PÍLULAS
Não considerava as quartas-feiras como um dos bons momentos de sua vida, mas Wilson
Cunha já não via tais bons momentos há algum tempo.
Suspeitava (na verdade, tinha certeza), de que as coisas vinham perdendo o sentido desde a
invenção da primeira pílula, no final de 2560. Esse tipo de assunto costumava ser abordado
na sala de consultoria do doutor Meireles, toda maldita quarta-feira, às quinze horas.
Wilson desceu do Aerocar no estacionamento flutuante, exatamente na rampa que dava
acesso ao Arranha-céu Pinheiros, um lugar que já lhe causava náuseas assim que o via.
Por ali, havia absolutamente de tudo; os vinte primeiros andares eram dedicados à venda de
cosméticos, serviços de acupuntura utilizando espinhos do já extinto porco-espinho, salas de
massagem virtuais (as melhores mãos robóticas para a punheta perfeita, diziam alguns), e, é
claro, o consultório do doutor Meireles, exatamente no vigésimo andar. Um casal de mãos
dadas cruzou por Wilson ainda na rampa, e Wilson não conseguiu distinguir se eram
humanos ou apenas imagens tridimensionais enviadas pelo Amigo Olho, a construção mais
excêntrica de Faça Você Mesmo.
O Amigo Olho tinha quilômetros de altura, uma única peça de aço com um telescópio
ultradimensional em sua ponta, acima das nuvens reais e das pré-produzidas. A função
daquela geringonça era captar a menor das infelicidades humanas e tentar reproduzir
exatamente o oposto diante de seus olhos. Segundo as pesquisas mais recentes do Jornal do
Amanhã, o efeito do Amigo Olho era extremamente satisfatório.
Wilson não concordava com opiniões como aquelas, embora acreditasse que os inférteis de
Faça Você Mesmo adorassem dar de cara com uma família feliz diante de seus olhos, assim
que acordassem. Posicionou-se no Aro e digitou o número vinte na tela semi transparente.
Três segundos mais tarde, estava diante da porta de vidro, com a inscrição DOUTOR
MEIRELES grafada nela. O mesmo o enxergou lá de dentro e fez sinal para que entrasse.
Já na cadeira móvel, Wilson flutuou até em frente a mesa do doutor.
Ele o esperava com seu habitual sorriso de psiquiatra, uma coisa que parecia dizer que todos
à sua volta eram birutas, exceto ele. Esticou uma das mãos para cumprimentá-lo e Wilson fez
o mesmo.
Ainda faltava um minuto para às quinze horas, então Wilson teve de encarar o sorriso do
doutor por esse tempo inteiro, sem dizer uma palavra.
— Seja bem-vindo, Will— Falou o doutor, exatamente às três em ponto— Pronto para outra
sessão?
— Acho que preciso dizer que sim. Sabe que detesto essas coisas.
As mãos do doutor Meireles estavam unidas sobre a mesa e aquele sorriso acusador ainda
seguia em seu rosto.
— Bem, não é preciso lembrá-lo de que está aqui, Will, por sua própria culpa. Ao menos, foi
exatamente isso que me disse em nossa primeira conversa.
— Me desculpe — pediu Wilson, passando uma das mãos pelo rosto. Ele olhava para além do
doutor, para a enorme janela triangular atrás dele. O tráfego estava fraco lá fora, com poucos
Aerocarros cruzando o céu enevoado.
— Não há problema, Will — meneou o doutor, com um gesto de mão. — É natural que ainda
se sinta de certa forma… culpado pelos dias de hoje. E acredite em mim quando lhe digo que
isso jamais irá passar— Ele deu uma olhadinha maliciosa para o paciente à sua frente e
acrescentou— A não ser que haja alguma pílula para isso. Há?
Wilson fez que não com a cabeça, sentindo o sangue ferver, achando que não suportaria, que
ficaria de pé e atacaria aquele maldito com um murro.
Não era a primeira vez que aquele tipo de sentimento cozinhava dentro de si, e também não
foi a primeira vez que precisou engolir a raiva goela abaixo e apenas concordar.
Meireles sorriu e anotou qualquer coisa em sua planilha, um bloquinho de vidro de trinta
centímetros que retirou de seu bolso.
— Como está se sentindo hoje? — quis saber ele, não como médico psiquiatra, mas como um
urubu que esperava pelo pior, para descer dos céus e devorar a carcaça podre de Wilson
Cunha.
