O ponto da embreagem

Examinadores são uma categoria especializada em fugas. O Examinador que irá me avaliar é um cara com ampla experiência em usar o volante para entrar em conflito com a Segurança Particular. Prestou serviços para Atiradores e outros serviços privados. Saiu intacto de todos os embates. Ganhou ampla admiração do pessoal. Ele tem gabarito, tem currículo para dizer se estou pronto ou não. Me preparo. Me dão um uniforme preto. Também me dão uma arma. Treinei o seguinte método: baixar em quatro segundos o vidro com um botão ao lado do volante. Fiz isso com o dedo esquerdo. Antes do vidro descer, preparar a arma para disparar. Não quer dizer que irei necessariamente fazer isso na fuga, mas quem sabe? Treinei várias coisas. Não sei se estou preparado.

- Não sei se você está preparado. - diz Leandro, um Pastor. - Você sabe que 95% que faz esse “teste” não volta. Entre aqueles que voltam, podem ter sobrevivido, mas um ou dois passa.

Fico quieto. Ele me deseja boa sorte, pega um saco imenso de dinheiro vivo (ainda usam isso) e vai embora.

Vou até o carro. O Examinador está dentro dele. No banco do carona. Ele usa o mesmo traje que o meu. E com a mesma arma que a minha.

- Você vai até o lugar que eu indicar. Não será a prova ainda. Iremos buscar duas pessoas.

Normalmente, em avaliações como essa, o Motorista transporta tecnologias de informação. São missões relativamente tranquilas. A área escura é menos difícil. Nas áreas iluminadas - aquelas em que se paga pedágio - é onde mora o real problema. Os donos dos locais - os mesmos que asfaltam e iluminam as áreas - querem cobrar preços abusivos de pedágio. Ou querem tomar todo o seu dinheiro digital. E físico, se você tiver. Preparam armadilhas e emboscadas. Por isso pouca gente volta das avaliações. Mas parece que minha missão será diferente. “Buscar duas pessoas” só é a primeira parte. Sabe se lá qual será a outra. Ou as outras.

- Se der merda, é provável que você nem chegue a usar essa arminha aí.

- E por quê?

- Vai ser morto antes mesmo de tentar usá-la. Ligue o carro, está na hora.

Liguei o carro. Apertei a embreagem até o fundo. Soltei até o carro tremer. O veículo andou. Alguns metros depois tivemos que parar. Não tive controle da embreagem e o carro morreu.

- Porra, rapaz, como você vai dar fuga se nem aprendeu a ter controle da embreagem direito? Já percebi: seremos todos homens mortos por sua causa, porra.

Colocou a arma em minha cabeça.

- Me dê um bom motivo para não espalhar seus miolos no vidro do carro?

Não esbocei reação alguma. Ele ficou um minuto inteiro com a arma apontada para a minha cabeça. Me olhou detalhadamente. Enfim, abaixou a arma.

- Você manteve frieza. Ficou calmo. Não entendo como pode ter deixado o carro estancar. Explique ou te matarei sem hesitar.

- Não sei como perco o controle da embreagem assim. Talvez eu suba demais. Me falaram que tinha deixar o carro tremer.

- Carro tremer? Mas que caralhos! Século XXV e você dirige como se estivesse num carro com carburador, porra? Pisa fundo na embreagem.

Pisei.

- Levante o pé devagar, não precisa esperar até que o carro vibre. O ponto da embreagem é quando o carro pode andar, animal. A tremida do carro é o limite. Mais um pouco e o carro morrerá. Resolva esse problema e estará salvo.

Ele tinha razão. O carro não morreu mais. Por consequência, também não morri. Mas a missão nem tinha começado ainda. Seguimos em frente.

Passamos por uma área escura. O Examinador pede para fechar as janelas e ligar o aromatizador. A poeira sobe e depois para. Não estamos mais sobre a terra. O carro balança, como se estivéssemos passando por várias lombadas consecutivas, mas não é isso. Estamos passando por cima de cadáveres e restos mortais. Mais adiante, algumas casas começam a aparecer nas margens.

- Desligue os faróis e “ligue” o parabrisa.

Ligo. Há algo no meio da pista de terra.

- É uma armadilha. - diz o Examinador. - Desvie.

Sigo os comandos. Ninguém mexe conosco. Pergunto por quê.

- Não há ninguém vivo nessa área. Porém, as armadilhas não usadas permanecem. Você sabe por que pedi para ligar o aromatizador. Os caras estavam incomodando demais. Então, o Cartel acabou com os restantes. Pode ter alguém vivo, mas não vai querer se expor.

- E ainda não ocuparam?

- Quem disse que não? Logo isso aqui será iluminado. Mas vai ser preciso um enorme forno para limpar isso tudo.

Mais à frente, uma área iluminada.

- Nosso primeiro destino. - diz o Examinador.

