me que fosse urgentemente para sua casa. Eu mal havia acordado quando o celular continuou vibrando debaixo do travesseiro. Fiquei irritada, pois aquele era um dia de folga que eu havia trabalhado bastante para ganhar.
— Você não pode me contar o quê é pelo celular mesmo?! — digitei preguiçosamente, um tanto sonolenta. Esfreguei os olhos em seguida, e encarei a janela. Pela claridade das cortinas percebi que o dia já raiava lá fora e eu não estava com a mínima vontade de levantar do calor da minha cama.
O celular vibrou novamente. Li sua mensagem sendo capaz de ouvir sua voz em tom de teimosia.
— Não! Você precisa vir aqui VER COM SEUS PRÓPRIOS OLHOS!!!! Em todo caso, se eu te contar por mensagem você não vai acreditar em mim! Por favor, só vem, você tem que ver isso! — a mensagem terminava com um emoji de carinha triste seguida por várias carinhas desesperadas.
Suspirei fundo e contei até dez. Eu realmente não estava com ânimo algum para sair de debaixo dos meus confortáveis cobertores. Mas sabia que ele não me deixaria em paz se não atendesse ao seu chamado. Santo Deus. Sim, apesar de ser meu melhor amigo, xinguei-o durante todo o processo de levantar da cama e me aprontar.
— Você pode esperar pelo menos eu tomar café da manhã?! — digitei já vestida em meus jeans escuros, tênis e uma camiseta azul escuro.
Miguel ficou online e rapidamente me respondeu.
— Claro! Tome seu café, até porque você vai precisar estar forte e sustentada para ver o que eu quero te mostrar.
Revirei os olhos. Nada passava pela minha cabeça do que poderia ser aquilo que ele tanto queria me mostrar. Guardei o celular no bolso traseiro e parti para a cozinha. Silenciosamente preparei um café e devorei os pãezinhos que tanto gostava. Quando terminei, voltei para meu quarto e terminei de me aprontar. Penteei o cabelo em um rabo de cavalo, escovei os dentes e mergulhei meu rosto na torneira do banheiro. A água pareceu me despertar ligeiramente. Em meu bolso o celular vibrou de novo.
— Eu chamei um Uber para você! Ele deve chegar aí em quinze minutos — escreveu.
— Não precisava fazer isso. Eu ia a pé ou pegaria um ônibus — digitei depois de ter secado o rosto.
— O quê?! Não. Eu me sinto mal por estar te fazendo acordar tão cedo num sábado. Leve isso como uma forma de me redimir — terminou com um emoji de óculos escuro. Sorri.
— Tudo bem. Mas olha, é melhor que quando eu chegar aí "essa coisa" ser uma coisa muito legal mesmo porque senão, eu quebro a sua cara, juro.
— Quanta agressividade… você não vai precisar me socar ou algo do tipo, você vai ver quando chegar aqui.
Escutei uma buzina do lado de fora da casa e reprimi um xingamento.
— O Uber já chegou! Te vejo daqui a pouco — digitei rapidamente cometendo alguns erros gramaticais.
Corri para a cozinha e desejei que minha mãe não tivesse acordado ao som da buzina. Eu sabia que ela estava cansada, então evitava ao máximo perturbar seu sono quando ela estava em casa. Na sala peguei um papel, uma caneta e de maneira desajeitada lhe escrevi: mãe, fui na casa do Miguel, não quis te acordar, se quiser, me ligue, mas devo chegar depois do almoço, beijos te amo!
Posicionei o bilhete em letra grande em cima da mesinha da sala e saí. Cumprimentei o motorista e então seguimos a curta viagem.
O trânsito das ruas estava em seu típico ritmo. Observei os carros indo em direção aos seus destinos. Nesse meio tempo fiquei tentando imaginar o que seria de tão importante assim para eu ter que ir a casa dele. Miguel podia ser entusiasmado, às vezes beirando o exagero – um exagero adorável –, mas ele não me chamaria se fosse algo bobo ou banal. Ele não era o tipo de pessoa que ficava brincando à toa. Podia ser barulhento, mas ainda assim, era alguém sério quando tinha de ser.
Eu não conseguia pensar em nada que pudesse ser tão extraordinário assim ao ponto de ter que me deslocar de casa numa manhã de sábado, principalmente num dia de folga. Em meio aos pensamentos, senti o carro desacelerar até finalmente parar em frente a uma casa grande de três andares. Miguel já se encontrava em frente ao enorme portão branco de sua residência com um sorriso largo no rosto. O garoto de cabelos castanhos claro riu debochado quando notou minha expressão de "é melhor isso ter valido a pena ou eu te quebro", enquanto eu me soltava do cinto de segurança.
Miguel era "riquinho". Ok, ele não gosta que eu o chame assim, fica ofendido. Digamos que ele vive uma vida confortável em termos de status social. Ambos os seus pais são empresários, donos de algumas metalúrgicas espalhadas pelo país. Isso consequentemente rende grana suficiente para morarem em uma casa grande e confortável. Alguém de fora ao ver as posses da família e seu alto valor aquisitivo poderia vê-los como arrogantes ou algo do tipo. Mas ninguém que os conhecia os enxergavam como esnobes. Não. Na realidade, os Mendonças eram pessoas muito gentis e boas. Depois que você os conhece descobre o quão incríveis são. E o filho herdou fortemente essa parte da família. Um garoto doce, carismático e gentil.
Ele entregou uma nota de dinheiro e desejou um bom dia ao motorista que igualmente lhe agradeceu e foi-se embora. Miguel voltou-se para mim e me encarou com os olhos brilhantes.
— Você veio! — disse sorridente. Dei de ombros.
— Ou eu vinha ou você me encheria o saco o dia inteiro — respondi caminhando ao seu lado para dentro do portão.
Olhei de lado para ele, havia algo errado.
