TELETRANSPORTE CELULAR - Parte 1
O Terminal de Integrações estava movimentado naquele dia. Muita gente chegando e partindo, grande parte tendo a Terra mesmo como ponto final. Mas a grande maioria só estava usando o Terminal Terrestre como parada de baldeação, para serem transportados a outros terminais do Sistema Solar. Ele não, nunca foi pra muito longe da Terra em sua vida. Passou algum tempo na Lua, e até um pequeno período de férias em Marte. Viagem demorada e enfadonha, que ele havia prometido a si mesmo nunca mais repetir. Pelo menos não usando os transportes clássicos.
Havia uma fila enorme à esquerda, em direção ao corredor dos Quânticos. Mas à direita, na direção do corredor dos Moleculares, também havia uma quantidade considerável de gente. A cada dia que se passava aumentava a quantidade dos que optavam por este novo estilo de transporte. Mas ele não iria pra nenhuma dessas duas filas...
— Bom dia, amigo! Vai pra onde?
— Europa.
— UAU!! Longe, hein! Eu vou dar uma passadinha aqui do lado mesmo, pra visitar a família.
— Para onde vai?
— Lua.
— Pra qual lua?
— Ué, pra Lua da Terra, oras bolas! Tem outra Lua?
Ele se surpreendeu com a informação. Selene, a lua da Terra, ficava só a uns 380, 400 mil quilômetros! Por que não usar o transporte convencional?
— Sério? Vai se teletransportar até a nossa lua?
— Meu estômago, sabe? Essas viagens em microgravidade me deixam enjoado...
— Mas a viagem tradicional é bem mais barata.
— Tenho medo. Foguetes podem explodir.
— Você tem medo de ter pedaços do seu corpo espalhados para todas as direções...
— E quem não tem?
— Mas não é exatamente isto que o teletransporte faz com a gente?
O passageiro riu, irônico.
— Ah, já entendi! Você é daqueles anti-teletransporte, não é?
— Digamos que eu prefira viajar sem precisar espalhar pedaços do meu corpo pelo caminho. — disse, tentando disfarçar o nervosismo; mas que foi notado pelo outro passageiro.
— É sua primeira viagem, amigo? Teletransportado, eu quero dizer...
— Preferia que não fosse.
— Mas você sabe que Europa é longe, né? Levaria anos viajando com transporte clássico.
— Não me agrada a ideia de ter meu corpo pulverizado em pedacinhos minúsculos para ser transportado pelo vácuo. Não vejo diferença entre isto e entre ser despedaçado numa explosão de um foguete.
— Ôpa, não é bem assim! Se é pra ter o corpo pulverizado de qualquer maneira, prefiro pelo menos ter a garantia de que os pedaços vão ser reconstruídos no seu destino, ao invés de serem espalhados ao acaso pelo espaço.
— Você vai viajar com os Quânticos?
— De jeito nenhum!! Sabe como é que costumavam chamar as cápsulas de teletransporte quântico antigamente?
— Caixas de suicídio.
— Não é a pessoa original que chega do outro lado, né? É só uma cópia dela. A original é destruida na cápsula de origem.
— Os físicos dizem que o que importa é transmitir a informação quântica do original.
— Físicos...
— E a viagem acontece na velocidade da luz. Porque basta modular a informação quântica numa portadora eletromagnética.
— Me desculpe, mas transporte quântico não é transporte de verdade. Esses malucos aí da fila dos Quânticos só estão pagando por uma cópia seguida de suicídio.
— Quer dizer então que você vai fazer um teletransporte molecular até a Lua?
— Óbvio! É a maneira mais inteligente de viajar. O que vai chegar lá vai ser meu original, molécula por molécula.
— Não acha estranha a ideia de ter todo o seu corpo desmontado molécula por molécula, colocar todas elas num acelerador de partículas e ejetá-las no vácuo em direção à Lua?
— Pelo menos estou transportando minha matéria original, e não criando uma cópia dela em outro lugar.
Com a conversa, o nervosismo do novato ficava cada vez mais evidente.
— Relaxa! Já me teletransportei várias vezes. É seguro! A propósito, você vai fazer um teletransporte quântico ou um molecular?
— Nenhum dos dois...
— COMO??? Não está querendo me dizer que vai experimentar o...
— Teletransporte celular? Sim, é nesse mesmo que eu vou.
