A DANÇA DA LUA

A gigantesca nave cruzava as lacunas de deslocamento da Via Láctea há pelo dois mil e quinhentos dos nossos anos, mas para os habitantes da embarcação cósmica o recorte de tempo pouco significava, por conta das incontáveis diferenças estruturais que os colocavam longe dos traços característicos que nos são familiares.

O veículo de transporte era liso, comprido e achatado. Exibia bordas arredondadas e media cerca de seis quilômetros da proa à popa, com um quilômetro e meio de altura. Era revestido por placas luminosas compostas por células capazes de absorver a radiação do espaço que servia de ingrediente para a mistura química a qual formava com a junção ao elemento 115, principal item dos tanques de combustível.

O colosso reluzente irrompia a galáxia comprimindo o espaço-tempo à sua frente, expandindo-o logo em seguida, criando, assim, uma bolha ao redor de sua estrutura onde a realidade temporal em seu interior se interpunha entre a distância que vencia e a passagem das eras.

Todo o interior da nave parecia ser preenchida por uma amálgama levemente gelatinosa que fazia as vezes do que seria comum esperar do próprio ar. Os ocupantes do espaço moviam-se pausadamente na maior parte do tempo, como se vislumbrassem a real necessidade de fazê-lo, no entanto, eram capazes de se deslocar por aquela mistura com incrível velocidade se assim o quisessem ou precisassem.

Na cabine principal de controle, o Comandante mirava o imenso terraço panorâmico postado diante dos seus olhos, mas pouca importância dirigia aos flashes de luzes que desciam como cascatas laterais pela tela envidraçada, pois cada possível obstáculo ou contratempo era eliminado pela correção automática de curso com, pelo menos, dez anos comuns de antecedência. Para ele, o que realmente interessava era a proximidade das coordenadas do ponto de destino que o computador central incutia, naquele momento, diretamente à sua mente.

O líder emitia ordens de comando para aqueles que o cercavam sem proferir uma só palavra, há muito aquela espécie havia suprimido a necessidade de comunicação verbal, o que consideravam um desperdício de energia prática, em favor de uma conexão mental direta entre indivíduos próximos uns dos outros. Para os que distavam, a interface de repetição tratava de localizar emissor e receptor pela identidade biológica de cada um, compreendendo, assim, uma interminável cadeia de diálogo.

O comandante trajava uma espécie de véu metálico que ondulava sutilmente com seus movimentos. A despeito de uma tonalidade um pouco mais avermelhada, em destaque às matizes alternantes de prata, ouro, azul e lilás que brilhavam mescladas, o traje era rigorosamente igual os dos demais tripulantes.

Como diferencial, o líder dispunha apenas de um aro dourado adornado por uma pequena pedra vermelha e brilhante ao redor de sua imensa cabeça, da qual oito apêndices eram projetados. Destes, quatro ganhavam inequívoco destaque. Um par alongava-se mais do que todos os outros para baixo, numa visão antropomórfica do que seriam pernas, ao passo que outro par flutuava mais rente à cabeça, num rascunho de braços. Os tentáculos restantes eram menores e serviam de apoio para o desempenho das tarefas principais.

Com um movimento sinuoso de um dos braços, como era peculiar, o líder fez surgir incontáveis blocos brilhantes e coloridos diante do painel principal. Logo, seguindo um novo comando, as construções holográficas passaram a se misturar e exibiam uma sucessão de imagens que anteviam o destino final: o sistema planetário regido por uma estrela amarela de quinta grandeza.

– Veja, senhor – observe esses gigantescos planetas gasosos – jamais poderia vislumbrar um espetáculo de tamanha magnitude.

Os ocupantes daquela nave vinham de um planetoide frio e escuro, cuja vida florescera em águas densas e profundas que delimitavam quase por completo o espaço de sua terra natal. Os imensos olhos, próprios para desvendar os segredos das trevas subaquáticas, arregalavam-se ainda mais diante da magnitude das imagens formadas em altíssima resolução.

– Aqui, vejam – apontava, com um dos tentáculos, o segundo em comando – aqui onde esse vasto cinturão de asteroides orbita havia um rico planeta que foi destruído pelo embate entre civilizações, um descabido ato de selvageria.

– Sim, tudo o que restou são esses vestígios de pedras, fragmentos do que fora um lar pleno de vida.

– Nada disso importa – interrompeu o comandante – a despeito do nosso destino, todo esse sistema planetário está morto há muitas eras, incluindo o planeta vermelho que já fora a casa de uma civilização relativamente avançada, mas perdida pela guerra diante do que um dia compreendera esse cinturão de rochas. Hoje, meus amigos, apenas traços incompreendidos de sua próspera era encontram-se marcadas no solo de seu arenoso e vermelho solo. Não dispensem atenções às reminiscências de um povo tão vil.

– Nossa panspermia floresceu no terceiro planeta a partir do sol amarelo. Nossas sementes espalhadas no cosmo encontraram morada e cresceram nos vastos mares de águas azuis e límpidas, nossos irmãos distantes usufruem de infindáveis víveres numa cadeia biologicamente aceitável às nossas necessidades.

