Lembranças
Este conto foi um dos finalistas do Concurso FCdo Brasil. E fará parte da Antologia 2006-2007 a ser lançada até o final do ano.
Eu queria uma lembrança que fosse minha, só minha, e pudesse ter certeza de tê-la realmente vivido!
Às vezes me lembro numa praia, o vento balançando meus cabelos, a mulher e os filhos escondidos na floresta, tremendo de medo, os companheiros aguardando a ordem de atacar as caravelas aportando ao fundo. Homens estranhamente trajados acenam para mim conversando numa língua estranha.
Noutras vezes, mulheres seminuas dançam voluptuosas à minha frente, um eunuco vigiando a porta, frutas cobrindo toda a mesa ao lado, minha atenção fixada numa das bailarinas, um princípio de excitação no baixo ventre.
Algumas vezes ao cruzar com pessoas na rua tenho a impressão de tê-las conhecido um dia. Umas até se voltam e me cumprimentam, quando não param e ficam horas e horas falando sobre coisas que tenho certeza ter ouvido antes. Perguntam da minha vida, o que estou fazendo agora e de pessoas que recordo vagamente. Forço a memória e flashs percorrem meus neurônios numa busca incessante de referências. Imagens sobrepondo-se sobre imagens. Lembranças sobre lembranças. Como um filme acelerado a 5000 quadros por minuto. Pelos trajes percebo se são da época atual ou de eras antigas. Cleópatras mesclando-se com Madonas. Gladiadores com executivos endinheirados. Neolíticos com políticos esbravejando em palanques improvisados.
O que sou? O que fui?
São perguntas que faço todo dia sem encontrar respostas convincentes.
O livro à minha frente, o autor é um especialista em linguagens cerebrais e suas conseqüências, explica com palavras complicadas que o cérebro humano sobrepõe memórias recentes sobre memórias antigas, embutindo-as aparentemente. Não de todo. Lembranças agradáveis ou marcantes na vida do indivíduo ficam em suspenso esperando acionamento e qualquer cheiro, som ou imagem que se possa relacionar faz com que despertem. Por isso certas pessoas ou acontecimentos comuns tem a capacidade de serem agradáveis ou boas aos nossos sentidos. Lembranças marcantes ou dolorosas também ficam nesse limbo sensorial. O autor força um pouco a barra, assinalando que, talvez daí advenha o fato de algumas pessoas serem consideradas simpáticas ou antipáticas à primeira vista, mesmo não se tendo nenhum contato com elas antes.
Inconscientemente balanço a cabeça, discordando.Comigo acontece diferente. Pouco consigo lembrar de fatos acontecidos pouco antes. Nem lembro o que fiz hoje de manhã. Ontem.Ou semana passada.
O autor cita o I.M.U. diversas vezes, assim como Páscoli e Pereira.
Como um relâmpago, a imagem deles rasga minha mente e quase posso vê-los à minha frente, em seus impecáveis uniformes brancos.
Sinto-me observado. Ergo a cabeça e observo a enfermeira mover a boca, as lembranças ainda ocupando minha mente, demoro um pouco para assimilar que fala comigo. Um nome vagamente conhecido, palavras dispersas, consigo captar algo como “o efeito não demora, formulário de compensação e agradecimentos”. Sorrio em resposta e vou para o banheiro que presumo seja no corredor à esquerda.
Um rosto familiar no espelho olha-me demoradamente enquanto novos rostos forçam minha memória querendo explodir e uma dor de cabeça terrível obriga-me a esfregar a testa com força. Como se isso pudesse aliviar a dor.
Lavo o rosto tentando ordenar meus pensamentos, tentando descobrir o que realmente sou. O rosto refletido tem entre 30 e 35 anos, cabelos castanhos, alguns brancos aparecendo, olhos claros, mais ou menos 1 e 75 de altura. Pego a carteira no bolso.Abro. A foto no RG é a mesma do espelho, um pouco mais novo. Examino o nome. É o mesmo murmurado pela enfermeira. Por breves instantes percebo que meu nome é Eduardo Ferreira de Souza e tenho 33 anos de idade. Com certeza meu apelido é Edu. Eduardos normalmente são chamados de Edus. Procuro insistente por um endereço onde devo morar e não encontro.
No outro bolso encontro uma chave de carro. No mesmo instante a imagem de um veículo no estacionamento aflora em minha mente. É hora de me descobrir um pouco mais.
II
Acordo no quarto, uma enfermeira velhota e gorda tomando meu pulso, a dor de cabeça latejando cada vez mais. Mais tarde virão, primeiro o Dr. Pereira, depois o Dr. Páscoli verem como estou. Em todos os surtos – e não foram poucos – a ordem de chegada é essa.