— Você sabe que até agora só testaram isto em macacos, não sabe?
— Nós não passamos de macacos um pouco mais inteligentes, não é mesmo?
— Suas células não podem ser aceleradas num acelerador de partículas. A viagem vai levar dias!
— Levaria anos em transporte convencional. Infelizmente não posso esperar tanto.
— As células são congeladas individualmente para serem aceleradas no vácuo.
— Mas meu DNA permanece intacto. Você sabe que o teletransporte molecular não transmite seu DNA completo na viagem, não é mesmo? A molécula é muito grande, precisa ser quebrada em blocos menores para passar pelo acelerador de partículas. Quem garante que a reconstrução acontece sem falhas do outro lado?
— Faço teste genético todos os meses. Até hoje não detectaram nenhuma mutação significativa causada pelos teletransportes.
— Mas tem mutação, não tem? E é acumulativa, quanto mais vezes você se teletransporta molecularmente, maior a chance de seu DNA chegar com mutações no destino.
— Besteira! Isso é conversa furada dos Quânticos, que acham que o transporte deles é melhor que o molecular.
— Pois não confio nem num nem no outro. Pelo menos me transportando célula por célula sei que continuo vivo a viagem toda.
— O que quer dizer com isso?
— Os Moleculares são desmontados em moléculas separadas, matéria morta. Era vida, são transportados em blocos inorgânicos mortos, e quando chegam são reconstruídos numa vida nova. Os Quânticos nem isso, já que o processo nem transporta matéria, só a informação sobre a matéria original. No teletransporte celular pelo menos as células chegam intactas, não são despedaçadas. É só questão de recolocá-las em seus lugares e descongelar para voltarem a funcionar.
Nesse momento é ouvido um beep do comunicador em seu dedo anelar.
— A conversa tá boa, amigo. Mas chegou minha vez.
— Vai mesmo querer servir de cobaia, não é?
— Preferia não, mas não tem outro jeito. Esta viagem é muito importante.
— Bom, então... boa sorte! E boa viagem!
Ele caminhou em direção aos elevadores que levavam ao segundo andar do terminal, onde ficavam os novos laboratórios de teletransporte celular. Tentou disfarçar e se manter calmo, mas agora que chegava a hora não conseguia esconder a palpitação dentro de seu peito.
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— Preciso que leia isto e coloque sua autenticação biométrica aqui, aqui e aqui. — instruiu o robô prateado com olhar frio e voz monotônica, desenrolando à sua frente a folha de display flexível.
— Isso diz que me responsabilizo totalmente por qualquer falha de reconstrução metabólica que não seja decorrente de erros de transporte, e que isento a companhia de...
— Apenas formalidades. Já testamos com sucesso várias vezes.
— Sim... em macacos.
— Primatas superiores. A fisiologia deles não é muito diferente da sua.
— Eles não falam, né? Não teriam como contar pra ninguém que algo deu errado...
— As tomografias cerebrais não indicavam alteração alguma. Eles chegavam intactos.
— Isso é o que dizem...
Quase deu para perceber impaciência por trás do rosto prateado controlado pela inteligência artificial.
— Senhor, se não sente segurança no processo, podemos te reembolsar, ou encaminhar para os meios mais tradicionais de teletransporte. Qualquer um dos dois que escolher...
— Eu gostaria de conversar antes com um bioengenheiro.
Agora a impaciência da IA havia ficado evidente.
— Como queira, senhor! Aguarde um pouco aqui.
Talvez fosse apenas sua imaginação, mas ele podia jurar ter ouvido o robô murmurar, bem ao longe entrando na saleta ao fundo, algo como "esses humanos idiotas". Não, devia estar enganado. Inteligências artificiais nunca fariam comentários deste tipo.
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— Boa tarde, meu caro! Sou o Dr. Mandel, vim aqui tirar suas dúvidas sobre nosso processo novo.
— Dr. Mandel? Eu pedi um bioengenheiro...
— Sou eu mesmo! Ah, já sei o que está estranhando! Nunca viu um engenheiro-doutor, né?
— Sem querer ser ofensivo... não!
— Pois é, isto é uma prerrogativa dos bioengenheiros. Nós somos engenheiros-doutores. Mas, vamos lá! O que te incomoda no processo?
— Por onde começo? Bom, vamos lá: duração da viagem.
