O Arco-Íris da Gravidade

Um grito atravessa o céu.

Ok, não chega a tanto. Já aconteceu antes. Na verdade, acontece toda manhã. Um velho embriagado, desdentado, sujo e barulhento sempre grita o nome do clube de futebol que ele torce na hora exata: seis e vinte da manhã. De segunda a sexta. Sempre é tarde demais. Não consigo fugir desse pequeno incômodo pela manhã. Tenho sensibilidade no ouvido. Odeio gritos. E torço para o time rival.

A multidão caminha. Vagões iluminados e lotados. De manhã cedo. Bafo de café para todo lado. Sujeito começa a tossir. Reclama do meu perfume. “De manhã cedo e usam uma colônia dessas!”. Uma gostosa peituda, que está nesse vagão diariamente, olha para mim de forma discreta e ri. Ela sabe que sou eu que uso a colônia. Todo dia eu fico perto dela. Tentando olhar o decote. Ela sentiu o cheiro. Reconhece.

Na estação seguinte, o metrô esvazia um pouco. É uma estação que tem um caminho que leva para uma avenida repleta de oficinas mecânicas, mercados, postos de gasolina e sex-shops. É por isso que você entra nesse vagão e pode sair cheirando de lá a vaselina, pão fresco ou graxa. Outro dia me cutucaram no traseiro. Uma funcionária de um sex shop riu. Acho que ela esfregou algum vibrador na minha bunda.

Passa mais quinze minutos e chega minha estação. Saio do metrô e da estação. Logo o chão revestido de piso bonito e o cheiro de alfazema dão lugar a chãos esburacados e odor de urina. Trata-se da rua que leva até ao shopping modesto onde fica o escritório que é meu local de trabalho. No caminho, mais velhos bêbados gritando coisas sem sentido, nomes de times de futebol, nomes de uísque, nomes de enfermeiras que limpavam as bundas cheias de merda deles, quando estavam internados com coma alcoólico, nomes de pessoas que dão esmola etc. Os caras sempre pedem dinheiro.

- Ei, cabeça, por favor, uma moeda…

- Quanto o senhor tem aí?

- Três reais.

- O senhor tem mais dinheiro que eu.

Eles riem. Todo dia eu conto essa maldita piada e eles riem. Esses caras me fazem acreditar que tenho talento para comediante. Mas sempre me lembro que são todos alcoolatras e por isso estão sempre bêbados. Então devem rir de qualquer merda.

Chego na entrada do shopping. Chego quase sempre pouco antes das oito da manhã. O portão está fechado. Há uma fila de funcionários de uma autoescola. Desnecessário filas - lembro que minha professora da segunda série dizia que fila era “coisa de pobre”. Logo ela, funcionária de um coleginho de bairro que mal tinha saneamento básico. A fila dos funcionários era como se fosse uma coreografia. Nos momentos de tempo livre, todos eles liam histórias sobre a Segunda Grande Guerra. A fila seria eles imitando desesperados fugindo do perigo naquela Europa sombria. Fingem como se estivessem saindo de vagões escuros daquela época. O segurança do shopping, um homem nanico, abre o portão. Funcionários começaram a andar. ”É por aqui que entra?”, pergunta o chalaceiro do funcionário que marca as provas de direção.

- Não, entra pelo seu cu. - responde o segurança.

Passam por mesas, cadeiras e sofás vazios. Seguem pelo corredor. No meio, viram à direita. Eu vou logo atrás, mas vou mais para frente e viro à esquerda, o que me dá acesso a outro corredor. Vou até o fim de novo e viro à esquerda mais uma vez. Lá está escritório. Abro a porta. Cheiro de colônia de banana. Outro funcionário. Chegou antes de mim. Saiu para algum lugar. Não me interessa e é melhor ficar sozinho.

Não aguento ficar meia hora seguida digitando em planilha numa salinha com ar condicionado. Saio. Refaço todo o caminho que fiz ao chegar e fico parado na entrada do shopping, fumando e observando a vida alheia. E o horizonte. Foi quando vi um ponto brilhante formando uma linha vertical até o céu, como se alguém tivesse traçando uma reta branca numa folha de papel azul. Nunca tinha visto isso.

- Eita, lá vem. - diz um velho bêbado, próximo de mim. Outro. Será que não tem um lugar em Salvador que não tenha velho bêbado? O pior é ele querer puxar assunto.