— Então, essa coisa é assim tão legal que você nem dormiu direito? — questionei gesticulando as mãos.
Notei ele sorrir e em seguida suspirar profundamente.
— Você me conhece tão bem… — disse baixo e deixou os ombros caírem. — Não, eu não preguei os olhos nem um minuto sequer essa noite — falou olhando para o chão. Juntei as sobrancelhas em desconfiança.
— Hm, percebe-se. Você 'tá com uma cara péssima — eu disse tentando fazê-lo sorrir de novo. Lá estava o sorriso largo típico dele.
— Mas eu juro que por aquilo que está lá em cima no meu quarto — apontou energeticamente em direção ao seu quarto. — Ter perdido essa noite de sono meio que valeu a pena. E além do mais, mesmo se eu quisesse, eu não conseguiria dormir — falou fechando a porta atrás de nós.
Observei mais atentamente o garoto à minha frente. Estava com uma aparência ligeiramente cansada, fruto da noite mau dormida. Vestia uma bermuda xadrez e uma camiseta branca por debaixo de outra camiseta havaiana em tom alaranjado. Os cabelos estavam desalinhados, dando-lhe uma aparência um tanto quanto engraçada. Depois, virei-me para encarar a gigante sala de estar sem nenhuma presença de alguém à vista. A casa em si encontrava-se em um silêncio absoluto o que me fez questionar.
— Cadê os seus pais?
Ele pigarreou atrás de mim.
— Eu te disse que eles foram viajar ontem, você não se lembra? — perguntou se espreguiçando.
Ah.
— Verdade, eu acabei esquecendo…
De repente, Miguel começou a fazer alguns exercícios de alongamento improvisados e eu cruzei os braços esperando que ele me mostrasse logo o que ele tanto gostaria que eu visse.
— Céus, eu preciso de um café! — falou de olhos fechados alongando o pescoço e os braços. Abriu os olhos repentinamente e me lançou outro sorriso, dessa vez, um sorriso cheio de mistério. — Mas antes, eu vou te mostrar, vem.
Comecei a segui-lo.
— Eu não sei como você vai reagir a isso, mas te peço que vá se preparando, ok? — pediu enquanto íamos subindo as escadas.
— Como irei me preparar para algo que eu nem sei do que se trata?!
Ele parou no meio dos degraus fazendo-me quase esbarrar em suas costas.
— Eu sei que eu tô sendo vago. É que eu não sei como explicar. É tipo aquelas situações em que você tem que ver para crer, confie em mim, e apenas vai respirando fundo e se preparando.
Eu estava começando a ficar bastante desconfiada. Do que diabos tudo aquilo se tratava? Eu nunca pensaria maldade dele, mas no fundo eu estava começando a acreditar que Miguel tinha matado alguém e escondido o corpo, ou que eu me depararia com uma cena totalmente chocante assim que chegasse em seu quarto. Respirar fundo? Tentar imaginar do que ele estava falando só estava servindo para me deixar sem ar! Argh, odeio mistérios.
Quando chegamos ao segundo andar, seguimos pelo corredor.
— Me dá apenas uma dica — pedi.
Toda aquela tensão que ele estava criando deixava-me deveras curiosa e um pouco temerosa. Não respondeu de imediato, pareceu pensar por alguns instantes antes de me responder.
— Não é algo que se vê todo dia.
Grande coisa, pensei revirando os olhos. Eu poderia pensar em inúmeras coisas fantasiosas em minha mente. Teria lhe pedido por outra dica se não tivéssemos chegado à porta de seu quarto. Inconscientemente, prendi o ar ao passo que ele começava a virar a maçaneta. Não surta, repeti a mim mesma várias vezes naquele intervalo tenso entre ele girar a maçaneta e abrir a porta de uma vez. Tentei me preparar para o pior dos cenários que envolviam coisas terríveis em minha imaginação.
Miguel enfim abriu o cômodo e eu dei de cara com… o mais absoluto normal. Não havia nada ali além do que já tinha antes. Os posters na parede, a cama bagunçada, o computador, o videogame e a televisão em um dos cantos, tudo estava em seu lugar. Nenhum elemento ou cena anormal. Eu tinha os olhos arregalados ainda pensando que iria de fato me deparar com uma cena totalmente bizarra. Percebi que mal respirava direito e então puxei o ar profundamente para meus pulmões. Miguel sorriu e se aproximou da porta de seu banheiro.
— Ele está aqui dentro — disse baixo com o ouvido grudado na porta como se temesse que alguém do outro lado lhe escutasse.
Ele? Então agora se tratava de alguém?
— Do que você tá falando? Tem uma pessoa aí? Miguel, olha, isso já tá ficando estranho — admiti ainda parada na entrada do quarto.
O sorriso dele se desfez.
— Não é uma pessoa. Eu só…
— Você dizer isso não está ajudando em nada. Se não é uma pessoa, o quê é? Um animal? Um cachorro, um gato, o quê?
Miguel afastou da porta e ajeitou a postura, ficando sério de repente. Se eu não o conhecesse, diria que não havia nada de errado com ele, mas sabia quando ele ficava assustado e apreensivo. Miguel tinha a tendência de mexer os dedos das mãos quase que inconscientemente quando se sentia desconfortável com algo. E pude perceber ambas as mãos dele demasiadamente agitadas. Algo ali visivelmente o deixava nervoso.
— Não é uma pessoa, e também não é um animal. Mas calma — pediu quando abri minha boca para protestar. — É algo que tem vida, assim como você e eu. Só que não é algo que se vê todo dia.
Fechei os olhos e respirei fundo. Ele já havia me dito isso. Não era um animal, nem uma pessoa. Intrigante. Não restou- me opções, não consegui pensar em nada que não fossem essas duas alternativas. Definitivamente, tinha algo estranho ali, camuflado. Tive a vaga impressão de que ele esperava que a essa altura eu já tivesse descoberto do que ele estava falando. Mas, nada.