– Comandante, eu ainda não acredito que exista tamanho paraíso. Um imenso planeta constituído em sua maior parte por águas translúcidas. Ora temperadas pelo calor que jamais experimentamos, ora gélidas como a lembrança mais tenra de nosso lar.

– Nossa missão é abrir caminho para que os que ficaram em casa possam chegar em um ambiente minimamente adaptado para as necessidades que nos definem A artificialidade de nossa existência passará a caminhar lado a lado com a exuberância natural vivida por aqueles que nos precederam. Porém, sem a agressividade inóspita do ambiente hostil que nos moldou fortes e impeliu o desenvolvimento de nossa nação. Hoje o desenvolvimento é intrínseco ao que somos, e diante das possibilidades desse planeta azul alcançaremos uma glória jamais vista .

– Espero não termos problemas com os primatas nativos da parte sólida do planeta.

– Não teremos. Eles jamais perceberam a magnitude dos nossos irmãos que habitam seus mares. Sua civilização desenvolveu-se olhando para cima, não para baixo. Viveremos e floresceremos sob seus olhos sem que ao menos saibam que ali estamos. E, se notarem algo, seus próprios interesses travestidos de crendices nos deixarão em paz. Nossa natureza é pacífica e assim sempre será.

De súbito, a refração causada pela desaceleração causou um leve mal-estar nos membros da tripulação que estavam na cabine, algo não sentido pelos demais ocupantes da nave. A embarcação saíra do modo de deslocamento acima da velocidade da luz para entrar em curso antigravitacional padrão.

– Vejam, senhores. O esplendor no novo lar.

O terraço panorâmico exibia em tempo real a órbita do terceiro planeta e seu satélite natural. Mas, a estupefação inicial pela primeira parte da missão ter sido alcançada deu lugar a um sinal de estranhamento entre os presentes.

– Comandante – pediu a palavra o Imediato – há algo errado. A história trazida por nossas sondas enviadas há bastante tempo dava conta de um planeta azul, característica inerente dos nossos sonhados mares. Mas o que vejo não passa de uma rocha escura e tão seca quanto seu irmão vermelho.

O líder da missão nada dizia, apenas observava com suas imensas órbitas oculares a imagem desnecessariamente relatada por seu subalterno.

– E isso não é tudo – complementou o subcomandante – a lua do planeta está partida. Observem, há, pelo menos, um quarto do seu corpo rochoso desgarrado da parte principal, ambos os fragmentos executam órbitas concêntricas.

– Não, não, isso não é possível.

– Sim. É possível – clamou o líder – como fomos estúpidos. O relatório de nossas sondas nos mostrou o passado desse planeta. Olhávamos e sonhávamos por algo que já não existe mais. O tempo para a espécie dominante desse planeta e para a nossa é desproporcional e não levamos esse fato em consideração em nossos cálculos. Jamais poderia imaginar que em um espaço tão curto de tempo algo tão devastador pudesse acontecer. Vamos nos aproximar para averiguarmos in loco o cenário desse planeta.

A nave imprimiu mais velocidade e, em pouco tempo, pairava sobre a superfície desolada do planeta. Tudo o que se mostrava eram ruínas, sobretudo as formadas por pedra bruta. Quase nada de concreto, ferro, aço ou algo do tipo se exibia em qualquer destroço que fosse, não obstante esqueletos constituídos por ligas sem qualquer denominação apropriada.

As sondas de reconhecimento lançadas pela embarcação percorriam em grande velocidade a circunferência do planeta, os dados trazidos exibiam uma atmosfera altamente radioativa e tóxica, não havia nenhum vestígio de água em nenhum estado. Era como se a vida nunca tivesse existido ali. A superfície do planeta era estéril e seca.

– O que será que aconteceu aqui, Comandante?

– Acredito que o mesmo que ocorre quando espécies beligerantes e primitivas se desenvolvem. Ou destroem uns aos outros, ou a si mesma. Vejam, aquelas estruturas metálicas que pululam aqui e ali são restos de naves, provavelmente de combate, as sondas indicam a composição principal como uma variação de adernírio.

– Uma de nossas principais ligas metálicas.

– Sim. É uma variação, mas o teor principal de leveza, resistência e maleabilidade está lá, assim como fortes indícios de elemento 115.

– Uma guerra?

– Sim, algo tão devastador que partiu a lua do planeta e aniquilou toda a vida.

– E nossos irmãos nos mares, Comandante?

– Todos mortos, assim como todas as espécies desse pobre lugar. As sondas não registraram qualquer sinal de vida na superfície. Não há mais nada aqui. Partiremos de volta ao lar. Uma longa jornada nos espera.

A nave se distanciava do solo com extrema leveza e rumava para a estratosfera, quando um estalido sônico fora percebido por toda a equipe de comando e uma sucessão de pontos térmicos surgiu nos blocos luminescentes de imagem. Com um gesto do tentáculo direito, o Comandante incutiu uma mensagem diretamente à mente de todos na imensa nave.

– Vida! Retornaremos.

O colosso dourado e reluzente descreveu uma manobra por sobre seu próprio eixo, desafiando as leis conhecidas da física.