- Lá vem o quê?

De repente, a linha vertical parou de crescer. É como se o desenhista da linha branca no céu azul parasse de rabiscar abruptamente. Pouco a pouco a linha vai sumindo.

- Brennschluss. - disse o bêbado.

- Quê? - pensei que era mais uma das palavras sem sentido que gente alcoolizada fala. Mas o velho insistiu que era outra coisa.

- É uma palavra em alemão.

- Quer dizer o quê?

- Não sei.

- Tá de sacanagem.

- Não sei o significado certo. Mas tem a ver com combustível acabando no meio do voo.

- Aquilo ali era um avião?

- Mas cê é burro, onde já viu avião voar em vertical, garoto? Aquela porra era um foguete.

- Fala sério. Foguete em Salvador? Piada. Você tá bêbado.

- Tô bêbado. Me diga. Já aprendeu sobre função quadrática? O gráfico é uma curva parabólica. Quando você enxergar um arco-íris no céu, um traço côncavo colorido se formando no horizonte, ou quando aquela linha branca se tornar colorida, linda, já era. Você nem sentirá nada. Nem barulho. Mais rápida que a velocidade do som. Só sente o impacto e adeus. Me chamo Tomás Pinto.

- Me chame de José.

- Há uma equação de segundo grau que determina a trajetória do foguete, suponho.

Nesse momento chegou Gabipresso, o cara que trabalha no escritório e chegou antes de mim. Tem banana na mão e outros produtos feitos de banana. Colônia de banana, sanduíche de banana, energético sabor banana…

- Ei, rapaz, isso é cachaça sabor banana?

- Exatamente.

- Me dê um pouco disso aí.

- Não.

- Tomara que o V-2 caia na sua bunda.

Gabipresso riu. Voltamos para dentro.

- Conhece esse cara? - pergunto.

- Ele surgiu esse semana, eu acho.

Dentro do escritório.

- Zé Planilha, você deveria dar uma passadinha no “Bananas do Prentice”. Só tem coisa boa.

- Cara, você também viu uma linha branca se formando no horizonte? Era vertical. Era um ponto brilhante subindo. Depois parou.

- Não vi.

- Aquele velho que vimos lá fora disse que era um foguete.

- Foguete? Foguetinho? Um fogo de artifício de festa junina?

- Não, foguete mesmo. De guerra.

- Ha ha ha cara, aquele velho é bêbado e maluco. Impossível.

- Ele pode estar certo.

- Você também bebeu de manhã cedo?

- Ele falou uma palavra em alemão.

- O maluco fala qualquer maluquice embolada. E aí parece que tá falando russo, alemão, chinês, mas é só abobrinha sem sentido.

- Brenichus, algo assim.

- Viu aí? Maluquice sem sentido.

- Ele também falou algo sobre V-2 na sua bunda.

- Eu vi e achei engraçado.

Saio do escritório. Vou até à entrada novamente. Tomás Pinto não está por lá. Há um outro velho. Dessa vez, sóbrio. E indignado. Queria ir ao banco que fica do lado do shopping. Mas o banco só abre onze da manhã. E ainda são nove.

- Que diabos farei por aqui por duas horas? Eu moro na casa da porra.

- Espera o Tomás, o cara entende tudo de foguetes.

- Quem? Não me interessa foguetes. Mas recentemente um traficante chamado “Foguete” foi morto lá no bairro onde moro.

- Deixa eu adivinhar. Foi tiro.

- Marretadas. O filho da minha mulher também se fodeu. Mas não morreu não. Só esmagaram todos os dedos do pé dele.

- O porquê de tudo isso?

- Dizem que um tal de “Pastor” estava tocando o terror no bairro. Estava à procura de um cara que consertava televisões. Mas era fachada. O homem era um golpista. Mas já foi brocado de bala. Ninguém escapa do Pastor.

Conversa estava interessante. Mas Cynthia estava chegando.

- Bom dia.

- Bom dia.

- Bom dia, belezoca. - eu digo.

Ela ri.

- Ela riu. De um termo tão sem graça. Você só pode estar comendo.

- Conheço ela. Ela é morena assim. Mas sabia que ela tem um irmã loira e de pele clara?

O velho estava certo. Fodi Cynthia numa salinha que ficava no canto da loja onde ela trabalhava. Fazíamos isso todo dia às nove e meia. Ok, não todo dia. Sexo todo dia fode com a pessoa.