— Certo. Quanto a isso não temos como competir mesmo com os teletransportes quântico ou molecular. O teletransporte quântico acontece na velocidade da luz, já que ele transmite informação quântica modulada numa onda eletromagnética. Mas... você sabe o que dizem do teletransporte quântico, não sabe?
— Caixa de suicídio...
— Tecnicamente nós os chamamos de replicadores auto-destrutivos. Os átomos originais nunca saem da origem para chegar ao destino. Na verdade eles são destruídos, e a energia obtida na sua desintegração é usada para transportar a informação. Por isso é tão barato, o próprio objeto original é usado como fonte de energia para o transporte. Agora, se me perguntassem se eu gostaria de me transportar assim, definitivamente diria que não!
— O teletransporte molecular também é rápido.
— Sim, não chega à velocidade da luz, mas consegue chegar bem próximo disto colocando pedaços de moléculas dentro dos aceleladores de partículas. Agora, isso gasta energia, muita energia! É bem mais caro. E, como você deve saber, teletransporte molecular nem é o nome mais adequado, já que ele não transporta integralmente grande parte das moléculas originais.
— Como assim?
— Moléculas orgânicas costumam ser enormes! Não dá para simplesmente acelerá-las inteiras dentro de um acelerador eletromagnético. O próprio formato delas impossibilitaria isto! Enormes cabeias de carbono aceleradas dentro de um túnel estreito? Esquece! Elas precisam ser quebradas. O que transportamos na verdade são blocos moleculares, e não moléculas completas, na maior parte do tempo.
— Aceleradores eletromagnéticos? Mas essas moléculas orgânicas não são neutras em sua maioria? Como acelerar algo sem carga elétrica?
— Adoro conversar com gente inteligente! Sim, você tem toda a razão! Para fazermos estes blocos moleculares atravessarem um acelerador de partículas, precisamos ionizá-los para conseguir acelerá-los.
— Nunca havia pensado nisso...
— E partículas ionizadas gostam de interagir durante a viagem, entende? Se agrupando e se repelindo antes de chegarem ao destino. A quantidade de informação necessária para recolocar cada bloco no lugar é enorme.
— Então, de qualquer forma o teletransporte molecular também precisa transmitir informação de reconstrução, além dos blocos moleculares?
— Sim, e muita informação! Equiparável ao teletransporte quântico. E como chegam primeiro (a informação eletromagnética é transmitida na velocidade da luz), precisam ficar armazenadas em buffers até que seus pedaços moleculares comecem a chegar ao destino e precisem ser recontruídos. E, quer saber? Às vezes ocorrem falhas neste delay...
— E qual a vantagem? Por que tanta gente está trocando um pelo outro hoje em dia?
— O poder da propaganda, amigo! Já ouviu falar dele? Te convencem de que é melhor porque está transmitindo a matéria original. Só que é bem mais caro, não é verdade? Como quase sempre acontece, você paga mais por uma falsa sensação de segurança.
— Os blocos chegam embaralhados?
— Na verdade acontece uma aceleração seletiva destes blocos. Conhece a famosa fórmula F=ma? Se rearranjarmos ela como a=F/m, vemos que os blocos mais leves acabam acelerando mais, e chegam primeiro no seu destino. Na prática o que acontece é que blocos de uma cadeia de carbono que estava originalmente no seu pé pode ser reconstruído em seu destino dentro de um neurônio, e vice-versa. Essa ideia te agrada?
— Que absurdo! E isso não causa disfurção no organismo reconstruído?
— Dizem que não. Afinal, são só blocos de moléculas. Os aminoácidos do dedão do seu pé são os mesmos dos seus neurônios, só muda a forma que estão organizados. Pelo menos é o que dizem. Eu como bioengenheiro não penso desta forma. Um organismo vivo é como uma sinfonia para mim, entende isso? Não podemos esperar transportar uma sinfonia apenas codificando a informação de suas ondas de pressão em sulcos numa espiral sobre um disco de vinil. Se é que entende a analogia.
— Caramba, essa é velha, Doutor! Você está falando das mídias analógicas pré-históricas que usávamos para registrar música?
— Sim, você entendeu meu ponto. E diria até que os Quânticos fazem ainda pior que isso. Já que eles praticamente quantizam estas ondas de pressão e as transmitem em forma de bits pelo espaço, como faziam antigamente com um registro de áudio digital. Não, meu amigo. Sinceramente não acredito que esta seja a maneira correta de se transportar essa sinfonia que é a vida.
