SDC
A sala na delegacia era bastante simples. Havia somente uma mesa, quatro cadeiras e um grande quadro com a foto dos Legisladores. Sobre a mesa, papelada oficial. Sentados nas cadeiras estavam a mãe do adolescente, o policial responsável pela investigação, e a agente do Estado, uma distinta senhora que representava a Agência de Identificação e Controle de Desvios Comportamentais.
- Nenhuma mãe espera um dia ter que passar pelo que a senhora está passando – disse o policial à mulher, que chorava baixinho – Sei que não é fácil saber que o próprio filho é um criminoso, e que comete seus crimes todos os dias dentro de sua própria sua casa.
Enquanto o ouvia, a mulher assinava papéis borrados com suas lágrimas, entregando oficialmente seu filho adolescente aos cuidados do Estado. Por tempo indeterminado.
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A venda, exibição e consumo de material pornográfico havia sido proibido desde a implementação do Sistema Doutrinário Conservador. Para a Nova Ordem, impulsos sexuais constantemente estimulados têm o poder de enfraquecer o caráter, empobrecer o espírito, confundir a mente e contaminar a força de vontade. Em longo prazo, seriam capazes de conduzir toda uma sociedade à degradação de sua essência moral e à decadência de seus valores. A busca obssessiva pelo gozo frequente já vinha devorando a humanidade há gerações, e o SDC tinha sido a solução encontrada para deter esse e outros males.
Logo após a sua promulgação, o ano zero da nova era, a internet passou a ser vasculhada sistematicamente pelo Estado, até as regiões mais obscuras do ciberespaço. Procuravam endereços virtuais desobedientes, assim como os usuários que tentavam se conectar a eles. As punições eram severas e envolviam anos de prisão. Menores de idade recebiam um tratamento educativo-transformador nas Casas de Adequação, que prometia devolvê-los à sociedade sãos e curados. Foi quando também começaram a ser realizadas, dentro das Casas de Adequação, experiências para corrigir instintos hedonistas e comportamentos viciosos ou moralmente inadequados
Nesses lugares de recuperação, o infrator teria sua mente trabalhada com métodos de condicionamento dos mais rudes e primitivos. Ali, ele seria brutalmente induzido a sentir vergonha de seu corpo, e pavor de seus desejos carnais e pensamentos secretos. Sairia de lá exemplarmente controlado, psicologicamente castrado de um comportamento inadequado que ameaçava o principal objetivo do SDC: a construção de um mundo melhor para todos.
* * *
Sentado na poltrona de sua casa ele se lembrava. Não que quisesse, mas algumas memórias fazem o que bem entendem com suas pessoas. Especialmente as que carregam sofrimento. Já era um homem adulto, mas aqueles dias ainda o visitavam, e sem qualquer aviso. Quando acontecia, ele inundava a mente com pensamentos sobre o mundo melhor onde todos agora viviam, seu legado para as próximas gerações. A promessa tinha sido feita a todos pelos Legisladores, há quase vinte anos, e ele havia ajudado a cumprí-la com seu imenso sacrifício pessoal. Assim, lidava com seus fantasmas ao contrapor-lhes o orgulho de quem sabia ter feito a sua parte.
Olhava, estranhamente indiferente, para sua mão esquerda, para o vazio do tamanho de um dedo que ele próprio havia deixado ali. Na Casa de Adequação, sua mente violentada surtara e extrapolara o sentido daquilo que estavam tentando lhe ensinar, e em algum momento arrancar o mal pela raiz lhe pareceu ser a melhor opção. Mutilara-se para que as mãos perdessem a destreza e a capacidade de lhe dar prazer. O haviam detido a tempo, teria ido mais longe se tivessem deixado. Ele só tinha dezesseis anos. Dessa época, uma única boa lembrança: o momento em que recebera alta e reassumira seu lugar no mundo, grato pelo voto de confiança que estavam lhe concedendo. Uma vida reta e obediente, foi a que viveu desde então.
No início do SDC, bons costumes e regras de conduta haviam sido resgatados, ressuscitados e reintroduzidos na sociedade. A hierarquia entre as castas socioeconomicas, com seu discurso meritocrático, fora enrijecida. Repressões, perseguições e punições foram oficializadas, assim como uma propaganda ideológica que pretendia acelerar a aceitação do novo sistema. Toda a estrutura estatal precisou ser remodelada em nome da Nova Ordem. Nada permanecera como antes.
Somente agora, na distância dos anos, ele conseguira entender que nunca houvera outra opção, outra maneira de se fazer tudo o que havia sido feito: algumas peças sociais precisavam ser consertadas no martelo e na bigorna, a execução do plano exigia exemplos, e ele fora pego. Pensar dentro dessa linha o deixava feliz, porque justificava e trazia sentido a tudo o que ele tinha sofrido enquanto ficara internado. Acima de tudo, fantasiava-o de alguém essencial à renovação redentora pela qual a sociedade havia passado. E ele precisava acreditar nisso para seguir em frente. Com todas as suas forças.
O filho chegando do colégio o resgatou de si mesmo, ancorando-o de vez à realidade. O garoto sequer o olhou, foi direto para o quarto. Ele não reclamou, estava bem que não conversassem. Questionador e dono de pensamentos inquietos e ousados, o rapaz já vinha frustrando suas conservadoras expectativas de pai há algum tempo. Não se falavam fazia três dias, desde que havia encontrado uma página da época da pornografia impressa em um vão secreto do seu guarda-roupa, e fora obrigado a deixar marcas em seu corpo para educá-lo.
Não havia sido a primeira vez que algo assim acontecia. Folhetins anárquicos escondidos debaixo do piso de madeira, desenhos obscenos entocados em um fundo falso da mesa do computador, mensagens homoafetivas expostas em uma tela desafiadoramente desprotegida: a lista crescia a cada vez que ele incursionava pelo quarto. Conversas não surtiam mais efeito, tampouco punicões físicas eram capazes de convencê-lo a mudar seu comportamento.
Ele sabia que as Casas ainda estavam lá, consertando quem quer que se tornasse uma ameaça para si mesmo e para a sociedade. E havia no olhar do filho uma resolução feroz que o assustava.
Estava decidido: no dia seguinte, procuraria o agente do estado para uma conversa.