TERRA EM FRANGALHOS

Terra em Frangalhos

(ou o país dos molambos)

Mais uma hora de despertar no futuro que não tardou em vir. João Carioca da Clara pisca os olhos remelentos, como se quisesse resistir ao novo dia. Coça a cabeça ensebada e, após as imprecações usuais, empurra os sapos montados no colchão surrado, a fim de poder sentar-se e finalmente levantar do leito.

O cheiro enjoativo do lodo toma conta do ambiente, como habitualmente. Já acostumado, João mal o percebe. Dias antes, sentiu, sim, um perfume diferente, feminino, que se sobrepunha ao ar putrefato. Certamente alguma sereia de passagem. Desistira, há muito, de tentar conquistar esses seres mágicos. Não são pro seu bico, melhor sossegar.

Olha para os lados, à procura do fiel Pulguento, esqueleto em forma de cão. Assovia e o bicho logo vem ao seu encontro, para mais uma jornada pelo que restou da esperançosa terra de outrora.

O tipo molambento avança e recua em seu passo trôpego, em meio às indefinições cotidianas, que, a bem da verdade, pouco lhe interessam. Definir o quê? Definir pra quê?

Recorda-se de professores que viviam a pedir definições aos alunos. Agora, uns e outros estão distantes, inconciliáveis, os primeiros a querer ensinar e os segundos a não querer aprender. Para inovar, é preciso libertar-se do passado. Não obstante, sem conhecer o passado, não se compreende o presente. Mas, se a História não se repete... Que confusão desgraçada! Vai ver por isso ele repetira de ano. Arrepende-se de não se haver educado melhor quando ainda havia livros para ler.

Logo que percebe a angústia pensante do dono, o fiel cachorro cutuca-o com o focinho para trazê-lo de volta à realidade.

Vão passar defronte ao que foi um quartel. Diante da porta semi-destroçada, o valente Julião permanece de guarda, em posição viril, quase ereta, com o cabo de vassoura que lhe serve de fuzil.

João aprecia a dedicação do velho soldado. Quando menino, também pensou em sentar praça. Depois, por falta de maior disciplina pessoal, contentou-se em sentar-se na praça, a paquerar as meninas que passavam. Nem sabe o que foi feito daquela praça. Das meninas, muito menos...

Mais adiante, o decrépito Dr. Fundão, próspero e temido banqueiro em outros tempos, dedica-se ao que lhe resta. Apoiado, mais do que propriamente sentado, em um banco de jardim capenga, sem as pernas da direita, o homem das finanças compara gráficos e faz projeções (mentais) na tela de seu microcomputador queimado. Vez por outra, atenta para ver se não houve chamadas em seu celular desprovido de bateria.

Pessoas simplórias fogem apavoradas de um grupo de zumbis. Dr. Fundão nem se move. Os zumbis sabem que devem evitá-lo, se não quiserem pagar altos juros. Ademais, a carne do velho banqueiro deve estar podre e imprópria para o consumo de seletos carnívoros.

Por sábia precaução, Pulguento esconde-se entre as pernas de João. Descrê haja chegado a hora de virar hot-dog.

Agora é o dono que o puxa pela coleira para entrarem nos escombros de antigo e cruel restaurante vegetariano, tomado pelas plantas revoltadas. Dali, acompanham a passagem de pivetes em busca de remendos para roubar. O cachorro reflete tratar-se de menores sem perspectiva, que não se emendam nem aceitam ser remendados.

Prosseguindo caminho, os dois perambulantes enveredam por montes e montes de réplicas abandonadas de monumentos dos mais variados rincões. Identificam a Torre Eiffel, a estátua da Liberdade, o Coliseu, pirâmides e a Abadia de Westminter, cercada de mesquitas e templos que não chegam a reconhecer.

Figurões locais (já falecidos) deste atual país de molambos aproveitaram a onda da globalização, associada à sonegação de impostos e outras facilidades creditícias oferecidas por sucessivos desgovernos, para providenciar tais réplicas. Sua instalação no solo pátrio atenderia ao propósito visionário de promover a civilização com base no exemplo estrangeiro.

Pulguento opina que não haveria propósitos que resistam às saúvas, aos cupins, às sanguessugas e outras pragas autóctones, mas João não parece prestar atenção.

Entretém-se com o som que vem de trás do trio de árvores mortas, alguns metros à frente. Eis que ali se encontra o sanfoneiro Genésio, a tocar conhecidas e agradáveis melodias, dessas capazes de superar a desolação reinante e iluminar espíritos que ainda não renunciaram à vida.

João satisfaz-se por breve instante ao ver que sanfoneiro e sanfona não se encontram em frangalhos. Só a arte dura, uiva o cachorro melancolicamente, decerto com a concordância do dono.

Temporariamente revigorados, os dois caminhantes retomam sua marcha sob as intempéries de costume. Neste país de paradoxos, ora enfrentam um sol congelante, ora têm de abrigar-se da chuva ácida calcinante. Clima descontrolado, temperaturas extremas.

Ainda pior que lidar com as intempéries é desviar-se a tempo de personagens indesejáveis. O homem e seu fiel cão mal conseguem escapar ao grupelho de lideranças cegas que emerge em sentido contrário. Cada uma delas grita palavras de ordem, carentes de substância e bom-senso, e procura gritar mais alto do que seu concorrente, no esforço (que às vezes compensa) de fazer-se ouvir pelos que pretende liderar. Além da gritaria, os membros do grupo brandem suas bengalas de cego à esquerda e à direita, ao léu, de forma ameaçadora.

Após a passagem das lideranças, João escolhe outro caminho, já com a intenção de regressar ao seu sem-lar. Cruza com o pobre padre Valentim, que, enrolado no que lhe sobrou da batina e da fé, insiste em resgatar almas mais perdidas do que ele.

Arnaldo, o mecânico, retira peças de um carro, põe no outro, do qual extrai a bateria para um terceiro veículo, sem jamais conseguir completar um sequer e fazê-lo funcionar. Margarida, a “chef”, mexe com a colher a panela destampada, na vã esperança de que, do céu, caia alguma comida. Sebastião, o sapateiro, esmera-se em engraxar os pés dos clientes, já que sapatos não mais existem.

João descobre-se entediado de tantas cenas que se repetem diariamente, por mais que faça novos itinerários. Pergunta a si próprio que país é esse e só então ouve seu cachorro responder: “o de hoje e sempre, meu amo”.

Agosto 2022.