Sob um céu de vigilância

Logo iria escurecer, Layla apertou o passo afastando galhos e folhas que, se por um lado atrapalhavam de ir mais rápido, por outro serviam de camuflagem. Não via um drone desde que saíra do perímetro urbano, mas precaução nunca era demais. As palavras de sua companheira de república ainda martelavam em sua mente:

“Não vai fazer o procedimento? Hoje é o último dia, pelo amor de Deus… já estão perguntando se conhecemos alguém que ainda não fez.”

“Vou fazer, só estou sem tempo…”

“Tem um posto na sua faculdade! Se não fizer hoje, não volte pra cá, vai colocar todas nós em perigo.”

Não conseguiu. Passou pelo posto, estava vazio, aparentemente todo mundo já havia feito, menos ela… No céu, os drones projetavam avisos luminosos sobre todas as vantagens de se colocar o chip. Tinha que admitir, o marketing deles era impressionante: documentação, cartões bancários, histórico médico, GPS e muito mais, tudo no maravilhoso chip. Depois dos anúncios, vinham as ameaças. Os rostos dos pendentes eram passados repetidamente nos telões. Layla baixou a cabeça quando sua foto apareceu. Saiu da faculdade com a mochila que preparou minuciosamente para emergências. À medida que saía da cidade, viu vários agentes do governo, em sua imensa estrutura metálica, olhos vermelhos e mãos que se transformariam em armas caso necessário, fazendo a ronda pelas ruas, ainda pacíficos, ainda solícitos.

Estava acontecendo, no outro dia não seria mais uma cidadã, seria uma ameaça, sumariamente executada se fosse pega. Tudo isso por quê? As palavras de sua mãe não saiam de seus pensamentos, mesmo que não houvesse acreditado nelas quando foram ditas. Não, não podia se render a eles.

Suas pernas estavam inchadas e a dor já atrapalhava a caminhada, o ar queimava em seus pulmões. Ouviu um latido ao longe. Onde havia cachorro, havia gente. Se esconder ou verificar? Logo não poderia continuar, precisava encontrar um abrigo. Seguiu os latidos.

Avistou de longe uma casa pequena, no meio das árvores, cerca de bambu e arame farpado, chegando mais perto e viu alguns animais, uma horta, e o cachorro que latia sem parar. Escutou um clique atrás de si e, virando-se, encarou uma espingarda a poucos centímetros de seu rosto. Quem a segurava era um senhor, de jaqueta jeans e boné.

− Mostre as mãos. − Ordenou.

Sem chances de defesa, obedeceu.

− Interessante… − Baixou a arma − quer entrar?

Notando a hesitação da moça, ele tirou o boné e mostrou as costas das mãos que, como as dela, não possuíam a marca da inserção do chip.

− Entra logo, um drone pode passar por aqui a qualquer momento.

A casa era simples, nenhuma tecnologia, apenas um rádio antigo funcionando perfeitamente.

− É meu único contato com o mundo. − Disse percebendo o olhar de Layla. − Trouxe celular?

− Faz algum tempo que me livrei dele e de todos os rastros virtuais. Sou um fantasma.

Livrou-se do peso da mochila e sentou no sofá puído. Encostou a cabeça e fechou os olhos. Abriu logo em seguida, com medo de adormecer.

Jantaram ouvindo pelo rádio a transmissão do governo, ao vivo, traduzida para todas as línguas. Era oficial: aqueles que resistiram ao procedimento eram agora inimigos do governo. Seriam encontrados e executados por traição. Cada palavra era engolida junto com o frango, as batatas e a rúcula. Olhos baixos, testas franzidas, mãos trêmulas. Tinham muito em comum.

− Não sei o seu nome…

− Custódio.

− Sou Layla. Por que… não colocou? – Tomou um gole de água.

− Nunca gostei da tecnologia, vigilância, ser identificado, rastreado, programado como esses robôs de merda. − Respirou fundo −E você? É nova demais pra essas ideias, já devia estar doutrinada…

− Minha mãe e meu irmão estão entre os desaparecidos − fez uma pausa − ela me contava histórias sobre como seria o mundo depois do arrebatamento, era como ela chamava. Simplesmente não consegui…

− Entendi… seria melhor ter ido com sua família.

− Eu não acreditava, na época. Agora é tarde demais.

− Acha mesmo que foi Deus quem levou todos eles, não parece ingênuo demais acreditar nisso? − Pegou duas laranjas e estendeu uma para ela.

− O senhor crê em quê então, na versão do governo sobre abdução em massa? Me desculpe, mas parece muito pior. −Disse pegando a laranja e sustentando o olhar dele.

Ele soltou uma risada forçada.

− Não sei o que aconteceu com eles e na verdade nem quero saber. Vou arrumar um colchão pra você na sala. − Levantou da mesa, tirou os pratos e saiu, seus passos gritando no silêncio.

Apesar de cansada, demorou a adormecer.

