P34

Quando meu aparelho de voo espatifou na superfície indócil daquele planeta hostil, minha maior preocupação foi não ser pego pelos nativos. Sabia muito bem o que faziam com seres de outros planetas, assim como eu. O universo ainda não era tolerante com viajantes intergaláticos, eram todos vistos com desconfiança e temor. Que cada um continue no planeta em que nasceu – era o lema da convenção interplanetária.

Minha nave estava totalmente avariada e como não tinha noção de como era a tecnologia do planeta, talvez nunca conseguisse arrumar. Na verdade esse planeta era totalmente desconhecido para mim, não estava ainda nos mapas estelares. Assim que camuflei, como pude, minha nave, saí para fazer uma verificação de território.

Havia muita vegetação, plantas enormes de caules finos e flores extravagantes. Nada parecia comestível e eu estava quase morto de fome, líquidos cristalinos escorriam por enormes pedras incrustadas no solo avermelhado e quente. Experimentei, era potável, matava a sede e aliviava o cansaço. Ainda não havia deparado com um nativo sequer, nem animal, nem vida inteligente. Estava preocupado, talvez tivesse que ficar ali para sempre.

***

Assim que amanheceu, Zita pegou seus instrumentos de caça e saiu para o horto. A caça estava cada dia mais escassa, mas ela precisava se alimentar, mesmo sem vontade nenhuma. Disseram que ela superaria, que era possível sobreviver sem sua metade, sabia disso, o que ela não conseguia superar era o fato de Ury ter sido assassinado por suas crenças, isso não conseguiria superar nunca! Precisava caminhar até a exaustão para aliviar a raiva e conseguir um pouco de paz, e foi o que obteve, até o momento em que ouviu o barulho no céu, como o zumbido de dezenas de enxames de marimbondos selvagens. Assim que a visão se adaptou à luz fosforescente, pode divisar um objeto voador segundos antes que se chocasse ao solo, alguns metros longe de onde estava. Por pouco não era esmagada pelo troço.

Ficou observando escondida, por longos minutos até que o ser saísse do objeto voador. Não se surpreendeu muito, era uma espécie muito semelhante à sua. Havia sim algumas diferenças visíveis, mas não muitas. Ficou desapontada, ouvira histórias horríveis sobre seres de outros planetas com aparência medonha e hábitos alimentares aterrorizantes. O espécime à sua frente, que escondia muito habilmente sua nave, parecia inteligente e dócil. Claro que não dócil o bastante para fazê-la se apresentar a ele.

Seguiu-o de longe e quase o impediu de tomar das águas soporíferas, mas pensou que poderia se aproximar e investigar melhor quando surtisse seu efeito. Ele andou mais alguns passos, tropeçou e já caiu adormecido, Zita ainda esperou algumas unidades de tempo para sair de seu esconderijo e amarrá-lo, precisava levá-lo para um lugar seguro, logo os agentes da regência chegariam e vasculhariam a área. O peso do alienígena dificultou a retirada de ambos, mas Zita estava acostumada ao trabalho árduo. Enfim chegaram à uma caverna quase totalmente coberta pela vegetação, Zita encontrara em uma de suas expedições e se apropriara dela.

Estava muito curiosa, era proibida a interação com seres interplanetários e, de qualquer forma, a aparição de um era tão rara que todos pensavam que fosse invenção da regência para assustá-los.

Então Ury estava certo, os seres de outros planetas estavam mesmo fazendo viagens e explorando o universo. Por que só eles eram proibidos de tentar se comunicar com os de fora? Por que não podiam construir naves? Por que ele teve que morrer tentando provar para a regência que estava certo? Agora ela poderia provar! Demoraria, pelo menos meio dia para que o alienígena despertasse, então ela aproveitou para procurar algum animal desavisado que seria a próxima refeição de ambos, se tudo desse certo.

Voltou com alguns roedores, o viajante espacial ainda não havia acordado, então limpou os animais e colocou-os sobre a fogueira, o cheiro da comida ajudaria a despertá-lo. Olhando assim de perto, o ser adormecido era agradável de se ver, assim como ela, possuía um tronco com membros inferiores e superiores; uma cabeça coberta com cabelos pretos e anelados, olhos, nariz, boca, orelhas, tudo no mesmo lugar, mas com formatos e cores diferenciadas. Sua pele era da cor dos campos recém arados para o plantio. Muito monocromático, foi o que pensou.

***

Sonhei com o espaço, pela primeira vez, desde que empreendi essa jornada só havia sonhado com a Terra. Estrelas me atraíam, buracos negros me sugavam e eu indefeso, separado da minha nave, sem meu traje espacial, só a pele me separando da invasão do universo. Abri os olhos, assustado, estava tonto, a visão desfocada.Tentei me mexer, levei alguns segundos para descobrir que estava firmemente amarrado. Quase completamente alerta, percebi que um nativo me encarava. Tudo o que eu mais temia aconteceu, então. Estava nas mãos deles. Mas, quem eram eles? O nativo emitiu um som ininteligível. Mesmo com os pulsos amarrados, consegui ativar a interface de meu comunicador, que instantaneamente analisou, decifrou e converteu a linguagem do nativo em ondas sonoras que eram captadas pelos implantes em meu cérebro.