— Como sempre — respondeu Wilson. — Com vontade de utilizar uma das pílulas. A certa,
quero dizer.
— A Tira-vida?
— Se é assim que chama, que assim seja. O nome que dei a ela no dia doze de outubro de
2580 era muito melhor.
O doutor esticou o pescoço em sua direção, curioso.
— E que nome era este?
— Limpa-merda.
O doutor sorriu e daquela vez foi um sorriso honesto. Covinhas surgiram em suas bochechas,
enquanto ele anotava outra vez na planilha de vidro. A Tira-vida possuía meio milímetro,
tinha uma cor azulada e derretia seu coração dois minutos após ser ingerida. Ela era muito
semelhante à Corte Pela Raiz, exceto pela cor (vermelha) e pelo motivo de ser utilizada
(aborto).
Quando as gestantes utilizavam a Corte Pela Raiz, seus fetos se dissolviam e eram expulsos
através da urina, que saía cor-de-rosa e com cheiro semelhante à lavanda. Um agrado
pensado inicialmente por Wilson, e aperfeiçoado mais tarde por sua falecida esposa, Meg.
Meg que, aliás, fora a primeira a utilizar os benefícios desta mesma pílula e, mais tarde
(exatamente dois anos depois), também fez o uso da Tira-vida.
Essas e muitas outras levavam o nome do cientista Wilson Cunha grafado no verso de cada
embalagem, uma espécie de atestado de eficácia dos laboratórios Cunha & Cia, fechados há
cerca de oito anos.
Atualmente, isso está a cargo da Dinamismo e etcetera, que ficou responsável por toda e
qualquer pílula que circule por Faça Você Mesmo.
Uma merda de burocracia que não ajudou a apagar o histórico assombroso da Cunha & Cia,
para a desgraça de Wilson, que já teve um filho abortado e uma esposa cometendo suicídio.
Ele cravou os olhos no relógio da parede ao lado e descobriu que já haviam se passado vinte
minutos, faltando apenas quarenta para o fim daquela coisa desnecessária. Apenas quarenta.
— Agora me conte, senhor Wilson. Como estão as noites de sono, de uma semana para cá?
— Medianas. — Respondeu Wilson, e aquilo era mentira. Ele conseguia dormir no máximo
duas horas por noite, quando possível.
Às vezes, levantava durante a madrugada e andava nu pela casa, pensando estar escutando a
esposa, algo que não apenas lhe tirava o sono mas também a sanidade. Em momentos como
aquele, abria a gaveta de sua pia e a vasculhava através dos frascos, em busca da Tira-vida.
Não costumava encontrar nada que funcionasse, porém. Então atirava-se na cama outra vez
e nem percebia o sono chegar, sorrateiro, o fazendo dormir a apenas vinte minutos do nascer
do sol.
Era uma vida para poucos, ele bem sabia. Uma vida que o criador de minúsculas desgraças
provavelmente deveria merecer, e disso Wilson também sabia.
— Pode me dar apenas um minutinho? — falou o doutor, e logo em seguida apertou em um
botão alaranjado que ficava localizado no canto esquerdo de sua mesa.
Não saiu som algum dali, mas prontamente a porta atrás de Wilson se abriu e surgiu uma
mulher com cabelos loiros logo depois. Ela estava com um vestido branco, exibindo uma
perna humana e outra de metal, que reluzia como aço inox. Estava segurando uma bandeja,
com um copo equilibrado em cima.
A mulher aproximou-se sem olhar para Wilson, ofereceu a bandeja para o doutor e quando
tornou a se virar, revelou o seu rosto sem maxilar, amputado na altura do nariz. Aquela visão
fez com que Wilson sentisse um arrepio.
— Esta é a Janaína — apresentou o doutor, segurando o copo com uma mão e uma pequena
pílula com a outra. — Como deve ter notado, ela não é de falar muito. Começou no trabalho
há uma semana. Faz parte dessa nova inclusão social projetada pelo governo. E caso esteja
matutando, a resposta é sim. Ela sobreviveu quando a mãe dela ingeriu a Tira-vida. É raro,
mas acontece.
Janaína começou a se retirar andando depressa, deixando para trás a bandeja e um Wilson
Cunha devidamente assustado. Ele escutara boatos de que a Tira-vida às vezes falhava… mas
nunca tinha se deparado com algum suposto sobrevivente. Ver aquilo fez com que seu
estômago encolhesse pela metade.