— Você tá me deixando bastante confusa. Só abre logo a porta — falei encarando-o de maneira mais assertiva. Quanto mais rápido aquele mistério acabasse, melhor.
— Certo…
De maneira lenta, Miguel girou a maçaneta, quase tão lento que tive vontade de eu mesma fazê-lo. Caminhei ao seu encontro, aproximando-se do cômodo acoplado ao seu quarto. Ele foi o primeiro a entrar, seguido por mim. Seus pés estavam nas pontas dos dedos tentando fazer o mínimo de barulho possível. Logo que adentrei o cômodo senti um cheiro desconhecido. Muito semelhante a um tronco de árvore queimado, no entanto, ao mesmo tempo que tinha essa característica senti um aroma vagamente doce misturado ao primeiro. Não era de todo agradável, porém, era muito peculiar.
À primeira vista, tudo dentro do toalete encontrava-se normal. Eu já estava ficando irritada, pensando que ele estava fazendo alguma espécie de brincadeira de mau gosto comigo.
— Miguel…
— Shhh! Ele está logo ali — disse e apontou para a área da banheira ao canto da parede, cuja escondida por uma cortina de plástico branca não permitia visualizar o que de fato tinha lá dentro.
Ignorei a sensação estranha que me apossou. Fazia calor naquele sábado, e ainda assim, um frio se apoderou de meu corpo. Meus braços se arrepiaram, e eu engoli a seco, tensa de repente. Miguel foi na frente, claro. O medo que de repente me assolou não tinha explicação. Quando ele chegou perto o suficiente, virou-se em minha direção, segurando firmemente a ponta da cortina plástica.
— Tá pronta? — perguntou de forma instigante. Tentei acalmar as palpitações em meu peito e me acheguei para perto dele. Meu olhos se firmaram na cortina tentando visualizar o que possivelmente tinha escondido ali. Nada, mas o medo repentino ainda continuava a me fazer questionar o que eu exatamente tanto temia. Não deveria ser nada demais. Talvez só uma tentativa de Miguel em me assustar, e se fosse isto, ele estava conseguindo.
— Ande logo com isso — sussurrei arfante.
Sem muitas delongas, Miguel puxou a cortina de uma só vez. Acredito que nesse momento meu cérebro demorou alguns poucos segundos para processar a imagem, mas assim que o fez, minhas pernas tremeram e vacilaram para trás. Ele foi rápido e me segurou. O ar fugiu dos meus pulmões.
— Mas, o que… o que é isso? — perguntei um tanto zonza ainda sendo segurada por Miguel. Não consegui desviar meu olhar para o que havia dentro da banheira. Simplesmente, aquela "coisa" captava nossa atenção. Sua estranheza causou certo choque em minha mente. Miguel ajudou-me a recompor.
— Um alien, alienígena, ET, as pessoas os chamam de vários nomes — disse ao meu lado, deu de ombros e aproximou-se da banheira.
A criatura estranha de pele acinzentada tinha o tamanho de uma criança de doze anos de idade. Parecia adormecida. A cabeça tinha um formato grosseiro, como se alguém tivesse apertado e modelado de maneira impensada, também era um tanto maior que o corpo, dando a impressão de ser pesada. O pescoço continha uns símbolos desconhecidos escritos em azul turquesa. Do pescoço para baixo o corpo tinha a forma humanóide, com exceção de que os pés não possuíam dedos separados, pareciam terem sido colados um ao outro.
O cheiro repugnantemente amadeirado e adocicado que tinha dominado o toalete estava muito mais forte do que anteriormente, e notei a banheira enlamaçada com uma viscosa gosma esverdeada, que só fazia sentido pertencer a criatura. Sua pele ligeiramente enrugada e grudenta dava a sensação de estar se derretendo lentamente em contato com o ar. Sua barriga estava inchada por algum motivo. Algumas dúvidas começaram a pairar em minha mente enquanto a observava. Será que estava apenas adormecida ou estaria morta? Seu corpo esguio e estranho aos nossos olhos não parecia ter sinal algum de vida. Tentei observar alguma pulsação em seu peito, no entanto, nenhuma pista de estar viva.
Parei de focar minha total atenção naquele ser e percebi que minha pele se encontrava tão eriçada e fria que parecia haver um ar condicionado em algum lugar dali ligado em sua máxima potência. Era tão extraordinário, mas também tão bizarro. Não podia crer que estava de frente para um extraterrestre. Contudo, a expressão de serenidade na peculiar face da criatura em nada me ajudava a me acalmar. Sendo sincera, alguns receios começaram a me levar a um pânico interno, misturado com uma ansiedade desconhecida.
— Podemos sair daqui, por favor? — perguntei sem desviar meus olhos de dentro da banheira.
Algo na expressão facial dela ativou um gatilho de perigo em meus instintos humanos de sobrevivência. Sua tranquilidade sendo um tanto inocente demais, beirando ao exagero, deixava um leve indício de que se ela abrisse os olhos se revelaria ser algo nada inocente e dócil. Suas feições demonstravam uma quase imperceptível intimidação, como se estivesse tentando avisar: não me toque, fique longe, não me acorde. E isto foi o suficiente para me fazer querer sair correndo dali.
À primeira vista você fica maravilhado, pensando se aquela imagem não é apenas fruto de uma ilusão criada pela mente. O cérebro demora a entender o que você está enxergando, e precisa de um momento para compreender do que realmente aquilo se trata. Você fica intrigado, um tanto desnorteado. A forma como o corpo daquela coisa chega a ser semelhante com os humanos te leva a criar um falso senso de empatia, principalmente por vê-la em um estado deplorável onde não se sabe dizer se está viva ou morta, toda coberta com aquela gosma. Podemos pensar: coitadinha, ela parece tão frágil. Eu pensei isto. Mas havia uma expressão arrepiante se você olhasse com cautela. Ou talvez fosse algo da minha cabeça. Poderia o medo, que de repente tinha me possuído, estar me manipulando e fazendo-me enxergar coisas além do que estava vendo? Poderia eu estar julgando errado aquele pequeno ser de aparência inofensiva?
