Desvio
Nem eu nem Beta estávamos exatamente animados com a perspectiva de ter que atravessar a tal passagem interdimensional de mão única. Era inevitável concluir que estávamos diante de uma armadilha, e nem de uma particularmente bem elaborada. Ficamos algum tempo sentados na sala do gerador, olhando em silêncio para a máquina, até que Beta resolveu se manifestar:
- Precisamos saber o que há do outro lado... sem colocar nossos pescoços em risco.
- Eu não gostaria de arriscar nem a unha do dedo mindinho para descobrir - redargui.
Beta estreitou os olhos ao me encarar.
- Se eu soubesse que iria ter uma resposta definitiva, não pensaria duas vezes antes de fazer você ir na frente - afirmou. - Mas, sossegue; não é assim que essas passagens funcionam. Uma vez cruzado o horizonte de eventos, nenhuma informação do lado de lá poderá vazar para o nosso lado.
- Fico um pouco mais tranquilo em saber que não vai amarrar uma corda na minha cintura e me jogar pela passagem - admiti.
- Não, acho que terei que fazer isso eu mesma - decidiu-se ela.
- E me deixar aqui, sozinho? - Questionei, apreensivo.
- Sossegue. Não vou ser um alvo fácil para quem ou o quê estiver do outro lado; vou entrar na passagem pela quarta dimensão e dar uma boa olhada antes de decidir se podemos atravessar em segurança.
- Você quer dizer... vai colocar o corpo inteiro na quarta dimensão, não apenas as mãos, como geralmente faz? - Indaguei, cautelosamente.
- Sim, o corpo inteiro - replicou Beta agastada. - Olha, não gosto disso tanto quanto você, mas diante da perspectiva de ficarmos ilhados nesta fortaleza abandonada, melhor tentar alguma coisa.
- Analisando por esse ângulo... - redargui, palmas das mãos voltadas para cima.
- Vou abrir a passagem e você fica de olho neste mostrador - Beta apontou para um indicador iluminado na superfícir polida do gerador, com uma agulha no início da escala. - Quando passar da faixa vermelha, você desliga esse interruptor aqui, imediatamente. Vai garantir que o horizonte de eventos se feche e que eu seja puxada de volta para cá. Entendeu?
- Entendi - repliquei, muito circunspecto.
- Ótimo. Então vamos lá - determinou para si mesma.
A parede de pedra oposta a nós começou a tremeluzir, como se estivesse sendo vista por trás de uma coluna de ar quente. Finalmente, um vórtice circular formou-se, como se um buraco negro houvesse sido aberto no subterrâneo, deixando um espaço de cerca de 30 cm de distância do piso e do teto.
- A passagem está aberta - anunciou Beta algo desnecessariamente. - Olho no mostrador!
Agachei-me junto ao gerador, enquanto Beta fazia seus procedimentos de imersão na quarta dimensão. Depois de consultar o navegador de pulso, deu um passo para o lado, como um caranguejo; o braço e a perna direitos desapareceram no ar. Ela olhou para mim e gritou:
- Quando o ponteiro atingir a marca vermelha!
- Sossegue! - Redargui, erguendo o polegar.
Fiquei esperando para ver se ainda restaria algo de Beta para ser visto, como o sorriso do Gato de Cheshire, mas em seguida ela desapareceu por inteiro e me vi a sós na sala empoeirada; mas não por muito tempo. Pouco depois, ouvi vozes vindas do andar superior; péssima hora para alguém resolver fazer uma visita à fortaleza!
Havia uma pilha de caixas de peças de reposição encostadas numa parede, e foi por trás delas que busquei abrigo. As vozes ficaram mais próximas: quem quer que fosse, estava descendo para o subterrâneo.
Eu só esperava que saíssem logo, antes que a agulha chegasse à faixa vermelha do mostrador...
- [07-10-2022]