Tradições
- Vera realmente falou isso? - Perguntei para Adrian.
O garoto balançou afirmativamente a cabeça, muito sério.
- Eu não acho que ela estava brincando - afirmou.
- Essa é uma declaração muito séria para se fazer sobre alguém - ponderei. - Todos sabemos o quanto é importante para a comunidade, mas ninguém... ninguém gostaria de ser o escolhido, não é?
- Não - assentiu Adrian, taciturno.
- Vera é estranha; não nasceu aqui, você sabe - relembrei, tentando desfazer o mal-estar. - De onde ela veio, nas Ilhas, não há uma tradição como a nossa.
- Eles não têm loteria, foi o que ouvi dizer - replicou ele.
Dei de ombros.
- Talvez porque as Ilhas não foram atingidas pela Grande Devastação; e então, não precisaram fazer a loteria - avaliei.
Adrian continuava remoendo seus pensamentos sombrios.
- Vera disse que, nas Ilhas, "acertar na loteria" tinha um outro sentido - ponderou.
- Lá, dizem que isso acontece quando se tem muita sorte - redargui. - É uma coisa boa, mas apenas para o indivíduo, não para a comunidade. Aqui nós valorizamos a comunidade muito mais do que o indivíduo: quando alguém acerta na loteria, quem ganha somos todos nós.
E para comprovar nossa superioridade cultural sobre os ilhéus:
- Eles nem sabem escrever, nas Ilhas! Nós precisamos saber, ao menos para escrevermos nossos nomes para o sorteio.
Adrian fez um gesto afirmativo.
- Vera é mesmo esquisita; disse que se esse era o preço para aprender a escrever, preferia continuar analfabeta.
- Eu não disse? - Aparteei triunfante. - São individualistas, não entendem o que é se sacrificar pelo bem comum!
- Pois Vera insiste em dizer que a loteria é um costume bárbaro e sem sentido - Adrian me encarou como se temesse minha reação, mas eu já ouvira aquilo de outros estrangeiros que passavam pela nossa comunidade, e não me afetava de modo algum.
- Para quem não sofreu os horrores da Grande Devastação, é fácil rotular nossas tradições como bárbaras e sem sentido - repliquei. - Nós assumimos nossas responsabilidades e não fugimos delas, como os ilhéus analfabetos.
- Ainda assim, eu gostaria que outra pessoa fosse sorteada - admitiu Adrian. - Isso não é querer ser egoísta, não é?
- Não, não é - tive que concordar. Eu mesmo, na idade de Adrian, tinha verdadeiro pavor de ser o escolhido. E como eu superara o medo e continuara a viver, até passar da idade em que se era elegível para a loteria?
- Geralmente só ensinam isso quando você fica mais velho, - declarei solenemente - mas há leis que governam a probabilidade de você ser o escolhido: chama-se estatística.
Adrian ergueu os olhos para mim, subitamente parecendo completamente desperto.
- [27-07-2022]