Depois que Miguel e eu deixamos o toalete de seu quarto e descemos para o primeiro andar indo para a cozinha, respirei fundo durante várias vezes, puxando fortemente o ar, desta vez, menos denso e enjoativo do que o do quarto. De olhos fechados tentei organizar minhas ideias, não havia outra alternativa, tínhamos que fazer alguma coisa em relação àquilo, o mais depressa possível. Mas, enquanto eu caminhava preocupada de um lado para o outro pensando em como poderíamos resolver aquela situação da melhor maneira, Miguel decidiu preparar café como se fosse um dia qualquer. Para colocar-me a par do que estava acontecendo, contou como aquela coisa tinha parado dentro de sua banheira.
— Os meus pais saíram de viagem às oito da noite de ontem, assim como eu te disse — começou dando-me um olhar de censura em seguida.
“Foi uma noite normal, eu pretendia te chamar para dormir aqui para assistirmos a um filme, jogar videogame, mas você estava muito cansada, então eu sabia que você iria recusar. Então, os meus pais saíram e fiquei colocando algumas séries em dias, joguei online mais um pouco e fui dormir. Isto era por volta das uma da manhã. Não consegui dormir de imediato, tentei, tentei, e por algum momento eu estava quase adormecendo em um sono muito bom, quando de repente escutei um barulho no quintal de trás. Eu juro que não ia ver o que era, eu estava com muita preguiça de levantar e ir checar o que seria. Devem ter se passado uns dois minutos quando escutei de novo outra vez o barulho, parecia algo pesado e seco caindo no chão, então foi difícil de ignorar. Só resolvi ir ver o que era porque fiquei com medo de ser algum ladrão querendo invadir a casa. Primeiro, chequei as câmeras, mas não havia nada lá. Mas aquele barulho… aquele barulho me intrigou. Como não poderia ser nada? Fazer um barulhão daqueles e não ser absolutamente nada? Não fazia sentido. Daí fui verificar pessoalmente. Isto deveria ser às três da madrugada ou algo do tipo.
“Não consegui ver nada fora do normal, só que eu inventei de ir dar uma olhada na outra parte do jardim, perto daquele muro lá de trás, o que fica um pouco mais longe. E cara, achei muito estranho quando encontrei as plantas da minha mãe todas destruídas, tinha terra espalhada por todo o lado. Eu pensei: mano, a minha mãe vai me matar quando ver isso desse jeito. Porque eles voltam amanhã a noite, então vou ter que encontrar um jeito de arrumar aquela bagunça. Mas, voltando ao assunto, eu não vi nada além de um jardim quase todo destroçado. As plantas estavam muito amassadas, o que não fazia o menor sentido! Só se algo muito grande tivesse caído sobre elas. Então logo lembrei do barulho. Só poderia ser aquilo… porém, não via nada ali. Comecei a sentir um cheiro estranho vindo do outro extremo do quintal, e segui para ver se encontrava algo.
“É claro que eu fiquei com medo quando eu dei de cara com o alienígena. Minha reação foi querer correr pra bem longe e me esconder. Mas você sabe, o medo paralisa a gente, e foi o que aconteceu comigo. Fiquei parado lá observando o ET, esperando alguma ação por parte dele. Só que ele parecia debilitado demais para querer vir pra cima de mim ou algo do tipo. A única coisa que ele fez foi abrir aqueles olhos gigantes e estranhos e me olhar como que pedindo ajuda. Eu sei. Bizarro! Mas ele parecia estar mesmo pedindo ajuda. Então meu próximo passo foi pegá-lo e trazer pro meu quarto. Não consegui dormir de tanta curiosidade. Fiquei a noite toda checando se ele estava bem. E agora, aqui estamos nós."
Caramba, Miguel às vezes era burro demais.
— Espera, você por acaso não pensou se essa coisa tinha alguma radiação antes de pegar nela?! Digo, você nem sabe o que ela é. Essa coisa pode ser… pode ser extremamente perigosa.
Miguel tomou uma rosquinha na mão e revirou os olhos.
— É claro que sim! Mas o que queria que eu fizesse, hun? Deixasse ela lá fora no frio, desprotegida? Sinceramente, eu não esperava isso vindo de você. E honestamente eu estou me sentindo ótimo, não estou sentindo nada. Tô super vivo, não tá vendo?! — pela primeira vez em anos vi um Miguel estranhamente irritado. O tom de sua voz fez parecer que eu estava sugerindo o absurdo e crueldade de deixar uma criança recém nascida ao relento. — Sabe de uma coisa, eu nem deveria ter te chamado… Se eu soubesse que você não fosse compreender a situação…
Epa, mas o que diabos?! Eu lhe cortei no meio da fala e ri amarga.
— Desculpa, mas você achou mesmo que eu ia vim aqui, dar de cara com a porra de um alienígena e ficar numa boa?! Bem, se você pensou dessa forma, você é no mínimo idiota.
— Eu, idiota? Não, minha querida, tem um nome para a minha atitude de estar SALVANDO aquele ET, e o nome disso é SER HUMANO. Coisa que aparentemente você não conseguiu desenvolver. A sua frieza às vezes me assusta, garota.
Não aguentei e comecei a gargalhar, numa mistura de diversão com sarcasmo. Não podia acreditar no que estava ouvindo.