Toda área iluminada é uma fortaleza. Tem portão e muralha. Homens fortemente armados cobrem o local. Segurança Particular. E, claro, tem pedágio. Só entra se pagar. Nada é de graça. Se tem algo que todas as cidades-estado têm em comum, é: “você vai ter que pagar para usar meu asfalto e minha iluminação”. Além disso, sempre tem alguém que manda na área. Antes chamavam isso de “Estado paralelo”. Mas esse termo não faz mais sentido nos dias de hoje.

- Não vamos pagar nada.

- Mas como assim? Eles vão atirar!

- Não vão. Siga. Nosso carro não é suspeito. Sabe que nós estamos aqui. Mas não tire a mão do volante, nem faça movimentos bruscos.

Um pouco mais à frente, um carro saiu de dentro de um beco. Um homem com fuzil em mãos parou na nossa frente e fez um sinal, sugerindo para eu diminuir a velocidade.

- Diminua a velocidade e siga o carro que saiu do beco. - disse o Examinador.

Segui. O carro nos levou a uma mansão. Outra fortaleza. As casas dessas áreas iluminadas são semelhantes a fortalezas: fortemente armada. Repito: é a Segurança Particular. Normalmente, a mansão maior e mais armada tem o dono que “manda na área”. O dono age como um senhorio e cobra das casas menores. Não raro ocorre conflitos violentos. No fim, o mais forte sempre prevalece.

Os carros passam por um imenso jardim, que é o caminho até chegar à porta da residência. Há várias armas apontadas para nosso carro, enquanto passamos. O Examinador colocou as duas mãos para fora da janela.

- Não tire as mãos do volante por nada nesse mundo. Não tire um único dedo. Ou vamos virar peneira.

Chegamos até à porta da mansão. Em frente a ela, o dono da casa. Um homem armado que estava com ele fez um gesto, indicando o local onde eu tenho que parar.

Parei.

- Não sai ainda. - disse o Examinador.

Quatro homens armados mandam a gente sair do carro com as mãos para cima. Saímos. Dois deles nos revistam. Encontram as arminhas.

- Tudo certo. - disse um deles.

Devolvem nossas armas.

- Seja bem-vindos à minha casa. - disse o dono da casa. - Examinador, desculpe por isso, mas você sabe como é.

- Sem ressentimentos, Samurai.

Entramos na casa.

- Esse é o Avaliado, suponho. - diz Samurei, se referindo a mim. - Quer ser meu colaborador?

Respondo que sim.

- Deu sorte, rapaz! A sua avaliação será fácil. Mas antes de explicar, vou contextualizar. Como homens do século XXV, vocês têm uma “entrada” na parte de trás da cabeça que permite que vocês acessem o cyberverso. Nesse mundo virtual, vocês podem viver uma vida diferente. Até aí tudo bem. Mas, como vocês também sabem, essa realidade alternativa é usada para foder com a vida dos outros. No meu caso em particular, estão usando disso para foder com meus negócios, para ser direto. Nós, donos de áreas iluminadas, delimitamos nosso território, nos preparamos para conflitos aqui na vida real. Mas precisamos também enfrentar guerras no mundo digital. É por isso que impomos regras para o uso do cyberverso dentro do nosso perímetro, para nos prevenirmos. O problema é que sempre tem algum filho da puta, aqui mesmo dentro do nosso território, querendo nos foder. Quebram regras, usam do cyberverso da forma que não permitimos. Quando capturamos, torturamos e matamos esses malditos, eles sempre vêm com o papo de liberdade. Pois, então, que construam as áreas deles e vivam lá como querem, usando o cyberverso da forma como querem. Mas aqui dentro, nós mandamos. Nas últimas semanas, alguns cards de cyberverso começaram a circular por essa área. De alguma maneira, conseguiram furar bloqueio que impus para proteger minha família, quando ela usa o cyberverso. Mataram meu filho lá dentro e ele morreu aqui fora. Eles precisavam usar da minha rede para isso ser possível. O meu garoto teve morte cerebral. Vocês entendem o que estou falando? Por que proibimos? Conseguimos pegar todos os malditos por trás desse esquema. Matamos todos, inclusive o assassino de meu filho, que tive o prazer de fatiar com minha katana.

Ah, agora entendi por que o chamam de Samurai.

- Porém, ainda falta um. Não foi fácil derrubá-los. Alguns dos meus homens foram mortos. Foram e não voltaram. Agora tenho vocês. Ainda falta um desgraçado, que está numa casa dessa área, já localizada, para eliminarmos. É o trabalho de vocês. Peguem ele de surpresa, pois ele acha que está seguro. Nem eu e nem minha família entramos no cyberverso nesses dias. Senão, estaremos vulneráveis. O último cara tem que ser morto e os cards serem destruídos. Já conseguimos rastreá-los. Provável que, fora a Segurança Particular, ele esteja sozinho.

“Provável?”, pensei.

Samurai chamou dois caras. Ou melhor, dois Atiradores. Um homem velho chamado Rick. E um homem mais jovem que ele, chamado Morty.