— Você vem em paz? Perguntou ele novamente.

Agora que podia ver o ser claramente, fiquei admirado com sua aparência. Sua cabeça era coberta por pedras preciosas, não sei se eles já nasciam assim os se de alguma forma implantavam. Eram ovaladas e estavam hora roxas, hora azul escuro. Parecia variar a cor por uma razão específica.

— Sim – respondi vacilante – Me perdi no espaço e por problemas em minha nave acabei caindo aqui. Que planeta é esse?

O nativo pareceu aliviado, as pedras em sua cabeça passaram para um azul claro constante.

— P34. De onde você vem?

— Da Terra. – Não tinha certeza, mas parecia que o ser era inofensivo, então arrisquei perguntar – Não pretendo fazer mal algum a você. Por favor, você pode me desamarrar?

Ele meditou longamente antes de desamarrar minhas mãos. Esfreguei meus pulsos doloridos enquanto observava-o estender um pedaço de carne assada na fogueira.

— Tem fome?

Eu estava faminto.

— Um pouco, obrigado.

Peguei a carne e comi com cuidado, não sabendo exatamente o que estava comendo. Tinha um gosto bom, parecido com os coelhos da Terra.

— Você tem um nome, visitante do espaço?

— Tenho, é Thiago e você?

— Me chamo Zita.

Comemos em um silêncio incomodante, cada um refém de seus pensamentos, medos, desconfianças e terrores, ambos tentando esconder esse amontoado de sensações e se fazendo de fortes e durões. Bem, pelo menos era o que eu estava fazendo. Tomei coragem e perguntei:

— Tem alguma possibilidade de você me ajudar a arrumar minha nave para que eu possa voltar para casa?

Controlei o medo que sentia e olhei profundamente nos olhos de felino com enormes irís em um fantástico tom de lilás. Eles nem piscavam. Desviei o olhar antes que Zita pudesse ler meus pensamentos, se é que sua espécie podia fazer isso.

— Não vejo como isso possa ser possível, já que somos proibidos de construir naves para explorar o espaço. – Disse calmamente, enquanto mastigava com raiva o pedaço de carne com seus dentes pontiagudos.

— Por que são proibidos? Não existe tecnologia suficiente aqui?

— Existe sim, mas a regência diz que as viagens espaciais são perigosas demais, que ninguém consegue sobreviver longe de seu planeta natal. Dizem que é para nossa própria segurança, mas matam todos aqueles que ousam pensar diferente e tentar alguma exploração.

— Eu poderia dizer a eles que as viagens são seguras… – Não, eu não poderia, mas queria ver se Zita concordava comigo, se ele (ou ela, sei lá) me jogaria aos leões.

Li verdadeira indecisão em seu olhar, depois de quase um minuto veio a resposta:

— Fique à vontade… se quiser ser morto.

***

Zita não tinha certeza do que fazer com Thiago, sua primeira intenção havia sido proporcionar uma comoção geral na população mostrando o alienígena, depois entregá-lo para a regência, provando que seu parceiro estava certo, mas sua determinação esmorecia a cada minuto que passava com ele. O alienígena era inteligente, sensível e não havia feito nenhuma tentativa de molestá-la de forma alguma.

Não via-o como um animal, mas como alguém como ela. Deixá-lo para ser analisado, dissecado, torturado e morto pela regência estava além de sua capacidade de se perdoar por isso depois. Mas o que fazer com ele? Como ajudá-lo?

Thiago sabia que estava nas mãos do nativo, precisava ser inteligente e conseguir a simpatia e a confiança dele se quisesse ajuda para sair daquele planeta hostil. Deu graças ao universo por ter sido capturado por um deles que não era doutrinado pelos governantes, ao contrário, parecia ter horror a eles. Com certeza isso era uma vantagem.

Ainda sem a certeza do que deveria fazer, Zita decidiu dar ouvidos a sua intuição e ajudar Thiago a voltar para casa, desamarrou seus pés e guiou-o para fora da caverna. Era quase noite no planeta P34 e do firmamento pequenas gotas de diamante precipitaram sobre eles, o restinho de luz solar passando entre os diamantes proporcionou um espetáculo nunca visto por Thiago. Maravilhado, ajuntou o que pode e guardou nos bolsos.

— O que está fazendo? – Perguntou Zita.

— Guardando, isso é raro na Terra e vale uma fortuna.

— Pois aqui não vale nada. Despenca do céu. Rara está a comida, se continuar assim, todos morreremos… Vamos embora, está escurecendo. Se alguém te encontrar você estará morto.

Enquanto Zita o guiava até sua casa, tentava responder todas as perguntas que ele fazia sobre o planeta e seus habitantes. O que mais intrigou Tiago foi a descoberta que naquele planeta o sexo do indivíduo era reconhecido, além do meio óbvio, pelas pedras em suas cabeças. Ovaladas para as fêmeas e retangulares para os machos. Eles já nasciam assim. Zita era fêmea.

— No seu planeta, como sabem à primeira vista se são machos ou fêmeas? – Perguntou ela curiosa.

