Negociação
"Smallville" foi um longo seriado da televisão norte-americana, criado por Alfred Gough e Miles Millar, produzido pelas empresas Tollin, Robbins Productions e Millar Gough Ink, entre 2001 e 2011 (dez temporadas) e baseado no personagem Superman, criado por Jerry Siegel e Joe Shuster em 1938 e propriedade da DC Comics.
Esta fanfic foi escrita numa época em que eu acompanhava os episódios exibidos na tv brasileira. Chamou-me atenção a novidade de apresentar Lex Luthor inicialmente como um amigo de Clark Kent, quando ele era muito jovem e não se revelara como super-herói público. E também o aspecto humano, cheio de nuances psicológicas, de Clark Kent, o futuro Super-Homem, atualizado para o século 21. Como aliás costumam fazer com personagens fixos. Lex ficara até simpático. Entretanto, vai ficando perverso ao longo da série. Por fim, desinteressei-me por ver que "Smallville" tornava-se uma série cada vez mais arbitrária e estapafúrdia.
A fanfic em questão mostra Luthor e Kent já de amizade rompida, mas num desenvolvimento que poderia ter sido tentado.
Quando vários super-heróis (como o Arqueiro Verde) resolveram aparecer em "Smallville", uma noite sonhei com a Sailor Moon (no visual em imagem real de um seriado japonês de 2003-2005) interagindo com Clark Kent. Em tese isso poderia ter acontecido, e o sonho inspirou meu conto "Sailor Moon em Smallville", aqui postado em 24/7/2013, segue o código de acesso:
https://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/4402576
NEGOCIAÇÃO
Miguel Carqueija
De há muito Clark Kent não se sentia à vontade em casa de Lex Luthor. Entretanto fôra chamado pelo milionário calvo sob o signo da urgência e, afinal, deixara-se levar pela curiosidade. Kent não podia deixar de sentir certo fascínio pela figura de Luthor: de grandes amigos haviam passado a desafetos no espaço de poucos anos. Não tinha sido uma coisa abrupta: uma cadeia de acontecimentos problemáticos evoluíra até aquele ponto. Mesmo assim, Kent ainda mantinha um certo respeito para com as palavras de Luthor: de uma forma ou de outra ele dizia coisas importantes, que levavam a pensar.
Clark, porém, nos últimos tempos tornara-se muito seco com o ex-amigo.
— Mandou me chamar? — foi o seu cumprimento.
— Sente-se, Clark. Temos algo muito importante a conversar, e você não se arrependerá por ter vindo.
Clark Kent acomodou-se à mesa e Lex sentou-se à sua frente com aquela expressão de irônica tranquilidade. A jaqueta quadriculada e jovial de Clark contrastava com o elegante terno de gabardina que Luthor trajava. Luthor raramente era visto sem terno, fazia parte constante do seu visual mesmo dentro de casa, como nos filmes americanos dos anos trinta.
Clark recusou o “drink” oferecido por Luthor e observou, pouco à vontade:
— Lex, eu realmente não posso demorar... gostaria que você fosse rápido.
— Então eu lhe farei a vontade, Clark. Vamos primeiro falar de coisas que, mal ou bem, nós dois estamos a par: meteoros, pedras de meteoro, radiações estranhas, pessoas infectadas.
— Esta parece ser, hoje em dia, a razão da existência da Luthorcorp...
— Bem. Uma chuva de meteoros cai na Terra há mais de vinte anos e tempos depois cai outra, e ambas em Smallville. Isso não é e jamais poderá ser tido como normal. Detalhe agravante, começam a surgir mutantes, pessoas dotadas de estranhos e perigosos poderes, e tudo relacionado com as pedrinhas que desceram do céu. Mas não é só isso: por aqui aportaram espaçonaves extraterrestres e tudo indica que elas representam um perigo mortal para a Terra.
— Pode ser que você esteja lendo muitos livros de ficção científica — e Clark foi seco.
— Poupe-me de sarcasmos, Clark — Luthor sorriu, enquanto colocava gelo em seu “drink”. — No fundo você sabe que eu falo a verdade e que muita coisa está sendo abafada.
— Bem, e daí? O que você espera de mim?
— Que você abra os olhos para a verdadeira situação. Pode me desprezar, é claro, pelo que eu represento. Mas não pode negar que nada seria pior se a Terra fosse invadida e ocupada por seres alienígenas que nos tratassem como escravos, ou pior, como gado. Não temos porque cultivar ilusões de que todos estes seres sejam bonzinhos e angélicos. Eles não são.
“Além disso eu sei juntar os fatos e efetuar deduções. Por mais que você negue, Clark, sei que você possui poderes sobre-humanos e que só pode ser um alienígena ou um mutante.