- Nos acompanhe. - disse Rick, que nos levou até um arsenal.

- Tudo que você vai fazer é dirigir, garoto. - me disse o Samurai. - Talvez você precise fazer mais coisas, mas é provável que não. E o Examinador apenas irá avaliar você. Rick e Morty farão a parte difícil.

Entramos no carro e fomos a caminho da casa do alvo.

No caminho, Rick e Morty detalharam o plano.

- Garoto, você vai parar em frente à casa. Mas só depois que derrubarmos dois homens da Segurança Particular. Depois, vocês dois esperam para nos dar fuga, caso seja necessário. Nós iremos subir até a casa do alvo. Matamos ele e quem estiver lá e vamos embora.

Pensei: também duvido que o cara esteja sozinho lá dentro. Mas a princípio, o plano deu certo. Usando armas com silenciador e demonstrando uma precisão mirífica, Rick e Morty derrubaram os dois únicos seguranças. O alvo estava escondido numa casa pequena. Quanto menor a casa, menos poder de fogo tem o dono dela. Todavia, o alvo era mais forte do que o tamanho da casa indicava. Ele estava escondido ali para não chamar atenção e não tinha saído da área por duas possíveis razões: quer terminar o que começou, ou seja, matar a família inteira de Samurai e o próprio Samurai ou ele sabia que poderia ser reconhecido se tentasse passar pelo pedágio. Parei em frente à casa. Rick me deu um cronometro marcando cinco minutos.

- Há 99% de chances de eu e Morty cumprirmos a missão. Mas caso a gente não volte em cinco minutos, vocês pegam essas duas submetralhadoras no banco de trás e entra na casa metendo bala. Nem queira saber de nós dois. Vamos, Rick.

Os dois entraram na casa do alvo.

Enquanto o tempo passava, eu ficava treinando a embreagem.

- Não preciso esperar tremer?

- Não precisa.

Faltam 10 segundos para acabar o tempo. Rick e Morty ainda não voltaram.

- Mas que porra, garoto. Pega as armas aí atrás. Vamos ter que entrar.

Um barulho de zumbido, bem baixinho.

- Escutou isso? - perguntou o Examinador.

- Escutei.

- Vamos agora!

Agora a ansiedade bateu. Não esperava ser avaliado dessa forma. Eu sou um Motorista!

Subimos. A porta estava encostada. O barulho de zumbido tinha ficado alto, mas de repente parou. O Examinador chutou a porta e entrou disparando. Derrubou dois caras que estavam na sala. Um homem todo sujo de sangue saiu de dentro do banheiro com uma motoserra ligada. Metralhei o desgraçado. Dentro do banheiro, o show dos horrores. Morty havia sido serrado vivo. O cara que matei amarrou ele e usou a motoserra para serrar uma perna, um braço e uma parte do pescoço. Chegamos na hora em que ele estava prestes a serrar Rick, que estava amarrado.

- Algum deles é o alvo? - perguntou o Examinador, apontando para os três cadáveres no chão.

- Não. Eu e Morty caímos numa armadilha. - respondeu Rick, agora desamarrado.

O alvo estava em outro cômodo. Conectado no cyberverso. Os cards e injetores de droga estavam espalhados na mesa. Na tela do computador dava para ver o mundo virtual onde ele estava: um homem de família com uma vida feliz. Rick atirou na cabeça dele e depois na tela do computador. Colocamos gasolina e tocamos fogo na casa toda. Incluindo os cards. Mas eu não sou bobo, peguei uns cinco - quatro vieram de forma aleatória, um específico eu escolhi. Nem Rick e nem o Examinador viram eu fazer isso. Aliás, desconfio que eles pegaram também. Tiramos fotos do alvo morto e fomos receber nossas recompensas.

No caminho, Rick revelou algo.

- Os dois caras que você metralhou na sala, Examinador, eram colaboradores do Samurai. Tinham traído ele. Você fez um bom trabalho. E você também, garoto. Fez mais do que deveria.

Fiquei chocado com a calma dele. O comparsa teve uma morte horrível e ele presenciou tudo, mas não há nenhuma expressão de horror nele.

Depois de receber samuraicoins, ser aprovado pelo Examinador e ter me tornado colaborador do Samurai, ele me deu uma casa na área dele. Lá dentro tinha um conector para o cyberverso, mas claro que não confio. Eu tinha meu próprio notebook. Estava na hora de ver os cards. Como eu disse antes, peguei cinco. Quatro foram pegos de qualquer maneira. Um eu escolhi bem antes de pegar. Nesse card estava escrito “autoescola”. Inseri o card, injetei a droga, me conectei e entrei no cyberverso. A conexão com esse card permite o acesso a um tipo de universo virtual inalcançável pela fiscalização do Samurai. Nesse mundo virtual, eu… me tornei um aluno de autoescola. Quero treinar o controle pleno da embreagem.

FIM