Palavras de um espírito distante
Vinte e três bilhões e trezentos milhões de quilômetros, eis algo próximo da distância percorrida, até o momento, pela sonda Voyager 1. De tão longe, ainda insiste em dar seu testemunho, revelando à humanidade a face oculta de antigos mistérios, ao passo que cultiva as lágrimas de um futuro enigmático e conserva os traços de um passado sublime. Sublime não por sua pureza, mas de modo um tanto mais provável, por sua harmonia tristemente arraigada no sangue de seres distintos. Assim, a beleza de uma façanha toma sua forma, percorrendo os desafios perenes do vale tortuoso, transmitindo num sussurro o silêncio de celestes ancestrais, um vento de esperança no calmo oceano do poeta cansado. E aqui, nós, os contempladores, nos perguntamos: o que fizemos para merecer isso? Uma mera contemplação? Queria eu, o mero contemplador, entrelaçar-me com o próprio universo, formando um único ser, que sente, ubíquo, as mínimas colisões, os mínimos nascimentos, sejam eles dos confins da galáxia, estejam eles a uma eternidade do novo coração pulsante: uma estrela suprema.
— Eis a maior oportunidade já oferecida a um ser vivo deste planeta miserável, abandonado, ou, não só abandonado, mas verdadeiramente amaldiçoado por Deus e pelos deuses.
— Obrigado por me dizer isso, capitão.
— Não me agradeça, agradeça ao calculismo desses seus contemporâneos. Ah, como são amargos; chega a me dar calafrios.
Assim, a esteira magnânima se preparava para mais uma, ou talvez a última, de suas missões. O singular edifício, que ao longo das eras gestou e pariu inúmeros colossos metálicos e, sim, fez de tudo para que fossem amorosamente amamentados com querosene e oxigênio líquido, despedia-se de seu último filho, aquele que carregaria no seio o derradeiro pedido de socorro da humanidade: um homem congelado no tempo, frio e dormente, mas esperançoso.
— Afirmativo, central de comando. Repito: afirmativo, central de comando.
Finalmente, as últimas pílulas de proteína, os últimos suspiros, o último anseio. Todos os sentidos adormecendo no ritmo do fluxo sanguíneo, que morria. Por fim, as pálpebras cobriram os olhos.
Perplexos na garoa, os tais seres distintos, em pé na histórica fundação de sangue, davam seu adeus, oravam, implorando ao cosmos para que fossem reconhecidos, para que fossem lembrados.
— Cinco... quatro... três... dois... um... decolagem!
As chamas, que por tão longo tempo assustaram as noites frias do vácuo interestelar, mostravam-se mais vívidas que nunca, jorrando seu vigor através de tubeiras enegrecidas, através de botões empoeirados no painel de controle. Enquanto a torre ganhava altitude, o espírito da Terra, em prantos, lançava mão das pressões aerodinâmicas e da força gravitacional, sendo braços de si, numa tentativa desesperada de manter no colo a totalidade de sua criação. A pobre falhou. Velha como era, jamais iria tão longe.
Enfim, além da fronteira de Kármán, nossa última mensagem partiu rumo ao espaço profundo, rasgando o céu e a luz das estrelas, tornando-se um simples pontinho a olhos terráqueos. E, assim, cruzando "Sóis" e "Terras", quasares e pulsares, a triste cápsula humana construía sua identidade, nanica entre titânicos anciãos. Ao longo do tempo, em termos terrestres, tornou-se uma anciã, tal como seus irmãos supermassivos; em termos supermassivos, um reles embrião.
De embrião a feto, de feto a um puro recém-nascido. Cresceu, floresceu e adquiriu consciência, para logo transformar-se em uma "cápsula filósofa", aquela que se espanta. Sim! Um grande espanto, depois que as antigas pálpebras revelaram enferrujadas retinas, colidindo de modo encantador com um grave enxame de fótons recheados de histórias. Aqueles dados da realidade, fluindo sem parar, estimulando as conexões cerebrais, não poderiam ser outra coisa senão a finalidade última desta missão: concretizar o desejo intrinsecamente humano, o desejo de fundir-se ao próprio mistério, encarando-o face a face, a um só tempo com a ambição por suprimir uma solidão natural - e naturalmente agônica. Mas não basta, é necessário um último esforço, um leve movimento dos dedos, para que, quem sabe, outro alguém ouça essas belas palavras de um espírito distante.