Corria, o facho de luz alcançando-a onde quer que se escondesse, a voz metálica gritando mais alto que as sirenes: “suspeita sentenciada à morte apreendida”. Era inútil fugir, mas continuava, o agente agarrou seu braço com um aperto de morte. Com um único golpe separou sua cabeça do pescoço. Acordou gritando, suas roupas grudadas no corpo, Custódio chegou correndo com a espingarda na mão.

− O que foi? Viu alguma coisa? − Dizia enquanto verificava as janelas.

− Não, foi só um sonho… Eles, eles arrancaram minha cabeça. − Disse passando as mãos no pescoço e rosto.

− Tente não gritar tão alto na próxima vez.

Ouviam o rádio noite e dia. Havia execuções em massa onde antes era os EUA, na antiga Europa ouvia-se os rumores de resistências se formando, aqui onde foi o Brasil, tudo estava calmo demais, se havia execuções tudo estava sendo abafado.

Tudo começou com o desaparecimento de milhares de pessoas, as crianças sumiram, junto com homens e mulheres independente de idade e nacionalidade. Em um piscar de olhos, deixaram de existir nesse mundo. Depois disso o caos se instaurou, e com isso a necessidade de um governante capaz de restaurar a ordem e a paz se fez necessária. Assim que as negociações foram feitas e o governo mundial foi estabelecido, de forma lenta e constante a ordem voltou, a fome foi erradicada, todos tinham acesso à educação, à diversão e à arte. A vida era boa, até que a implantação do chip passou a ser obrigatória e a vigilância e o controle passaram a ser, para o bem dos cidadãos, extremamente rigorosos, destruindo a privacidade e o direito à liberdade individual.

Layla observava o céu, antes tão amado, agora cada dia mais vigilante. O cinza metálico dos malditos drones se sobressaindo, maculando o azul celeste. Cada vez mais drones sobrevoavam a casa de Custódio, deixando-os apreensivos e irritados. Os dois pouco conversavam, dividiam as tarefas domésticas e o cuidado com os animais, preparavam as refeições e comiam juntos, o tempo todo ligados no rádio.

− Já tentou outras sintonias? Pode ter alguém tentando se comunicar. − Disse Layla enquanto enxugava os pratos.

Na mesma hora, Custódio foi sintonizar as frequências no rádio.

Entre muitas tentativas e erros, um som diferente emergiu da estática, o aparelho reproduziu uma música suave que Layla achou familiar, o mesmo canto que ouvira na voz de sua mãe tantas e tantas vezes.

− Espera! Eu conheço essa música. Deixa aí.

Custódio acertou a sintonia e a canção veio forte e nítida, quando acabou, uma mulher começou a falar.

A voz convocava a todos que não haviam se submetido à opressão do governo a uma nova vida em comunidade, não uma resistência, mas um lugar de abrigo e companheirismo.

− É uma armadilha. − Disse Custódio, notando a agitação de Layla.

− Como pode ter certeza?

− É uma estratégia para capturar ingênuos como você! Não percebe?

− Não podemos ficar aqui esperando eles chegarem, não posso mais viver assim, eu preciso fazer alguma coisa antes que enlouqueça! Se for uma armadilha, pelo menos minha angústia terminará logo.

− Vamos ouvir por mais alguns dias, só para ter certeza…

Alternando a sintonia do rádio entre a comunidade e o governo, descobriram que o sinal era itinerante e de curto alcance, cada dia chamando quem se interessasse para um local diferente. Layla já estava decidida e tentava, em vão, convencer Custódio a ir junto. Ela planejava sair em um dia que a reunião fosse perto de onde estavam, mas não teve essa chance.

− Layla,vamos embora daqui agora! − Gritou Custódio, quando voltava de uma ronda.

− O que aconteceu? − Disse Layla, correndo pra pegar a mochila.

− Nos encontraram, já estão chegando.

Correram. A realidade era muito mais aterrorizante do que seus pesadelos. Custódio não conseguia seguir o ritmo de Layla, muitos anos mais nova. O local do encontro estava a quilômetros de distância, na zona rural do outro lado da cidade.

Péssimo dia para fugir.

Pararam para recuperar o fôlego. A luz do dia estava quase se extinguindo, teriam que alcançar o local ainda naquela noite, no dia seguinte, as coordenadas seriam outras e, sem acesso ao rádio, não teriam como descobrir. Evitaram entrar na cidade, mesmo levando mais tempo, havia drones e agentes por todos os lados.

Caminhavam de cabeça baixa, bonés escondendo o rosto, mochila nas costas e ritmo apressado. Sempre atentos, prontos para correr a qualquer sinal de perigo.

− Parados! Levantem a cabeça e mostrem as mãos. − Foram pegos de surpresa, a voz metálica fazendo o coração pular algumas batidas.

Pararam, olharam um para o outro e se viraram lentamente. Dos olhos do robô saíram luzes vermelhas que agiam como scanner.