Farão ar de preocupados, discutirão um pouco entre si termos que desconheço na maior parte, um ar de lamento antes de aplicarem um novo sedativo que me fará dormir 10 ou mais horas seguidas. O que fazem comigo enquanto “durmo” não tenho a menor idéia. Nem interessa. O que eu desejo mesmo é uma vida normal, como era antes de entrar no Instituto naquela tarde fatídica para ganhar uma mixaria de dinheiro que mal recebi, paguei contas atrasadas. Bem, não posso ter certeza absoluta se foi isso mesmo que fiz. Vagas lembranças de estar pagando alguém não sei onde, às vezes aflora. Podem ser lembranças de outra pessoa numa era anterior a minha. Quem pode garantir?
Como perceberam, não tenho certeza de nada que penso. Existe um milhão de lembranças na minha cabeça, com certeza algumas minhas mesmo. De uma vida realmente vivida. As outras, umas sei a quem pertencem, a maioria não tenho a mínima idéia.
Uma no entanto tenho certeza absoluta que é minha. A de como vim parar aqui, nesta espécie de hospital onde várias pessoas vivem exclusivamente para cuidar de mim. Do meu bem estar permanente. Eu a amadureci tentando conter as outras lembranças e lendo. Lendo muito livros enaltecendo a proeza dos PPs, sua visão de futuro, suas inteligências e da projeção que deram ao país com sua descoberta. É algo que descobri recentemente: enquanto leio e adquiro conhecimentos, eles se sobrepõem às memórias antigas e consigo obter algumas certezas. Uma espécie de fixação mental.No mais é procurar lembrar do que li mais e mais vezes. Então essas lembranças fixam-se mais fortes e eu não enlouqueço lembrando de batalhas persas, de viagens marítimas e mulheres que foram minhas esposas um dia.
III
Tudo começou quando o Dr. Orlando de Pascoli teve um insight.
Se herdamos - pensou ele - a aparência física e as vezes o temperamento de nossos pais e avós, porque não também suas memórias? Algumas experiências laboratoriais transplantando cérebros de ratos que atravessavam labirintos para outros novatos e estes adquirindo conhecimentos com o transplante, seguindo as mesmas rotas anteriores, teve a certeza de estar no caminho certo.
O passo seguinte seria descobrir o porque do esquecimento parcial e em que parte do cérebro estariam “armazenadas” tais memórias. Aliando-se ao Dr. Waldemar Pereira, um bioquímico com estágios na Alemanha e Estados Unidos, conseguiram desenvolver um reagente ativo, batizado com o sugestivo nome de memoriotron, capaz de ativar partes cerebrais isoladas, ganhando com isso o Nobel de química.
Minto! Na realidade foram vítimas do mal conhecido como síndrome de Einstein nos meios científicos. Raramente um cientista, escritor, químico ou qualquer outra categoria de gênio foi premiado por sua contribuição mais importante. Einstein por exemplo, que deu nome à Síndrome, a maioria imagina que ele levou o Nobel de Física pela Teoria da Relatividade. Engano! A Academia não teve tempo ou mérito para analisar friamente a questão e premiou-o por outra descoberta , a explicação do efeito fotoelétrico.
Assim como Paul Dirac o foi, levando o prêmio pelo desenvolvimento de novas teorias atômicas e não pelo aperfeiçoamento da Teoria quântica. Que Max Born ganhou em 54!
Páscoli e Pereira, os PPs como ficaram conhecidos nos meios científicos levaram o Nobel pela diagramação das zonas cerebrais. Idealizaram o cérebro como uma cebola. As camadas externas acumulando memórias recentes. Da própria vida do ser em questão. A anterior, dos pais. A subseqüente, avós. E assim sucessivamente. Lógico, essa foi a imagem estilizada passada pela imprensa a nós, meros mortais. Na realidade haviam muito mais alternativas e descobertas que a imagem de um simples bulbo armazenando nossa existência.
Essa “mapeação” das zonas memoriais resolveu um incômodo: como saber onde procurar lembranças, por exemplo, de nossos tataravôs? Escarafunchando o cérebro, traríamos à tona memórias dispersas e nunca saberíamos se eram de ascentrais relativamente recentes – avós, bisavós – ou de eras remotas. Nosso ascentral da época do descobrimento, por exemplo, poderia ser confundido com aquele tio-avô que vivia inventando histórias e façanhas que nosso pai adorava, porém nunca levava a sério.
“Então – disseram alguns incrédulos na época – se eu quiser saber como era a vida na época dos faraós é só ativar as memórias do meu antepassado desse tempo e num vapt vupt tenho tudo em minha mente num instante?”