— Cara, não acredito que você me acordou num sábado para falar tanta porcaria. É típico de você querer bancar o MORALISTA em todas as situações. Tu tá mesmo defendendo uma criatura que nem conhece?! Ela pode acordar a qualquer momento e MATAR a gente bem aqui! — falei alto, rindo, dessa vez de nervoso. — Se você quisesse ter tomado uma atitude dignamente "humana" poderia ter ligado para as AUTORIDADES COMPETENTES PARA LIDAR COM ESSA SITUAÇÃO!
Miguel me olhava de olhos arregalados, devorando uma rosquinha atrás da outra, sem parar. O rapaz com profundas olheiras já estava na sua segunda caneca de café. Ele deveria estar mesmo com muita fome. Eu, por outro lado, continuei falando em tom ácido. Realmente, não deveria ter atendido ao seu chamado.
— Cala a boca, sua chata! — ele disse de repente, raivoso e com a boca cheia, esfarelando sua camiseta com o açúcar das rosquinhas.
Sarcasticamente, perguntei se ele tinha a pretensão de tornar o alienígena em algum tipo de animal doméstico. Antes mesmo de ele responder, até sugeri um nome: et bilu. Gargalhei mais ainda quando ele se levantou da cadeira todo afoito e irritado, respondendo-me que sim, ele iria cuidar da criatura.
Entramos novamente em uma discussão acalorada, oscilando entre tons de voz alterados e insultos dignos de uma briga entre crianças da quinta série. Miguel defendia a criatura como se fosse um parente ou até mesmo um filho, o que me surpreendeu, nunca tinha visto ele ficar tão furioso quanto naquela manhã de sábado. Em um certo momento me controlei para não ser mais sarcástica ou afrontosa, e tentei lhe convencer da forma mais paciente possível a darmos um jeito naquilo. Tentei colocar em sua cabeça dura que deveríamos ligar para o governo, pois eles saberiam o que fazer. Ao que Miguel discordou fortemente dizendo que eles fariam experimentos horríveis nela e a tratariam da forma mais desumana, algo ao que ele não poderia ser cúmplice em nenhuma hipótese.
A minha próxima tentativa de convencimento foi a chantagem. Falei que sabendo da situação eu não poderia sair dali sem acionar as autoridades. E eu estava falando sério, quanto mais eu me lembrava da expressão do alienígena, mais pavor eu sentia por saber que ele estava a poucos metros de distância de nós. Tal pensamento me levou a pegar meu celular do bolso da calça, ação que causou uma certa agitação em Miguel.
— Você não vai fazer isso — ele disse baixo, encarando-me cauteloso.
— Eu vou. É o certo a se fazer…
Ele riu.
— Você nem sabe o número do governo — deu de ombros.
— Sem problemas, eu pesquiso no Google.
Nós nos encaramos sem sorrir. De repente o clima tinha ficado meio tenso de novo, e algo no olhar de Miguel fez-me perceber que ele também não estava brincando. Era a primeira vez que eu o via tão sério e irritadiço. Aquilo me impressionou; ele parecia perturbado. Imaginei que de alguma forma aquela irritação toda se devia ao fato de ele não ter dormido naquela noite. Rapidamente, consegui me esquivar quando repentinamente ele avançou em minha direção. Olhei para ele incrédula.
— Me dá o celular — pediu frustrado em sua tentativa de me tomar o aparelho.
Estávamos nós dois de lados opostos da mesa da cozinha se entreolhando, atentos a qualquer movimento um do outro.
— Miguel, eu não te entendo, cara. Por que você tá agindo desse jeito? — questionei apertando o celular em punho cerrado.
— Eu é que não estou te entendendo! Você é minha melhor amiga, deveria estar me apoiando — desabafou entristecido.
Ele começou a caminhar em direção à minha direita, então fui para o sentido oposto.
— Só porque eu discordo de você não significa que deixei de ser sua amiga. Na verdade, deveria estar me agradecendo por eu estar sendo sensata e tentar fazer a coisa certa.
Miguel sorriu tristonho, e lançou-me uma expressão de desapontamento.
Não, ele não ia me fazer eu me sentir mal comigo mesma. Eu estava certa, e ele errado! Dei uma breve olhada para a escada de acesso ao segundo andar. Quando encontrei uma brecha, corri e Miguel veio atrás de mim tentando me alcançar. Eu poderia muito bem ir para o terceiro andar e me trancar num dos quartos e de lá fazer a ligação para algum órgão do governo. Se eu não fosse tão atrapalhada e não tivesse tropeçado em um dos degraus, dando vantagem de alguns segundos para Miguel.
— Mas que droga, me dá o celular, é só me dar o celular — falou alto quase alcançando meu pé.
Sentindo uma pontada dolorosa no tornozelo que tropeçou no degrau atapetado, levantei-me de maneira desajeitada e voltei a correr tentando ignorar a dor. Maldito Miguel! Olhei para baixo e observei que ele estava mais próximo do que imaginava.
— Você se machucou? — perguntou parecendo preocupado atrás de mim.
— Não, por que acha isso? — continuei correndo da forma mais rápida que me era possível.
— Vamos parar com isso, por favor, você se machucou, vamos cuidar do seu tornozelo. Juro que não quero mais seu celular.
Aham, conta outra.
Ele não quer mais meu celular e no entanto continua tentando me alcançar. Meu tornozelo latejava levemente, pensei então em parar, mas ao vê-lo correndo atrás de mim me fez continuar rumo ao terceiro andar.
Comecei a subir as escadas com ligeira dificuldade. Miguel, atrás de mim, tentava me convencer a darmos uma rápida trégua. Não aceitei. Eu sabia como ele podia ser teimoso, e tinha certeza de que não pararia com aquela pequena perseguição até que cumprisse seu objetivo.
Honestamente, eu não estava compreendendo o comportamento dele. A impressão que me passava era que realmente não queria que ninguém mais soubesse da existência de sua descoberta. Estava intrigada, ele era uma pessoa inteligente, mas naquele caso estava deixando as emoções tomarem conta de si. Qual era o medo dele de o governo ir até a casa dele e capturar o alienígena? A desculpa de que eles seriam cruéis com ela não funcionou comigo. Deveria ter algo a mais ali. Um fator que ou tinha me passado despercebido, ou que eu totalmente desconhecia.