— Por que pediu que ela viesse até aqui? — a voz de Wilson subira alguns decibéis.
— É minha secretária. E estava na hora da minha pílula diária. Além do mais, lhe pedi um
minutinho. Fui educado, senhor Wilson.
O doutor Meireles deveria utilizar a Engrossa e Estica, a pílula que mais da metade dos
homens de Faça Você Mesmo com certeza já utilizara, uma coisinha azul-celeste que fazia o
pau aumentar em oito centímetros e ganhar uma certa circunferência.
Contudo, não era nisso que Wilson estava pensando. Ele não podia deixar de pensar em
como aquele imbecil agira com tamanha crueldade.
Ele fez de propósito. Trouxe aquela jovem aqui para esfregar na minha cara os danos de
minha própria criação! Filho de uma cadela imundo!
Wilson cerrou os punhos e pequenas meias-luas se formaram nas palmas de suas mãos. Não
pretendia utilizar de sua força, e tinha esperanças de que logo aquele sangue que fervia
dentro de si, começasse a esfriar.
— Preciso tomar a Gravidade Perfeita, — admitiu o doutor. — Ela mantém as coisas no lugar,
como deve saber.
Essa pílula possui a cor acinzentada e serve para manter a pele no lugar. Em casos mais
agressivos, a pele simplesmente se solta e fica sobre o corpo como uma lona marrom e
grotesca. Wilson jamais pensara tanto na quantidade de danos que suas pílulas e suas
invenções conseguiram causar. Porém, não se sentia culpado. Sentia apenas vergonha por
ainda estar vivo, o que, no final das contas, dava praticamente na mesma.
— Podemos continuar com a consulta, senhor Wilson?
Mas Wilson já estava de pé, caminhando na direção da porta. Esta se abriu sem precisar
tocá-la, e fechou-se atrás dele da mesma maneira.
Ele andou acelerado até o Arco, apertou o botão com a palavra TÉRREO e logo já se
encontrava na rampa flutuante.
Já no Aerocar, ligou o piloto automático e chegou em sua casa meia hora mais tarde, onde foi
direto para o quarto deitar, apertando o travesseiro contra a cabeça. Quis dormir, mas
obviamente não conseguiu.
Muito menos sentiu-se melhor. Se as armas ainda existissem, não seria uma má ideia enfiar
o cano de uma na boca e apertar o gatilho. Mesmo sendo o criador da Tira-vida, teria de
enfrentar uma série de testes e perguntas para que uma única pílula lhe fosse cedida, e este
inferno (mais um deles), Wilson não queria ter em sua vida.
Às duas da madrugada, cansado de lutar contra sua própria mente, Wilson foi até a sacada de
seu apartamento e olhou para as estrelas. Um vento quente soprava ali, trazendo consigo o
cheiro forte e nauseante das fábricas de sódio e gás. Não havia uma nuvem sequer, e cada
estrela tinha seu espaço para brilhar.
Estava no trigésimo andar de um apartamento habitado por putas e viciados em Hóstias,
uma droga redonda e achatada que fazia você falar com Deus por quatro horas seguidas
antes de começar a vomitar e cagar em si mesmo.
— Por que não inventou uma pílula para a felicidade? — perguntou para a noite, enquanto
alguma vadia gemia no andar debaixo.
Meio minuto depois, o próprio Wilson respondeu.
— Porque certas coisas não podem ser fabricadas.
Com a cabeça ainda girando, Wilson Cunha deu as costas para a noite e fez um rápido
balanço de sua vida inútil.
A questão não era o que seria do mundo a partir de agora, mas o que seria do mundo sem a
sua presença.
Concluiu que talvez nada mudasse. Bastou apenas um homem para foder com a coisa toda, e
talvez este mesmo homem poderia ter a decência de criar coragem para fazer a coisa certa ao
menos uma vez.
— Levará menos de dez segundos — disse ele, virando-se e olhando trinta andares para
baixo. Respirou fundo e subiu o olhar para as estrelas. — Dez segundos e toda essa gente terá
justiça.
Debruçou-se ainda mais na sacada e para sua surpresa não teve medo. Foi como se uma
espécie de paz lhe acertasse no peito.
— Se pudesse inventar alguma coisa agora, o que seria? — e praticamente sem pensar,
respondeu:
— Uma morte indolor.
Impulsionou-se para frente e procurou manter os olhos fechados.