— As fêmeas possuem seios. – Respondeu tentando se esquivar da pergunta.

— E o que é isso? – Ela não iria parar até saber.

— Bem, é uma protuberância na parte da frente do tronco, uma não, duas… – Thiago não imaginou que ficaria tão embaraçado para responder uma pergunta tão simples.

— Parece interessante. – Disse ela divertida com o constrangimento dele.

— São sim… muito. – Ele ficava cada vez mais envergonhado.

— Então você é macho.

— Sou.

— E já encontrou a sua fêmea?

Zita então contou que em sua raça já nasciam predestinados a uma pessoa que era sua metade fisiológica. Só se reproduziam ligados a essa pessoa e eram atraídos a ela por magnetismos moleculares.

— Nossa, não… minha raça não tem nada parecido com isso…

— Então como vocês reproduzem?

— Bem, quando um macho e uma fêmea se amam eles se casam e têm filhos. Não necessariamente nessa ordem…

— E como sabem a quem amar?

— Não sabemos. É complicado. Na verdade poucos encontram alguém com quem dividir a vida toda, a maioria só procura mesmo.

— Parece triste…

— E é mesmo…

A casa de Zita era quase dentro do horto, um pouco afastada da aglomeração da comunidade, mas não longe o suficiente para que Thiago não pudesse ouvir e ver o burburinho dos habitantes, parecia um formigueiro, muito organizado e eficiente. Eles não podiam perder muito tempo, logo os agentes da regência estariam batendo na porta de Zita, já que sabiam muito bem que ela também era simpatizante dos alienígenas. Ela devia pensar rápido se quisesse tirá-lo de lá. A essa hora a nave dele já devia estar confiscada. Só restava uma saída para Thiago e ela sabia muito bem, mas não queria usar esse recurso, era a última coisa que a ligava ao seu companheiro de vida.

***

Ainda não havia processado todas as informações que consegui sobre o planeta e seus habitantes, um lugar incrível na verdade, riquíssimo em pedras preciosas e pobre de alimentos, a vida animal por alguma razão, desconhecida para eles, estava desaparecendo e a vegetação em sua quase totalidade não era comestível. A situação era crítica.

Eles obviamente poderiam entrar no mercado negros intergalático e trocar seus diamantes por comida, mas preferiam morrer de fome à explorar o espaço.

Observei Zita correr para lá e para cá arrumando provisões, juntou tudo que poderíamos precisar e praticamente me arrastou até um galpão no subsolo de sua casa. Parecia uma mistura de laboratório com oficina. Não acreditei quando vi, coberta por alguns tecidos, uma nave novinha. Zita me explicou que antes de ser morto, seu parceiro conseguiu finalizar a nave e estava prestes a tentar uma decolagem. A regência (seja lá o que for isso) desconhecia que ele havia chegado tão longe em seu intento. No entanto, ela não sabia como pilotar, nem se funcionaria. Eu não conhecia a tecnologia deles, mas com certeza iria tentar sair de lá. Ouvimos sirenes soando ao longe, colocando nossos sentidos em alerta.

— Eles estão chegando, você não tem muito tempo, precisa colocar isso pra funcionar agora! – Gritou Zita, as pedras de sua cabeça ficaram em um tom vermelho sangue.

Assenti e pulei para dentro do veículo estelar, o painel de controle era muito diverso dos que eu já tinha visto, mas minha central de informações logo se adaptou aos mostradores e já tinha uma ideia de como pilotar.

— Vou despistá-los. Boa viagem! – Disse antes de puxar uma alavanca que abriu o teto e pude ver que ainda chovia diamantes.

— Você não vem comigo? – Perguntei estendendo a mão para ela.

Não sei porque fiz isso. Queria mesmo levá-la comigo? Por que? Zita parecia tão indefesa e triste. Eu queria protegê-la. Sabia que provavelmente ela estava arriscando sua vida para me salvar. As pupilas de seus olhos de gata se transformaram em um risco vertical boiando no lago lilás de sua íris. As pedras de sua cabeça passaram de vermelho sangue para um tom de rosa encarnado.

— Eu não posso… meu lugar é aqui. Vou tentar atrasá-los o quanto puder. Vá e encontre uma fêmea para viver e morrer por ela.

— Venha e procure uma solução para os problemas do seu planeta, eu prometo te trazer de volta. Se você ficar, será morta! – Eu estava genuinamente preocupado com ela.

— Eu sei… Vou ter o mesmo fim que Ury e isso para mim é uma honra. Morrerei para que o sonho dele se realize. Me prometa que voltará com um meio de evitar que meu povo morra de fome. – Implorou ela.

Como eu faria isso? Era praticamente impossível.

— Eu prometo. Tente ficar viva. Vou te procurar quando voltar…

— Não perca seu tempo…- Apesar da dureza das palavras, a entonação deixava clara sua tristeza e resignação. – Vá, eles estão quase aqui!

Mal acabou de dizer essas palavras e eu já podia ouvir o barulho de movimentação do lado de fora. Ainda pude ver Zita correndo em direção à porta. Ela não olhou para trás.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 03/06/2022
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