Cheguei ao terceiro andar com Miguel na minha cola. Eu disse, ele não desistia fácil. Ultrapassei o corredor principal escutando os passos dele ainda mais próximos. Reprimi um xingamento. Sem pensar duas vezes virei ao corredor da direita onde havia três cômodos vazios. Corri, dessa vez mais rápido em disparada em direção a última porta.
Seria no mínimo frustrante se aquele quarto estivesse trancado, com certeza. Mas, sem pensar duas vezes, tomada pela adrenalina, agarrei a maçaneta e forcei a porta a abrir passagem para mim. Senti uma das mãos de Miguel tentando segurar meu braço, mas consegui me desvencilhar a tempo. Entrei e fechei a porta num barulho alto, do outro lado Miguel tentava forçar sua entrada, enquanto eu empurrava a porta para tentar mantê-la fechada.
— Deixa… deixa eu entrar — ele disse em meio a grunhidos.
— Nem pensar!
Quando minha mão alcançou a chave da porta não hesitei em girá-la, finalmente trancando o quarto. Suspirei aliviada ao que pareceu uma eternidade, enquanto Miguel batia na porta chamando meu nome e pedindo desculpas. Ele bateu na porta um milhão de vezes, mas não abri. Era óbvio que eu não abriria até ligar para os órgãos governamentais. Passou-se, acredito, que dez minutos até ele finalmente desistir. Sorri vitoriosa enquanto procurava algum número relevante no Google. Na minha breve pesquisa encontrei um órgão que achei que poderia tomar conta da situação, cliquei num dos telefones.
Fui para a janela enquanto o telefone chamava. Abri as cortinas e suspirei fundo, o sol começava a brilhar forte lá fora. Me engajei em roer as unhas em nervosismo esperando que alguém me atendesse. Observei um garoto andando de bicicleta e alguns carros dirigindo em média velocidade pela rua pouco movimentada do bairro. Quando se completaram vinte minutos esperando ser atendida desliguei o celular, furiosa e, decidi tentar novamente. Lá se foram mais vinte minutos inúteis.
Caralho!
Eu quis tentar ligar novamente, mas algo me disse que teria o mesmo resultado: nada. Suspirei em profunda frustração e guardei o celular no bolso da calça. Cruzei os braços e pensei no que eu poderia fazer. Não restavam muitas opções. Refleti por alguns instantes. A imagem do alienígena não era das mais agradáveis, porém, a debilitação em que se encontrava fazia uma pontinha de piedade dentro do meu coração ser cutucada. Talvez eu estivesse exagerando, talvez o medo do desconhecido tenha me feito sentir essa apreensão absurda. Miguel… eu sabia que ele tinha todas as boas intenções para com a criatura. Era um rapaz de bom coração, que sempre se preocupava em ajudar o próximo, e aquilo não seria diferente nem mesmo com um ser de outro planeta. Respirei fundo por cerca de uns dois minutos, tentando encontrar soluções, mas elas não apareciam. No final das contas, só restava apenas uma.
Talvez eu devesse ajudar Miguel em sua ideia maluca de cuidar daquela coisa, mesmo que não soubéssemos como fazê-lo. Teríamos que descobrir como nos comunicar com ela, descobrir do que se alimentava e encontrar uma maneira de fazê-la se adaptar ao nosso mundo já que obviamente não tínhamos um foguete espacial para mandá-la de volta ao espaço.
Aproximei-me da porta e chamei por ele, acreditando que estaria ali do outro lado. Era estranho ele não estar mais tentando abrir a porta.
— Miguel? — chamei desconfiada.
Silêncio.
Chamei mais três vezes. Ele poderia estar fazendo algum tipo de brincadeira comigo.
— Miguel… eu vou sair, mas... — me interrompi para ver se conseguia alguma resposta dele, nada de novo.
— Você tem que me prometer que não vai fazer nada de estúpido. Me prometa não tentar pegar meu celular… eu desisto de tentar ligar para o governo ou quem quer que seja, tá legal? — terminei esbravejando contra a porta.
Respirei fundo.
— Tô saindo. Não pule em cima de mim, por favor — destranquei a porta lentamente.
Abri a porta do quarto lentamente, com a cabeça entre o vão, verifiquei o corredor. Não havia sinal algum de alguém ali. Quando vi que era seguro, saí.
Em passos cuidadosos e lentos caminhei pelo corredor. Ainda estava desconfiada de todo aquele silêncio, como havia dito antes, Miguel não desistia facilmente. Então, ele não estar ali tentando me impedir de fazer qualquer coisa, era no mínimo peculiar. Por via das dúvidas, chequei também pelo caminho todas as portas daquele andar, mas só me deparava com cômodos vazios. Miguel não estava mesmo ali. Ou talvez estivesse se escondendo muito bem.
De repente, do nada, senti novamente aquele estranho arrepio de mais cedo se formando em minha nuca. Não era um arrepio comum, descia como uma lâmina cortante pela minha coluna. Nunca havia sentido algo semelhante. Deus do céu, por que eu me sentia daquela forma?
Tentei chacoalhar aquele medo bobo para o lado e seguir meu caminho, mas aquele arrepio continuava. Pairando em mim, gélido, agoniante.
Em tom elevado, chamei o nome de Miguel mais uma vez para o caso de ele não ter escutado das vezes anteriores. Nada. Naquele ponto, já era para ele ter vindo na minha direção, se estivesse se escondendo. Aquela atitude quieta e silenciosa não era típica dele, e de certa forma já começava a causar em mim um grande incômodo.