Os pontos quentes espalhavam-se por todo o painel de blocos. Era como se a vida brotasse do solo. Poderosas lentes aproximaram a imagem em tempo real para a cabine de comando e tudo que era ali mostrado para os ocupantes era compartilhado para todos os demais na nave por intermédio da repetição telepática.

Eram habitantes bípedes do planeta, pelo menos assim os viajantes do espaço os definiram pela comparação que conheciam. Os seres saíam das entranhas da terra aos montes, de todas as direções. Eles usavam adereços atrelados às narinas, de certo para filtrar o ar nocivo. Eles trajavam túnicas prateadas com capuzes sobre as cabeças e, complementando a ornamentação, faziam uso de óculos com lentes escuras.

Os navegantes assistiam estarrecidos a cena que se desenrolava diante de seus olhos. Eram milhares de pessoas que caminhavam em filas sincronizadas. Logo, as linhas passaram a executar movimentos coordenados numa mescla de marcha e dança. O fenômeno ocorria em diferentes partes do globo, seja naqueles que o fuso horário determinava as horas de luz, seja nos dominados pela noite.

Do interior da nave não era possível perceber, mas todos cantavam num mesmo idioma algo que dizia: “Oh lua, derrame sobre nós toda a sua luz. Toque essa terra para a nossa salvação.”

As pessoas sorriam, cantavam e dançavam, bradando a plenos pulmões os versos que ecoavam no ar para serem finalmente captados e traduzidos simultaneamente para os visitantes.

– Mas o que será isso, Comandante? O que querem dizer? O que faremos agora?

“Oh lua, derrame sobre nós toda a sua luz. Toque essa terra para a nossa salvação.”

– Nada. Apenas observaremos, tomaremos nota e aprenderemos com essa manifestação culturalmente primitiva.

Nem o Comandante, nem os demais ocupantes da nave ou mesmo os avançados sensores da estrutura detectaram o sinal de rádio replicado pela parte separada da lua que ativava o dispositivo de lançamento incrustado na superfície do satélite. Logo, o invólucro de proteção da torre era rompido por um míssil nuclear cuja ogiva ultrapassava facilmente as vinte e sete toneladas da mais potente arma detonada até então, mas com um poder de destruição simplesmente imensurável.

Com a velocidade de um pensamento, o projétil cruzou o espaço compreendido entre a lua e a nave invasora, existiam muitos usos para o elemento 115, para o bem ou para o mal.

Uma gigantesca explosão estilhaçou a nave dos seres octópodes com tamanha magnitude ao ponto de não restarem grandes partes do que um dia fora o magnífico cruzador interestelar.

No solo, a multidão bradava em uníssono a nova vitória diante daqueles que tentavam tomar o que lhes era de direito, algo que somente o Criador poderia fazê-lo.

No interior da terra, onde uma nova civilização ressurgira após o colapso do mundo na Grande Guerra Interplanetária que dizimara a sociedade como era conhecida e dividira a lua, o grande líder político, militar e religioso da humanidade executava o discurso que ressoava por cada rincão recluso do planeta:

– “Hoje, meus irmãos e irmãs, defendemos mais uma vez com sucesso nosso mundo daqueles que invadiram os céus sobre nossas cabeças. Desde a Grande Guerra muitas outras vieram e outras, como a de hoje, ainda virão. Mas, não temam, nesse exato momentos nossos cientistas estão executando o translado de uma ogiva ainda maior do que aquela que detonamos há pouco. Logo, nossa Mãe Lua estará apta a nos defender uma vez mais. O mundo é nosso!”

A civilização exultava o discurso do líder em meio à magnificência do Novo Mundo. Nas entranhas da terra uma nova existência era compartilhada por todos. Rios e lagos subterrâneos irrigavam o verdejante ambiente onde animais de toda a sorte espalhavam-se em comunhão com os humanos, todos sob a luz solar canalizada e direcionada para florescer a vida e acalentar o coração de cada ser vivente numa atmosfera artificialmente controlada por potentes filtros de ventilação e radiação. Não havia fome, sede ou lamento.

Longe dali, num planetoide escondido na parte mais distante da galáxia, ondas de rádio emitidas num último instante e replicadas quase instantaneamente por uma infinidade de satélites artificiais deixados pelo caminho como uma trilha de migalhas por uma inteligência coletiva, informava àqueles que haviam ficado acerca do triste destino que lhes tinha acometido.

Uma agressão não provocada torna-se um combustível tão ou mais potente que o próprio elemento 115 para despertar o sentimento de vingança em seres reativos, mas transforma-se em algo ainda mais nocivo em criaturas ectotérmicas. E, como uma novidade em eras muito mais distantes do que o alvorecer do primeiro hominídeo, ouviu-se as palavras jamais proferidas por aquele povo:

“– Irmãos, por aqueles que passivamente foram mortos nos mares e por aqueles que foram covardemente agredidos no ar, vamos à guerra.”

Logo, homens e octópodes estariam uma vez mais dançando sob a luz da lua.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 19/02/2023
Código do texto: T7722938
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