A Guerra da Ucrânia

“QUE TIPO DE DOENTE criaria um cyberverso fundado na Agressão Russa contra a Ucrânia?”, lembro de minha namorada bradando essas palavras quando cheguei com o cartão em casa. Mas, antes de entrar em detalhes, o caso principal: Danichip, um amigo meu, foi parar no hospital. Teve um “AVC”. Ele não foi o único. Há outras pessoas com o mesmo problema. Na verdade, dizem que é AVC, porém talvez nem seja. Segundo Tijuana, uma programadora muito competente, trata-se de um fenômeno que a ciência não consegue explicar. Nos exames, não há diagnóstico, porque não detectaram nada. Os cérebros dessas pessoas funcionam normalmente. Mas elas apagaram, como se tivessem sofrido derrame ou algum outro dano cerebral gravíssimo.

- É como se eles tivessem morrido no cyberverso, mas o corpo deles continua vivo aqui, entendeu?

Tipo o filme Matrix. Eu acho. Quer dizer, parece isso na parte do careca arrancando os equipamentos que conectam… Enfim, logo a polícia vai sacar o padrão, a não ser que seja muito burra, como dizem. Todas essas pessoas jogaram “Guerra na Ucrânia”, o jogo de realidade simulada que foi produzida dentro do cyberverso. Eu joguei. Ok, eu ainda jogo. Dentro desse universo, podemos assumir a vida de um soldado, ucraniano ou russo, e entramos no combate. Notei algo estranho, no entanto. E creio que outros jogadores também. Dentro desse jogo digital eu comecei a pensar como se aquela vida daquele personagem que eu encarnei fosse a verdadeira. Muito louco. Tijuana afirma que isso é efeito da droga Dosto, essencial para entrar no jogo. Ele enfatiza que isso pode ser perigoso.

- Você vai pensar que você é o soldado de verdade, vai achar que aquela vida é verdadeira. E então, se isso acontecer, como você vai voltar? Há meios para isso, mas se você acha que sua vida lá é verdadeira, vai achar que essa aqui é falsa.

De fato, eu cheguei a pensar nisso. É como se o soldado Vlod, personagem que eu assumi lá dentro, fosse adquirindo vida própria e eu, James, um mero funcionário de escritório de advocacia, fosse assumindo a forma de uma ficção. Ou seja, eu existo, mas deixo de existir. Vlod não existe, mas começa a existir.

Bizarro.

Mas o interessante: o jogo é delimitado num território. A Ucrânia. Não há nada a fazer no jogo, a não ser proteger pessoas, matar soldados inimigos ou destruir coisas. Não é possível viver além disso dentro do jogo. Agora a pergunta a fazer: se Vlod virar o “real”, o que aconteceria dentro desse universo fictício criado no cyberverso. Tijuana especula que o jogo faria a Guerra ser prolongada eternamente, até eu morrer de verdade por aqui. Isso, se assumimos que ninguém vai se esforçar para me tirar dali.

A partir de tal conjectura, Tijuana teoriza que esses jogadores que sofreram AVC de algum modo saíram da área delimitada. Passaram a pensar exatamente como os soldados do jogo e resolveram sair da Guerra. Talvez. E como isso não é possível, se foderam.

Todo mundo sabe que jogos são escapistas. O sujeito é fracassado na vida, leva chifre da mulher, é bunda-mole. Então ele entra na Guerra da Ucrânia para virar soldado durão e fodão que explode inimigos e coisas. Minha vida estava quase assim, admito. Minha namorada está quase me chutando de casa. Penso que ela está dando para outro. Entrei no jogo. Vlod é um soldado ucraniano que salvou uma mulher ucraniana e agora ela está apaixonada por ele. Por que eu deveria viver nessa vida real de merda quando a falsa é melhor? Ok, ok, tem uma guerra e tudo mais. Mas Vlod é muito querido e amado. A vida rotineira enfiada em escritórios e trabalhos desgastantes e infindáveis estão me causando depressão e burnout. A guerra é muito mais brutal, cansativa e psicologicamente degradante, nem se compara. Porém sinto um prazer em dirigir tanques e explodir coisas. É por isso que vou usar o jogo de novo. Mesmo sabendo dos riscos. Ainda que o soldado tome controle da minha mente, talvez não seja tão ruim.