— Mas não podemos acelerar células pelo espaço desta forma. A viagem não vai demorar muito mais?
— Qual é mesmo seu destino?
— Europa, lua de Júpiter.
— Ah sim! Avançamos bastante ultimamente. Conseguimos cobrir esta distância em cinco dias de viagem.
— Eu ficaria cinco dias vagando pelo espaço, dissociado em células?
— Esta sensação de tempo é puramente subjetiva. E, óbviamente, vc não vai estar consciente durante a viagem. Suas células estarão criogenizadas, pode imaginar isto como se estivesse dormindo o tempo todo. Do seu ponto de vista, entre ser desconstruído aqui e reconstruído em Europa parecerá para você como uma viagens instantânea.
— Minhas células são desmontadas por nanorobôs, se é que entendi corretamente o processo. Isso não dói?
— Será mais rápido do que imagina. A transmissão do impulso nervoso é relativamente lenta! Você será desmontado muito mais rápido que o tempo necessário para os impulsos irem de um neurônio até o outro. E depois disso, o congelamento é instantâneo, seu metabolismo para. E de qualquer forma os neurônios já estariam separados, não haveria como transmitir informação de dor entre eles. Asseguro que é totalmente indolor.
— E como as células serão aceleradas.
— AH, isso é um segredo de nossa técnica. Não podemos revelar detalhes por enquanto. Mas, se está mesmo curioso, posso adiantar que tem a ver com aceleração centrípeta.
— E como é controlado o caminho até lá?
— Seu feixe biológico vai seguir a boa e velha lei de gravitação de Newton.
— Vai ser exposto à radiação do espaço.
— Nosso método de criogenia protege as células destas radiações. É muito mais seguro que uma viagem clássica, com organismo intacto protegido pelo casco de uma nave espacial.
— Ainda assim, tem a informação para reconstruir as células em seus locais originais. Imagino que isso seja transmitido eletromagneticamente para o ponto de destino. É como se eu estivesse viajando por dois caminhos distintos, um lento e outro na velocidade da luz.
— É aí que está a beleza no nosso processo: a informação de como reconstruir vai junto com o feixe biologico.
— Não sei se entendi muito bem...
— Os nanorobôs! Eles viajam juntos com suas células congeladas! Quem melhor saberia reconstruir seu organismo que os próprios seres que o desmontaram?
— Não há informação eletromagnética transmitida?
— Nenhuma. E se me permite voltar à minha analogia poética, é como se para transportar uma sinfonia estivéssemos levanto juntos com os instrumentos musicais também os músicos e o maestro, para reproduzi-la fielmente no destino.
— É muita informação para eu processar. Preciso pensar melhor.
— Fazemos um desconto. Devolvemos 50% do que você já pagou. Que acha da proposta?
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A ideia ainda o apavorava. Mas viajar pela metade do preço era muito tentador. Isso representava apenas um pouco mais que o preço de uma viagem clássica, num veículo espacial. Só que neste caso seriam alguns anos vagando pelas órbitas dos planetas, tentando ganhar energia em manobras gravitacionais, convivendo com uma tribulação nem sempre das mais agradáveis... Com certeza o laboratório novo estava ansioso pra testar o processo num humano real. Releu pela centésima vez os relatórios da folha de display flexível, dos exames morfológicos perfeitos de dezenas de gorilas e chimpanzés transportados com sucesso por distâncias ainda maiores que as que ele iria atravessar, como o sistema Plutão-Caronte. O robô o observava do outro lado da mesa, agora com indisfarçável impaciência. Mas será que era o mesmo robô de antes? Pareciam todos iguais...
— Está tudo bem claro agora, meu senhor? — teria ouvido um tom de sarcasmo na pergunta? Não, era só impressão dele.
— Nesses 50% do valor reembolsado não estão constando o seguro da viagem, né? Esse continua integral?
— Aff... — e desta vez a reação de desprezo da IA foi indisfarçável. — Linhas 13, 14 e 15 do contrato, aqui, aqui, aqui... — apontava o display com seus dedos mecânicos.
— Ah sim! Estou vendo! Bom, acho que concordo então.
A máquina se ergue, pega o contrato e se dirige para a salinha dos fundos. Mas desta vez não havia como negar, ele ouviu a máquina bradar em alto e bom som:
— Ah, finalmente! Graças a Asimov!!
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