Nascer novamente

Na próxima encarnação eu quero nascer homem novamente. E não apenas homem. Quero também nascer gordo, com abdômen imenso, negro, careca e baixinho; meio palerma, ou, melhor ainda, totalmente idiota, sem discernimento algum e de quebra com os lábios leporinos, a face enrugada e feia, bem feia. Algo realmente sinistro, tenebroso.

Ah! Já ia esquecendo. Para completar o quadro dantesco quero ser pobre e nordestino novamente. Digo até mais: nordestino de Campina Grande-PB. Assim iria para o Rio de Janeiro ou São Paulo, já na adolescência, para morar em uma favela e ser um bandido temido mais pela feiúra do que pela devassidão e maldades que seria capaz de urdir e executar. Seria considerado um herói, talvez um bom facínora.

SOBRE MINHA ATUAL ENCARNAÇÃO:

Nasci no Bairro do Tambor, em Campina Grande-PB, no dia 28 de março de 1949, embora esse nascimento só tenha sido registrado no dia 13 de abril daquele ano. Minha mãe assim falou e não há por que não acreditar. Era um dia de Segunda-Feira, fim de tarde, escuro com prenúncio de chuva torrencial.

Devido a minha resistência em não querer sair do conforto onde me encontrava, fórceps foram utilizados com tanta brutalidade que por pouco não tive o bulbo raquiano esmagado, mas meu crânio ficou deformado na parte posterior.

No aconchego do útero de minha mãe, envolto pelo líquido amniótico, tépido, recebia afagos externos de mãos generosas. Não precisava abrir os olhos para enxergar, não sentia: fome, sede, calor e tampouco frio.

Sede, fome, calor, dor, desconforto de uma forma geral, não faziam parte de minha existência. Não me preocupava com absolutamente nada. O preço do feijão, arroz, pão, leite, ou da gasolina? Isso não me interessava.

Sentia-me de fato protegido e nada poderia temer, pois meu ego não se formara, ainda, para me alertar dos perigos que em breve eu enfrentaria no mundo cão exterior que me induziria ao mal.

Chegou o momento! O ranger de dentes de minha mãe se confundiria com meus espasmos provocados pela pressão do instrumento cirúrgico utilizado para me arrancar à força de meu casulo. Recalcitrante, não chorei, não gritei.

Reagi o quanto pude... na cérvice pus-me atravessado numa tentativa inútil de permanecer na quietude da almejada paz. De nada adiantaram meus esforços. Resignado, esperei as mãos gigantes que me puxavam com um misto de estalidos de metais sinistros.

Finalmente nasci! Luzes fortes me ofuscavam. Barulhos. Risos. Choros. Frio. Medo. Dor. Tudo isso me incomodava. A palmada forte marcou de forma cruel minha sina. Ainda hoje tenho nas nádegas uma marca negra dessa sevícia que eu não queria.

Se eu pudesse, naquela ocasião, teria mordido o meu agressor. Faria o imbecil sentir o que eu estava sentindo e mostraria a ele que não precisava bater tão forte para eu gritar e dizer: “estou vivo!”.

Ante a minha fraqueza, diante da brutalidade sofrida, já compreendendo que a cada ação corresponde uma ação igual e contrária... optei por uma vingança inocente e pueril: dejetei todas as impurezas acumuladas ao longo dos nove meses de felicidade na face do meliante - que se formara médico obstetra, mas era um ignorante - e me agredira com a desculpa de que eu precisava fortalecer os pulmões pelo choro.

Para o agressor minha dejeção foi involuntária, mas para mim foi uma doce vingança pelo modo brutal como fui tratado. Tantas vezes eu reencarne farei isso de forma cada vez mais lúdica, acintosa. Bem sei que sob o manto protecionista das leis brasileiras, no caso concreto, serei sempre inimputável.

Essa inimputabilidade acontecerá se eu nascer: gordo, com abdômen imenso, negro, careca e baixinho; meio palerma, ou, melhor ainda, totalmente idiota, sem discernimento algum e de quebra com os lábios leporinos, a face enrugada e feio, bem feio. Algo realmente sinistro, tenebroso. Nascer com essa aparência e no Brasil já não seria uma boa, justa e merecida provação divina?