Segui ainda lentamente pelo corredor. Engoli a seco, um sentimento esquisito estava começando a tomar conta de minha mente, causando uma agitação em meu peito. Algo ali não estava certo. Se ele não estava naquele andar, provavelmente estaria em seu quarto ou no andar inferior. Talvez ele tivesse de fato desistido daquela briga infantil.
Era bizarro o silêncio que se fazia por onde eu andava. Um silêncio desconfortável, diria. Pensando nisso, o temor que pairava sobre mim, aumentou. Falei comigo mesma para se acalmar, não havia razão para aquele medo alojando-se em meu corpo.
Parei.
E se algo tivesse acontecido entre o tempo em que eu estava tentando contatar as autoridades? Eu tinha ficado por pelo menos quarenta minutos tentando falar com alguém. Não, não. O que poderia ter acontecido? Nada. Não havia absolutamente nada que pudesse ter acontecido nesse meio tempo. Miguel devia estar no quarto cuidando daquela "coisa" ou voltado à cozinha para comer mais das deliciosas rosquinhas.
É claro, estava tudo bem. Assim que eu o encontrasse pediria desculpas pela maneira como tinha agido, e me ofereceria para ajudá-lo. Não poderia deixá-lo sozinho nessa, era meu melhor amigo, e sei que ele tinha as mais boas intenções para ajudar aquele o ET, ou o que quer que fosse aquilo.
O arrepio continuava em minha nuca me incomodando quando cheguei ao topo da escada que dava para o segundo andar. No longo corredor seguia-se uma fileira de quartos de hóspedes, um escritório, uma pequena biblioteca e o quarto de Miguel. Quando pensei em chamá-lo de novo, minha boca não se moveu. Alguma coisa, talvez uma intuição, ou espécie de instinto fez-me calar, por alguma razão. O corredor encontrava-se vazio, e o silêncio dali era ainda mais desconfortante. Decidi então descer os degraus sem fazer barulho. Novamente, a intuição ou instinto me gritavam para ser o mais silenciosa possível. E olha, o medo em mim dizia- me que eu estava sendo mais nada além que sensata.
Mas claro, não havia razão para aquilo, não é? Estava tudo bem, não tinha o porquê de ficar amedrontada daquele jeito. Então, por que a cada passo dado a atmosfera parecia tornar-se mais e mais densa…
Uma náusea subiu quando aquele odor amadeirado e adocicado de mais cedo invadiu de repente minhas narinas, meus pulmões, revirando meu estômago. Tive de parar mais uma vez ou vomitaria. Abaixei minha cabeça e lutei contra a repulsa.
Tudo aquilo parecia estranho demais. As sensações, o medo, a apreensão. O sentimento de aflição como se alguma coisa tivesse acontecido.
De repente, meu sangue gelou. Até ali, não havia percebido o líquido translúcido de cor estranha abaixo dos meus pés, e levantando novamente a cabeça, visualizei algumas partes do carpete ao longo do corredor, sujas por uma gosma esverdeada. Na verdade, todo o carpete estava tomado pela gosma. Vire- me para trás, para a escadaria que dava para o terceiro andar onde eu estava a poucos minutos. Constatei que o líquido gosmento ia por toda direção do andar acima e eu não havia notado, ele seguia-se num rastro fraco quase desaparecendo. Meu sangue continuou gelado, e minha boca ficou seca. Virei- me para frente, e notei que a gosma seguia na direção do quarto de Miguel e mais a frente. Por ali, o conteúdo era mais viscoso e nítido. Fechei os olhos e pude sentir algumas lágrimas se formando. Alguma coisa estava terrivelmente errada.
Entretanto, eu tinha de verificar. Senti- me tão fraca repentinamente que fiquei por um momento com as mãos apoiadas nos joelhos, lutando contra as lágrimas salgadas e, contra o aroma repulsivo pairando pelo ar. Olhei, desalenta, em direção ao quarto. Meus instintos me alertavam para não ir até lá, me diziam para correr o mais rápido possível e não olhar para trás. Sacudi a cabeça, não podia fazer aquilo com meu melhor amigo! Precisava verificar se minhas suspeitas não eram apenas fruto da minha imaginação e temor.
Minhas pernas pareciam gelatinas de tão moles que precisei juntar forças para não cair e, prosseguir andando. E, ah, aquele maldito cheiro enjoativo ainda continuava a embrulhar meu estômago. Ao passo que na minha cabeça, eu repetia um mantra de que tudo estava bem, que não tinha nada o que temer. Mas meus sentidos apontavam para o contrário.
Uma eternidade parece ter se passado entre meus passos temerosos e coração acelerado. Será que eu deveria seguir o conselho de minha intuição e partir dali sem ponderar em olhar para trás? Pois, cada vez que me aproximava do quarto alguma coisa lá no fundo me cutucava e dizia- me que iria me arrepender de ter prosseguido.
O conteúdo gosmento, e o cheiro nauseante encontravam-se insuportavelmente mais acentuados naquele ponto. Meus tênis pressionavam- se contra o chão e produzia um barulho asqueroso da gosma contra o solado.
Prendi a respiração quando me aproximei o suficiente da porta aberta. Só precisava dar mais um passo, que seria decisivo para confirmar ou desmentir minhas suspeitas. O silêncio era tanto que eu podia escutar dentro dos meus ouvidos as batidas frenéticas de meu coração. O peso instalado em minhas pernas fez aquela ação ser tão dificultosa… Mas era necessário só dar mais um passo, e absurdamente hesitate, dei.
A minha boca se abriu. Se gritei, não teve som, na verdade não houvera mesmo, talvez os meus olhos tenham gritado de pavor, pois a minha voz tinha desaparecido.
