A Piromaníaca
As luzes da cidade iluminavam o céu como se refletissem uma colméia de neon azul e púrpura. Uma garota se esgueirou entre os contêineres que serviam de depósito para os trabalhadores de uma empresa terceirizada da prefeitura. O chão de terra batida havia sido terraplanado pelos tratores amarelos “caterpillar” que agora, parados nas sombras da noite, pareciam enormes paquidermes sonolentos. Naquele lugar, antes, existia um pequeno aglomerado de moradias irregulares. Os moradores foram retirados para que uma rua atravessasse o lugar. Nem mesmo os protestos, duramente suprimidos pelo Batalhão de Choque da polícia, foram suficientes para impedir a demolição das casas irregulares. Os moradores tiveram de ser abrigados em albergues até que fossem indenizados. “É uma obra extremamente necessária para desafogar o trânsito nas ruas adjacentes” - afirmou o secretário de trânsito em um programa de rádio. Jessica tinha em suas mãos um pequeno isqueiro clipper (com a foto do Mickey Mouse desenhado) e uma garrafa pet 2 litros cheia de gasolina. Agachada no canto perto de uma betoneira ela sentia o cheiro característico do brejo que ficava em frente aquele pátio de obras. O brejo e o pequeno córrego que serpenteava no meio dele seriam as próximas vítimas daqueles tratores “caterpillar”. Aquela era uma das últimas áreas verdes da cidade, mesmo que não fosse grande coisa, na verdade não passava de um lote abandonado de uns 2 mil km². Uma esponja de terra e arbustos com um filete de a água que ia desaguar em uma galeria subterrânea debaixo de uma longa avenida.
Jessica esperou até ter certeza que o segurança não estava ali - ou pelo menos não estava acordado. Olhou no relógio xing ling, a tela iluminada de verde depois de apertar um dos botões marcava 02:00 da manhã. O momento certo era aquele, os pêlos de todo seu corpo se arrepiaram e ela sentiu um frio na espinha. Andou na ponta dos pés até um dos tratores e despejou uma parte da gasolina. Foi até o outro trator, logo atrás, e despejou o resto do líquido. Colocou a garrafa vazia ao lado, com todo cuidado para não fazer barulho. Voltou ao primeiro e acendeu o isqueiro, na primeira riscada a gasolina entrou em combustão fazendo um barulho alto, quase como uma explosão, jogando um vapor quente na garota. Jessica se assustou e soltou um grito involuntário que abafou com as suas próprias mãos, logo depois sentiu um cheiro de cabelo queimado. A mão que ela acendeu o isqueiro ardia. De alguma forma o fogo do primeiro trator acendeu a gasolina que ela havia despejado no segundo. As chamas já iluminavam quase todo o lugar. O coração dela ficou acelerado, ela imaginou ter conseguido escutar algumas daquelas batidas dentro do peito.
- Ei! O que você tá fazendo aí?!
Alguém jogou uma luz de lanterna nela, Jessica olhou para o lado e viu um homem gordo a uns 20 metros de distância. Era o segurança. Ela saiu correndo e após passar por um trecho de terra batida chegou no asfalto. Desceu a rua correndo o mais rápido que podia, seus pés voando no asfalto, antes de virar a primeira esquina viu o homem gordo descendo a rua em seu encalço. Jessica somente parou de correr depois de três quarteirões, continuou em um passo rápido por entre as ruas vazias da madrugada. Sua respiração ofegante ecoava pelo silencio da noite.
No outro dia Jessica voltou até o lugar da obra. As ruas estavam cheias de carros e pessoas no horário do almoço. Ela passou por onde estavam os tratores. A cor amarela fora substituída pelo preto da fuligem causada pelas chamas. Eles estavam agora esturricados pelo fogo, seus pneus estavam vazios, derretidos. Aquelas máquinas já não mostravam a imponência de outrora. Já não eram ameaça para nada e ninguém. Jessica estava de mochila e uniforme escolar, ela passou batido pelas pessoas que observavam os danos do incêndio. Um deles estava de calça jeans, camisa social e capacete branco, devia ser o engenheiro, ele estava cercado por alguns funcionários de uniforme azul e observavam os estragos.
Jessica foi até o outro lado, no brejo que ficava em frente à obra. Passou por uma parte seca até uma área onde o chão tinha um aspecto esponjoso. Sentia a água do brejo entrar nos seus tênis “All Star” de camelô. Foi até uma poça perto do pequeno filete de água que corria no meio do brejo. Era uma pequena poça de água quase parada que se conectava ao córrego, cercada com plantas e grama. Tirou a mochila das costas, colocou em cima de um tijolo que estava ao lado da poça e tirou dela um pote. Abriu o pote que estava cheio de bolinhas marrons. Jessica jogou algumas na pequena poça, elas ficaram boiando por um tempo até que vários pequenos peixes surgiram. Barbatanas coloridas, azuis, vermelhas e verdes agitavam-se na água enquanto as boquinhas engoliam as partículas de ração. Ela conseguia perceber os olhos esbugalhados a observando através do espelho d’água. Conseguia reconhecer muitos deles e alguns tinham até nomes. Cada um deles tinha uma personalidade, alguns eram mais agitados, outros mais comilões, outros mais tímidos. Ainda agachada na beirada da poça ela observou um peixe verde que estava parado no canto, longe da agitação dos outros que comiam. Jogou três bolinhas bem perto dele que abocanhou uma a uma sem muita vontade. Parecia deprimido. Seus olhos esbugalhados também a fitavam.
- Só mais três dias, meus bebês, já comprei o aquário novo. Finalmente vamos sair do Albergue. Logo vamos todos voltar pra casa.