— Está sonhando — disse Clark.
— Não é bom na mentira, Clark. Entretanto eu tive os meus meios para chegar à verdade sobre a sua pessoa. Sabia que uma de suas amigas tinha acesso aos seus segredos. Na Luthorcorp há meios para induzir uma pessoa a dizer a verdade, e para faze-la esquecer o que se passou. De modo que agora eu sei que Clark Kent veio de um planeta chamado Crypton e que, neste sistema solar, goza de extraordinários poderes.
Clark ergueu-se, sobressaltado e irado:
— Quem lhe contou isso?
— Relaxe, Clark. Não conseguirá me tocar, pois também fiquei sabendo sobre a criptonita. E eu a tenho em quantidade nos meus bolsos.
Luthor retirou uma ampola de um bolso interior do paletó e exibiu-a: uma substância verde brilhava dentro dela.
Clark sentou-se, pensando se não deveria bater em retirada. O suor já lhe porejava na testa. Luthor porém prosseguiu persuasivamente:
— Se eu tivesse sabido há mais tempo, talvez as nossas relações não houvessem degenerado tanto...
— Mas quem... quem lhe contou? Quem você sequestrou?
— Ora, Clark. Não é possível que tanta gente conheça o seu segredo. Mas não fique preocupado: ela está bem e você já a viu muitas vezes depois disso.
— Chloe — murmurou o rapaz.
— Sim. Mas foi bom que isso acontecesse. Porque, Clark, agora eu sei como devo agir.
— Ah, é? E quais serão as suas novas patifarias?
— Desarme o seu espírito, Clark. Você não sabe o que está dizendo. Será que não percebe que existem coisas mais importantes que as nossas diferenças?
— E quais são elas, por favor?
— A salvação da Terra, por exemplo.
— Isto não depende da Luthorcorp. Acho muita pretensão...
— Digamos, Clark, que se unirmos as nossas forças conseguiremos preservar a Terra.
— Como! Depois de tudo o que aconteceu, você me propõe uma aliança?
— E por que não? Mesmo os meus crimes não são tão graves assim para que você despreze a utilidade dessa aliança. Se você não tivesse uma mente tão confusa e indecisa, Clark, enxergaria isso mais claramente. Você tem poderes especiais mas não tem a estrutura tecnológica, científica e monetária da Luthorcorp. Além disso, depois de tudo que eu lhe revelei saber você não fará a tolice de negar que tem conhecimento de forças malignas espreitando e conspirando contra a Terra. Quem você prefere, eles ou eu?
— Não queria ter de enfrentar essas opções...
— Você sabe muito bem que o que eu quero coincide com o que você quer.
— Você é megalomaníaco e cruel.
— Sou frio e calculista, admito. Mas no mundo dos altos negócios, tão ligados à política, não se pode ser simplesmente bonzinho. Mas o que é que isso importa se estamos diante de uma ameaça obscura, poderosa e implacável? É possível lutar contra mim utilizando as leis do país; mas com os tais seres isso não funciona. Mas você, Clark, foi adotado pela Terra que agora é o seu planeta. Você e Kara terão de defendê-lo e precisarão dos recursos da Luthorcorp para isso. Quando precisarem reverter uma mutação ou infecção meteórica em alguém a quem amem; quando precisarem analisar materiais ou informações ou qualquer outra coisa que exija cientistas especializados, tecnologia de ponta e recursos financeiros ilimitados; coisas que vocês não poderão conseguir somente com superpoderes. O que acha, Clark?
— O que eu acho de tudo isso, Lex?
— Sim, o que você acha, Clark. Pare um pouco de fazer essa cara de paspalho e tente raciocinar como adulto.
— Eu... eu preciso pensar sobre tudo isso...
— É claro. Pense até amanhã e retorne aqui a essa mesma hora. Eu estarei esperando por você e se disser que sim, revelarei o que nós na Luthorcorp já sabemos. Como vê, eu confio bastante no seu caráter.
Luthor recostou-se na cadeira.
— Obrigado — disse Kent, levantando-se. — Está bem, voltarei amanhã. Mas... é um prazo muito curto.
— É claro. A Terra não pode esperar. A cada minuto que passa nossos inimigos podem estar ultimando seus planos de dominação.
Perturbado, Clark Kent despediu-se e foi embora.
Lex Luthor bebericou mais um pouco de seu gim. Desta vez sentia-se seguro. Ele sabia ler nas entrelinhas de Clark. E tudo indicava que Clark aceitaria a aliança.
Porque Luthor dissera a verdade sobre as ameaças cósmicas — e Clark sabia disso.
Rio de Janeiro, 8 de setembro de 2008.
imagem: Clark Kent (Tom Welling) e Lex Luthor (Michael Rosenbaum).