Miguel estava ali, de fato, mas morto com uma poça enorme e ensanguentada abaixo de seu corpo estirado no chão. Senti que meus olhos queriam chorar, mas as lágrimas não desciam, fiquei apavorada demais para fazer qualquer coisa senão ficar paralisada observando o horror da cena. Seu corpo desfalecido, e suas vísceras brutalmente expostas, estava próximo ao banheiro. Não houvera nem tempo de tentar lutar contra seu assassino sanguinário. As entranhas dilaceradas tinham sido respingadas contra os móveis, os posters e por todo o cômodo devido a violência com a qual havia sido estripado.
Deveria eu me aproximar e lamentar a morte trágica dele? As lágrimas estavam congeladas, assim como meu corpo, meus sentidos, minhas ações. Não conseguia me mover. E sabia que pela expressão de sofrimento pausada em seu rosto mortificado eu deveria fugir dali sem pensar duas vezes.
"Corra!", uma voz latejava em minha cabeça. Mas meus pés pareciam grudados ao chão.
Ouvi um estalo molhado no banheiro e mesmo assim não conseguia me mover. Eu nem precisava ver para saber do que se tratava. Sabia muito bem quem estava ali. E aquela "coisa" deveria ter sentido minha presença, pois os estalos molhados de repente começaram a se aproximar para fora do banheiro.
O pouco de auto preservação que ainda tinha dentro de mim fez-me dar um pequeno passo trás. E meu corpo parece ter retornado à vida quando o alienígena deformado apareceu à porta, dobrado de tamanho. Com seus modos desajeitados e corpo esquisito, olhou-me com os gigantes olhos cor de carmesim. Um olhar de mórbida curiosidade, e no fundo, homicida.
Não foi necessário ver para crer que ele começaria a vir na minha direção, pisando nas vísceras dilaceradas de Miguel pelo caminho. Meu sangue voltou a ficar quente. Escorreguei na gosma viscosa quando me pus a correr. O cheiro me impregnou, sujando minha calça, meus braços e meu rosto na queda. Levantei- me com pressa e dificuldade. O lance de escadas para o andar debaixo também encontrava- se enlameado pela gosma repugnante. Escutei os passos molhados do alienígena atrás de mim. Sem pensar, apoei minhas mãos no corrimão e sem jeito desci escorregando pela escadaria, ficando ainda mais suja que antes. Se não fosse pela adrenalina que agora tinha se apossado de meu corpo eu certamente teria vomitado para fora até minhas tripas.
Foi uma desagradável surpresa encontrar na sala outro alienígena, este, menor que o anterior. Mas o que é que estava acontecendo? Seria aquele o mesmo, ou haveria mais daquele maldito?!
O pequeno ser também possuía os olhos carmesim, e assim que me viu fez uma brusca menção de vir em minha direção.
— FIQUE LONGE DE MIM! — gritei a pleno pulmões, o que pareceu assustá-lo.
De trás do sofá, apareceu outro, e depois outro e mais um. Quatro alienígenas em miniatura de corpos esguios gosmentos e aparência grosseira. Parecia que alguém havia pegado um molde e os modelado de qualquer forma. Ambos possuíam os olhos carmesim, escondendo por detrás a natureza assassina. Deveriam ser crias da maldita que vinha andando desajeitada pela escada. De certo, eu não queria descobrir o que queriam, ou qualquer tipo de informação sobre os mesmos, só queria sair dali.
Corri, o corpo gelado pelo pavor e pela gosma repugnante sobre minha pele. Avancei para a porta de entrada e sai para fora da casa. Fui recebida pela brisa noturna. No alto, a lua cheia brilhava majestosa. Não fazia sentido já ser de noite, quando cheguei aqui ainda não era nem meio-dia. Outra estranheza foi reparar todas as casas com as luzes apagadas junto dos postes. Apenas a lua iluminava a rua.
A impressão é que o bairro estava vazio, que não havia mais nenhum morador, apenas os Mendonças. Dando uma olhadela para trás, a porta da casa deles ainda aberta, notei que todas as luzes também haviam sido apagadas.
Um barulho alto ecoou pelo céu noturno, aproximando- se, vindo ao longe. Até uma nave gigante em formato de disco surgir de repente no céu, tapando minha visão da lua e das estrelas. Seu som, ensurdecedor, e as bordas, iluminadas com luzes ofuscantes. Onde provavelmente era o hagar começou a se abrir esfumaçante.
A abertura começou a sugar tudo abaixo da nave. Quando percebi, corri para uma árvore próxima e me agarrei ao seu tronco. Alguma coisa pegajosa agarrou- se as minhas pernas. Eram os pequenos aliens com suas mãozinhas asquerosas tentando me puxar.
— Saí, saí! Me deixem em paz! — exclamei tentando me manter presa ao tronco.
Eu não sabia se me deixava ser levada para cima ou tentava lutar contra aqueles demônios. Lá em cima, a nave ressoou um barulho terrivelmente agudo causando dor aos meus tímpanos. Não bastasse isso, eu tentava me livrar dos diabinhos gosmentos, mas dois deles se prenderam as minhas pernas. E vendo que me debatia contra eles, fincaram suas afiadas unhas em minha pele. Meu grito foi silenciado pelo barulho infernal da nave acima de nós. Foi em vão minha tentativa de manter-me abraçada a árvore, a sucção acima de mim ficara mais forte. Os diabinhos acinzentados pareciam se divertir com meu ávido desespero. Suas unhas pareciam ácido corroendo a minha carne de dentro para fora. Não tive escolha a não ser soltar-me do tronco, minha última esperança de salvação. Fui levada aos ares com as criaturinhas enfincadas em minhas pernas, rasgando-me.
Fui abduzida pela enorme nave, junto daqueles seres agarrados a mim. O meu destino não era de todo desconhecido. Eu sabia que pela maneira violenta que enficavam as unhas asquerosas em mim, e seus dentes pontiagudos dentro daquelas bocas horripilantes, eu teria o mesmo ou, pior destino que Miguel.
(22/08/21)
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