Claro que estavam equivocados! Se meu antepassado no ano 33 da Era Cristã morasse na China ele nunca saberia sobre a vinda do homem mais importante da Humanidade e conseqüentemente eu nunca saberia o modus vivendi da época. Ou em outro exemplo: se ele morasse onde hoje é a América do Sul, como eu poderia memoriar a vida sob o jugo dos faraós, do outro lado do Atlântico?
Foi exatamente por isso que o Instituto da Memória Universal – o IMU – foi criado. Incentivando as pessoas a doarem suas lembranças para a formação da Biblioteca Universal, com o tempo formariam um vasto arquivo onde pessoas interessadas no passado encontrariam o desejado. E todos saberiam a história real de toda a humanidade e não apenas a visão dos vencedores. Afinal, não afirmam que a História é escrita pelos vencedores e raramente pelos vencidos?
Com o M.I.N.D. transformando ondas cerebrais em imagens armazenadas em microchips de longa duração breve teríamos a maior biblioteca ou imagenteca, como a imprensa batizou de cara, sequer imaginada. Corte de verbas, má vontade de certos figurões e otras cositas mas, atrasaram o programa. Coisas de banana repúblic!
Uma singularidade chamou a atenção durante a captação das lembranças. Quanto mais antigas as memórias, mais pessoas as tinham e viceverseaneamente, mais recentes, mais raras. Uma lógica perversa: se descendemos de um grupo mínimo de pessoas, as lembranças delas povoariam todas as mentes atuais. Quando os dispersamentos primitivos se iniciaram, por culpa de guerras tribais, degelos, terremotos, falta de comida , etc, as memórias também foram se dispersando.
Outra singularidade, agora um tanto menor: obteríamos lembranças de um personagem da história apenas se ele ou ela tivesse descendentes. Pura lógica! Se não houver receptáculo para armazenamento a lembrança se perde. Alguns personagens nunca teriam suas memórias armazenadas no IMU. Jesus Cristo, Oscar Wilde, Abel, Alexandre, o Grande, não se conhece descendentes de tais personalidades. Portanto, memória zero.
Outra descoberta interessante: feitos praticados após a concepção do último descendente não seriam detectados. Supondo que Colombo não houvesse gerado filhos após a descoberta das Américas, nunca poderíamos descobrir o que ele fez durante a “aposentadoria” ou mesmo durante a travessia. Faltaria um receptáculo para armazenar suas lembranças.
Descobriu-se também memórias difíceis, porém não impossíveis de serem encontradas. Exemplo? O carcereiro de Napoleão em Santa Helena teve um filho depois da morte do francês. Portanto suas memórias foram conservadas para a posteridade. Seu filho, segundo relatos, teve apenas uma filha, raro numa época onde filhos pupulavam como coelhos. No entanto, houve uma quebra de linhagem no inicio do século 20. Outro exemplo relacionou-se com o Império Asteza. Com a morte praticamente total dos remanescentes do império por Cortez, seria mais fácil ganhar na loteria que encontrar um descendente direto com memórias herdadas durante o reinado dos imperadores astecas. Montezuma seria impossível. Cortez passou a fio de espada todos os descendentes e matou ali mesmo, junto com a glória do império todo o tipo de lembrança do reinado.
Essas lembranças ficaram popularmente conhecidas como moscas brancas.
Com o efeito do memoriotron durando de 10 a 12 horas, adquiridas as memórias os doadores ficam durante esse tempo um tanto quanto desorientados, sem saber se o que pensam é seu ou de um ascendente. Após o efeito voltam ao normal. Segundo alguns especialistas, qualquer ser humano não suportaria conviver com mais lembranças que as dele mesmo. Num tipo de salvaguarda o cérebro embute lembranças antigas enquanto adquire novas e as guarda numa espécie de limbo, onde depositadas só serão ativadas se extremamente necessárias. Citam casos de indivíduos que ás vezes conseguem lembrar-se de fatos ocorridos na infância ou pré-infância. Durante um certo tempo psiquiatras utilizaram a regressão mental para curar indivíduos com problemas psíquicos quase sempre usando hipnotismo. Hoje a técnica foi abolida, sendo utilizada apenas em espetáculos por mágicos e charlatães.
Os técnicos depuram as imagens memoriográficas, extirpam as desnecessárias e só aí armazenam o essencial. A imprensa vive alardeando que é um projeto para 50 anos antes da Biblioteca Universal ser oficialmente declarada completa. Toda a humanidade será beneficiada. Em tese, qualquer pessoa poderá acessar os arquivos da biblioteca e tirar dúvidas. Tal qual as convencionais hoje.