- Cynthia, você viu uma linha branca se formando no horizonte?

Ela me beija e não me responde.

- Cynthia…

- Não vi, Zé.

- O velho disse que era um foguete.

- Que velho?

- Um tal de Tomás Pinto.

- Estou pelada e te beijando. E você falando de um velho?

- E se ele estiver certo? Medo de um foguete cair aqui, Cynthia!

- Zé, eu tenho que trabalhar…

- Eu também.

De volta às planilhas. Digito documentos também. Trabalho bosta, mas me garante um salário. Gabipresso vai imprimindo tudo. Ele gosta disso. Até inventamos o bordão: “Hoje tem impressão do Gabipresso!”. Ele para um pouco e vai comprar refrigerante sabor banana. Senti algo tremer levemente. Mas estava tão focado, que dei um foda-se. Minutos depois, Gabipresso volta afobado, meio em pânico. Assustado, horrorizado. O refrigerante de banana derramou todo. Nunca tinha visto ele assim.

- Fala devagar, Gabipresso.

- Um… cara…. Ele foi…

- Entendi tudo.

- Cara foi esmagado!

- Mas como assim?

- Algo caiu do céu e atingiu um homem. Meu Deus! Ele foi esmagado!

Saí para ver. Uma multidão na frente. Velhos bêbados, funcionários e funcionárias de banco, pessoal da autoescola, gente do restaurante… todo mundo em torno do cadáver esmagado pelo… Não dava para ver. Esperei cerca de uma hora para conseguir ver. Um guindaste levantou algo, de metal. Perguntei e disseram que poderia ser um pedaço de foguete que caiu do céu e atingiu um homem que bebia cachaça na calçada. Tinha gente da Agência Nacional de Aviação Civil no local, então a hipótese parecia verdadeira. Em seguida, o rabecão recolhe os pedaços do corpo do homem para dentro.

Os dias seguintes se tornariam um inferno. Além dos bêbados, o local ficou cheio de repórteres e curiosos. Um jornalista foi até o escritório onde trabalho. Disse ser repórter especializado em ciência.

- Em ciência? Eu sei que “onde há morte, há jornalista” (confira Nelson Traquina; fiz um semestre de jornalismo), mas esperava um repórter policial, não de ciência.

- Foguete é um assunto espacial. Portanto, coisa de um jornalista científico.

- O que você quer saber?

Contaram para ele que um velho chamado Tomás Pinto tinha me dito que um foguete estava sobrevoando os céus de Salvador. Contei tudo para ele. Falei da linha subindo, sobre o brennsei lá o quê, sobre a menção ao V-2…

- Você disse V-2? O pedaço do foguete que matou o homem é de um V-2. Onde eu acho esse Tomás?

- Não sei, não o vejo há dias.

- Cara, ninguém da ANAC consegue explicar. A vítima não foi identificada. O V-2 foi um míssil usado pela Alemanha Nazista. Como diabos isso veio parar em Salvador?

O repórter disse que conversou com um professor de física. O cara elaborou uma tese rocambólica: o V-2 viajou no tempo. Veio da Segunda Guerra Mundial e chegou a Salvador. Pelo menos um pedaço dele.

- Nos últimos dias só ouvi maluquices.

- Logicamente, faz sentido. Agora em termos concretos…

- Aquela linha que eu vi, veio da Segunda Guerra? Ou seja, eu estava vendo algo que veio do passado, e da porta desse shopping?

- Logicamente, sim..

- Cara, ele falou que o foguete cairia aqui.

- Um profeta?

- Sei lá, e se ele estiver certo?

- O professor calculou uma probabilidade baixíssima para isso acontecer.

No fundo, eu acreditava que isso seria possível. Na verdade, eu comecei a achar que aquilo era inevitável. Sentia isso.O velho maluco estava certo. Mas é algo que totalmente não convencional. Ninguém em Salvador do século XXI vai ter sua rotina afetada pela probabilidade de um foguete cair. Por isso durante dias e dias eu ia trabalhar, mesmo crendo que iria morrer ali. Fodia Cynthia diariamente. Tudo estava normal.

Gabipresso mais uma vez interrompeu minha elaboração de planilhas.

- Cara, eu vi uma linha colorida se formando no horizonte, como se fosse um arco-íris se formando.

Pouco antes do pedaço cair, aquele bêbado tinha me falado dessa lin—-