Legendária

Heval havia comprado a astronave por uma pechincha; tão barato, na verdade, que eu e Kani começamos a suspeitar que ela era roubada - ou coisa pior.

- Eu verifiquei os registros da polícia antes de fechar negócio, - garantiu solenemente - e não havia nada em nome da "Efsanewî"!

"Efsanewî", naturalmente, era o nome que dera à astronave. Apertamos Heval um pouco mais e ele acabou revelando que uma provável razão para o veículo não constar dos arquivos policiais, é que fora fabricado há mais de 900 anos. Com todas as mudanças políticas e de sistemas informatizados ocorridos durante quase um milênio, era pouco provável que um boletim de ocorrências houvesse sobrevivido até os dias atuais. Começamos a ficar um pouco mais aliviados.

- Certo, é uma relíquia em bom estado, mas o que precisamos é de uma nave para usar em mineração asteroidal - ponderei. - Suponho que ao menos os circuitos e motores tenham sido trocados nos últimos séculos...

- O vendedor garantiu que sim - afirmou Heval. - A última revisão foi há 50 anos. Aliás, só há um componente original no sistema da "Efsanewî": a inteligência artificial.

Eu e Kani nos entreolhamos.

- Posso saber por que a sua nave precisa de uma AI milenar? - Questionou Kani.

Heval abriu as mãos, palmas para cima.

- O vendedor me disse que todas as tentativas anteriores de trocar ou atualizar a AI fracassaram. E que, por isso, os outros compradores acabaram passando a nave adiante.

- O que há de tão errado nessa IA que ninguém consegue conviver com ela? - Indaguei.

- Não faço a menor ideia. Vim pilotando a "Efsanewî" de Bîrnebûn até aqui e não notei nada de estranho - redarguiu Heval. - Achei a IA até muito simpática, embora talvez um pouquinho distraída... e ela tem um nome, Seran.

- Ah, a IA é uma garota - constatei.

- Uma garota não - corrigiu Heval. - Uma senhora, de quase mil anos de idade.

- Acho que está na hora de fazer uma visita à Seran e perguntar o que os outros proprietários tinham contra ela - decidi. - Afinal, dois terços da nave foram comprados com meu dinheiro e de Kani.

* * *

- Seran? Trouxe visitas! - Heval exclamou, quando entramos na cabine de comando da "Efsanewî", pousada no espaçoporto local.

- Visitas, não - atalhei. - Somos sócios de Heval, Asin e Kani.

- Olá, Asin e Kani - saudou-nos a IA, com uma voz que parecia ter bem menos de 900 anos de idade. - O que posso fazer por vocês?

- Uma pergunta, Seran - repliquei. - O que seus antigos donos tinham contra esta nave? Pelo que eu e Kani pudemos verificar, ela está em perfeitas condições de uso... apesar da idade.

- Sem ofensa - acrescentou Kani.

- Eu já estou acostumada - riu a IA. - Bom, o motivo é absolutamente ridículo, mas fica a cargo de vocês acreditar nele ou não...

- Seja absolutamente sincera - solicitou Kani.

- Serei - prometeu Seran. - Todos os seus antecessores disseram que a nave é assombrada.

- Todos? - Kani coçou a cabeça.

- Todos - repetiu Seran.

- E... alguém morreu aqui, por conta disso? - Indaguei cautelosamente.

- Oito pessoas, nos últimos nove séculos - informou a IA.

- É uma média bem baixa, se formos avaliar - ponderou Heval. - Acidentes acontecem no espaço, vocês sabem.

- A estatística não é das mais assustadoras - avaliou Kani.

Eu não estava inteiramente convencido.

- E quantos desses oito eram proprietários que não venderam a nave depois de... verem assombrações a bordo? - Questionei desconfiado.

- Todos eles - assegurou candidamente Seran.

E antes que qualquer um de nós pudesse falar, acrescentou:

- Mas juro que não tive nada a ver com estes trágicos incidentes.

Seran provavelmente não podia mentir, mas, por via das dúvidas, no dia seguinte colocamos a "Efsanewî" à venda.

- [28-07-2022]