Uso a seringa e aplico a Dosto. Parece aplicação de heroína. Conecto o USB na minha nuca. Ligo o aparelho. Só estarei plenamente dentro quando a droga estiver fazendo total efeito. Está iniciando…

“QUE TIPO DE DOENTE ATACARIA UM PAÍS VIZINHO ASSIM, Vlod?”, lembro da minha mãe bradando isso quando soube da minha inevitável convocação para defender a Ucrânia da invasão. E agora toda manhã, eu acordo com algum superior exigindo que eu me prepare para o combate com as tropas russas que invadiram Kharkov. São mais de três meses de combate. Os sobreviventes estão psicologicamente arrasados. Viram de tudo. Isso acaba com o mais durão das pessoas. Como se sabe, a doença emocional abre espaço para escapismos. Circula entre soldados, tanto russos quanto ucranianos, um dispositivo tecnológico e uma droga chamada Dosto que permitem a imersão no mundo digital conhecido como cyberverso. Durante as horas em que não há combates, muitos soldados utilizam. A princípio, eu fui relutante. Nos primeiros vinte dias, vi alguns soldados usando. Me ofereceram e recusei. E depois que salvei Anna de um soldado russo prestes a cometer mais crimes de guerra, passamos a ficar juntos. Foi um ótimo descanso de guerreiro. Fodemos várias vezes. Mas ela teve que ir embora depois que a coisa começou a apertar por aqui.

Foi aí que comecei a me render ao cyberverso.

Escapismo puro. É um jogo chamado “Vida de Escritório”. Sempre achei que trabalhar em cubículos era uma merda. Mas, porra, eu estava no meio de uma guerra. Qualquer coisa é melhor que uma guerra. Nessa vida digital e fictícia eu sou um rapaz chamado James. Confesso que ao sentar em carteiras confortáveis e giratórias, ficar de frente ao PC numa sala refrigerada por ar condicionado foi maravilhoso. Viver como soldado é uma bosta. Comida ruim, testemunhos de massacres e outras barbáries, humilhações, medo…

O sujeito está com o psicológico arrasado, sem contato com a família, sem a namorada, sem perspectiva. Então ele entra na Vida de Escritório para virar um cara fracassado e bunda-mole, porque é melhor viver assim do que viver disparando contra outros seres humanos. Eu não quero ser fodão. Quero ser um cara tímido com uma vida normal. Estava prestes a usar de novo. O companheiro Shev interrompeu.

- Cara, há notícias de que soldados estão morrendo dentro desse jogo.

- Mas como assim.

- Sabe, suspeita-se de AVC. Mas não há nos exames.É como se eles morressem dentro do jogo, mas o corpo deles aqui na vida real continuasse vivo, sacas?

- Entendo.

- Cara, larga essa merda. Essa porra pode te matar.

- Como consegue viver ainda nesse inferno, Shev?

- Vamos sair dessa.

- Não vamos não.

- Se descobrirem, você pode ser punido.

- Foda-se.

Shev se levanta. E pergunta:

- Já assistiu Matrix?

- Quem nunca?

- Acho que se você morre no jogo “Vida de Escritório”, você morre de verdade. Foi o que aconteceu com esses caras.

- Cara, minha vida como James é modorrenta e sem graça. Quem iria me matar no jogo?

- Quem sabe? Se é uma vida normal e urbana, você pode ser vítima de um crime comum.

- Pode ser, mas duvido.

Shev vai embora. Eu estou ainda mais ciente dos problemas. Mas não importa. Quero voltar a ser James no cyberverso. Quero sair do inferno da Guerra. Nem que para isso tenha uma vida monótona e sem graça em escritórios por algumas horas.

Uso a seringa e aplico a Dosto. Parece aplicação de heroína. Conecto o USB na minha nuca. Ligo o aparelho. Só estarei plenamente dentro quando a droga estiver fazendo total efeito. Está iniciando…

FIM