Um dos cuidados tomados pelos técnicos, que chamam de exaurir a fonte, é a de usar apenas uma era memorial de cada doador.Poderiam usar poucas pessoas e explorarem uma a uma, cada era de um seu ascendente, mas por uma questão de precaução preferem usar vários doadores de memória e em cada um acessar uma parte mínima do cérebro. Por isso as campanhas freqüentes nas televisões solicitando doações. Primeiro um teste básico numa época determinada, com um mínimo de memoriotron. Depois de uma análise mais apurada e se compensadora, extraem as lembranças, cruzam com outras do mesmo período e fazem um mapa setorial com as informações mais pertinentes.Tipo, um doador tem memórias da Europa medieval, outro do império sino, aqueloutro das regiões inexploradas na época. Juntam as informações para uma visão geral do mundo na época e não apenas de uma região determinada.
Muita gente afirma convicta que a criação do I.M.U. torna possível um sonho acalentado na maioria das histórias de ficção científica: a viagem no tempo! Sem uso de astronaves ou qualquer tecnologia hard. E não deixam de ter razão!
IV
Imagino que tenha sido um dos primeiros a ser testado pelos doutores do I.M.U. Bem antes do instituto ter sido criado. Creio que fui o primeiro passo após os ratos. A droga estava em seus estágios iniciais ou meu cérebro é diferente dos demais e não expurgou-a depois das doze horas, como na maioria das vezes acontece. Não sei qual das duas hipóteses é mais consoladora. Li algo sobre acidentes com outros pacientes, quase todos na mesma época que doei minhas lembranças.Pequenas tremedeiras nas mãos. Esquecimento parcial de atos rotineiros. Paralisia facial.
Ainda consigo lembrar em flashes esporádicos, de ter ido embora para casa. Uma imagem rotineira é a de uma casa simples, varanda com uma cadeira de balanço onde me lembro lendo o jornal de domingo, uma pequena horta no quintal e um pequeno jardim na frente, com rosas vermelhas e brancas espalhando seu perfume pelo ar. E um cão. Que às vezes é branco e peludo e noutras mesclado de preto, a barriga para cima esperando eu acariciá-lo, o rabo sendo sacudido desesperadamente. Com certeza não reconheci minha esposa e meus filhos ( se os tive ) e a situação deve ter se tornado insuportável. Com todas as lembranças dentro de mim é difícil saber se as crianças que brincam ali em frente são minhas ou de outras eras. De outros pais. Minha esposa ( se tive) deve ter ficado contrariada com seu homem confundindo-a com outras mulheres e outras situações.
Todos enaltecem os doutores ganhadores do Nobel de química; todos tecem loas às suas inteligências e suas argucidades; todos os articulistas, de todos os jornais, de todo o mundo escrevem artigos sobre a incrível descoberta dos dois, porém se esquecem dos outros. Dos que ajudaram os nobelistas concretizar seu sonho. Não li em nenhum jornal, nenhuma revista científica – e leio muito neste hospital-prisão – sobre ratos e outros infelizes que , como eu, ficaram com seqüelas após o memoriotron. E pagarão pelo resto de suas miseráveis vidas o “pequeno” erro cometido pelos doutores-celebridades.
A têve ligada anuncia a inauguração da biblioteca na área central da cidade. Pessoas que não me lembro de ter visto um dia, desfilam em roupas caras, sendo entrevistadas por uma repórter jovem ainda, toda atrapalhada no seu metier.
Levanto e vou ao banheiro. Engraçado – penso – as coisas estão um pouco diferentes. Uma câmera acompanha meus passos, flutuando no ar. Fecho a porta, deixando-a do lado de fora. Não quero que estranhos vejam minhas necessidades íntimas. Questão de privacidade.
Urino bastante. Depois sigo em direção a pia.
Lavo as mãos e não encontro toalhas para enxugá-las, apenas um aparelho estranho fixado na parede. Presumo que seja um secador e estou certo. O ar quente faz o trabalho embaçando o espelho. O velho que me olha tem uma calva respeitável e rugas cortando toda a extensão da face. Franzo o nariz e ele faz o mesmo.
Então fecho os olhos e me lembro jovem, espada na mão, o cheiro da tensão saindo pelos poros, mil homens sedentos de sangue aguardando minhas ordens para invadir o lugarejo onde o inimigo nos espera para mais uma batalha sangrenta. Será uma luta colossal e sem sentido. Mulheres perderão seus maridos. Filhos perderão seus pais. Os aldeões ficarão sem suas casas, incendiadas vingativamente por nós e só os mais fortes entre os fortes sobreviverão. Eu entre poucos.
Mas o meu desejo, meu único desejo, seria ter lembranças minhas. Só minhas! De uma vida que tivesse certeza de realmente ter vivido. Não importa serem banais. Bastaria uma ou outra viagem por mares acidentados e algumas mulheres nuas despertando meus instintos primitivos.