O Solucionador
A noite ia pelo meio, mas as duas batidas na porta não despertaram o Solucionador. Quem batia, também sabia que ele não dormia. Jamais.
- O que houve, Ginger? - Indagou o Solucionador ao abrir a porta e deparar-se com uma grande cadela de pelo ruivo - daí o nome.
- Um dos filhotes de Buster caiu num buraco - disse a cadela, com uma voz surpreendentemente humana. - Pode nos ajudar?
- Sim, claro que posso - redarguiu o Solucionador, num tom de voz que não transmitia nenhum aborrecimento, mesmo considerando a interrupção em seus estudos, àquela hora da madrugada. - Me aguarde enquanto vou pegar algumas coisas...
Ele já tinha uma mochila pronta para aquele tipo de emergência: lanterna, corda, gancho, um cesto de vime para içar quem quer que houvesse caído num buraco e pesasse menos de 10 kg...
- Vamos - disse para Ginger, após colocar a mochila nas costas e fechar a porta da casa. Acendeu a lâmpada a óleo; a noite estava escura e sem lua, e seus olhos já não enxergavam tão bem quanto antigamente.
- O que o filhote de Buster estava fazendo fora do ninho, de madrugada? - Questionou enquanto caminhava ao lado da cadela.
- Você sabe como são os filhotes... - redarguiu ela em tom de desculpas. - Deve ter acordado no escuro, ouviu um barulho e resolveu conferir. Se afastou mais do ninho do que o recomendado, e caiu no buraco...
- Ah, sim - comentou o Solucionador em tom distraído. - Bem típico.
Caminharam pela rua margeada por casas em ruínas e tomada pelo mato e ervas daninhas; o Solucionador tentava manter a passagem aberta durante boa parte do ano, mas a vegetação crescia rápido e fora ele, não havia mais ninguém ali que fizesse uso do velho caminho outrora trilhado pelos humanos.
- Ali - disse Ginger, abanando o rabo para as ruínas de um prédio de apartamento de quatro andares, parcialmente desabado sobre a rua.
- Ei! Filhote! - O Solucionador gritou, mãos em concha à frente da boca.
Um latido fraco veio de sob uma laje; o filhote ainda não havia aprendido a falar.
- Terreno perigoso - avaliou o Solucionador, retirando o rolo de corda de náilon da mochila, e amarrando a cesta de vime na extremidade. - Vamos ver se ele não está machucado e consegue subir sem ajuda...
Localizou a entrada do buraco - uma abertura para a galeria de águas pluviais abaixo - e iluminou-a com a lanterna. O filhote estava lá embaixo, percebeu, sujo de terra mas aparentemente ileso.
- Vamos ver se você consegue sair, campeão? - Indagou o Solucionador em tom retórico, enquanto fazia descer o cesto de vime.
- Suba no cesto! - Gritou Ginger, para ajudar o Solucionador.
O filhote fez como havia sido ordenado e pouco depois o Solucionador o içou até a superfície, onde Ginger o recepcionou com lambidas generosas por todo o corpo.
- Não vá me aprontar outra dessas, hein? - Disse o Solucionador enquanto enrolava a corda. - Estou ficando velho para me arrastar por aí no meio da noite.
- O que vamos fazer se isso acontecer, Solucionador? - Indagou Ginger apreensiva. - Quem vai nos ajudar quando precisarmos de alguém com mãos para nos socorrer?
O Solucionador olhou para Ginger, enquanto ajeitava a mochila nas costas.
- Talvez seja hora de começar a procurar por humanos - declarou finalmente. - Sim, eu sei que eles parecem ter se extinguido há muitas e muitas das suas gerações, mas eram uma espécie ardilosa. É possível que ainda estejam por aí, em algum lugar...
E colocando o filhote num bolso da mochila, complementou:
- Se foram capazes de me construir, certamente não devem ter desaparecido por completo.
- [02-07-2022]