− Corre! − Gritou Custódio, sacando a espingarda e atirando entre os olhos do robô.

Layla ficou parada alguns segundos, mas logo suas pernas obedeceram ao comando, mesmo que sua mente ainda não tivesse entendido. Uma sirene absurdamente alta começou a soar.

“Alerta! Suspeitos em fuga!”

Olhou para trás e viu o agente danificado emitindo o alerta, com luzes que piscavam sem parar, quase alcançando Custódio. Não daria tempo, logo dezenas deles surgiriam para persegui-los, mas o instinto de preservação falava mais alto.

O sol se escondeu totalmente e a lua, surgiu no horizonte. Layla perdia as esperanças a cada passo que obrigava seu corpo a dar, as luzes, a sirene, a falta de ar, tudo embaralhava seus sentidos, mas o medo a impulsionava.

− Continua correndo e não olha para trás. − Ouviu Custódio berrar em sua direção.

Correu cegamente, sem saber para onde estava indo.

Ouviu um grito.

“Suspeito capturado!”

− Não! − Gritou, olhando para trás enquanto corria.

Tropeçou e caiu no meio do capim alto, bem a tempo de vê-los ao redor de Custódio, que mesmo caído atirava cegamente até não sobrar mais projéteis. Foi facilmente imobilizado, arrancaram a arma de suas mãos e o forçaram a se ajoelhar. Layla tentava recuperar o fôlego e assistir a cena em meio às lágrimas que embaçavam seus olhos. Um dos agentes projetou um holograma no céu transmitindo em tempo real o que estava acontecendo.

“De acordo com a lei, o suspeito que se recusou a fazer parte do progresso será executado imediatamente.”

Layla desviou os olhos da cena original, mas não conseguiu desviá-los da projeção. Com um único golpe, o agente separou a cabeça do corpo de Custódio, levantou-a como um troféu para que todos pudessem ver, o corpo caiu enquanto o sangue jorrava, tingindo o capim de vermelho escuro e viscoso. Layla abafou os gritos com as mãos, tentando se controlar. Ainda agachada, coberta pelo capim, saiu de lá o mais rápido e discretamente possível.

Só pensava em uma coisa, precisava chegar ao lugar do encontro e rezava para que não fosse uma armadilha. A imagem de Custódio decapitado, seu corpo tombando na terra… Não acreditava no que ele havia feito sem nem mesmo crer que a comunidade fosse real… Lágrimas escorriam por suas faces e eram secadas rapidamente com as costas da mão. “Tenho que conseguir, por mim e por ele.”

Correu até que seus pulmões quase explodissem, tentando despistar os agentes. A lua já estava alta quando finalmente chegou o lugar do encontro. Ainda em estado de choque, parou e sentou em uma pedra, tirou uma garrafa de água da mochila e bebeu até que sua garganta seca parasse de doer. Aparentemente não havia ninguém por perto. Seu coração batia tão rápido que chegava a doer. Queria que tudo acabasse logo. Deveria ter se entregado também…

“Pai nosso que estás nos céus…”

O vento gelado da noite trazia sons assustadores, Layla não podia chamar alguém, sinalizar sua presença, não sabia como encontrar o grupo ou fazer com que fosse encontrada. A espera era ainda mais angustiante do que a corrida.

“… santificado seja o teu nome.”

Escutou passos vindo em sua direção e avistou luzes baixas, brancas, não vermelhas como as dos agentes. Levantou-se e ficou alerta. Seu destino estaria selado naquele momento.

“Venha a nós o teu reino…”

Prendeu a respiração quando distinguiu quatro silhuetas entre as árvores. Colocou a mão sobre os olhos se protegendo das luzes das lanternas que foram apontadas para ela.

− Mostre as mãos! − Uma voz disse ainda de longe.

“… seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.”

Ela estendeu as mãos. As pessoas se aproximaram.

− Está sozinha? O homem executado mais cedo estava com você?

− Sim…

Desligaram as lanternas e se apresentaram. Cada um falou o nome e mostrou as mãos. Dois homens e duas mulheres. Eles, assim como ela, haviam ousado contrariar o sistema. Estava salva!

“O pão nosso de cada dia dá-nos hoje.”

Caminharam ainda por um bom tempo antes de chegarem ao seu destino. Aos pés de uma montanha, escondida por galhos, folhas e pedras, havia a entrada de uma gruta. Um por um foram desaparecendo pela abertura. Layla atravessou e se viu no interior de uma caverna, a luz das lanternas iluminando o caminho que os levava cada vez mais para dentro da montanha.

“Perdoa as nossas ofensas assim como temos perdoado a quem nos tem ofendido…”

O caminho estreito e abafado deu lugar a um espaço enorme cheio de pessoas que conversavam e riam, todos olharam para os recém-chegados e os cumprimentaram por conseguirem salvar mais uma vida. Abraçaram Layla como se fosse alguém da família.

− Que lugar é esse? Como conseguiram fazer isso? − Perguntou para a moça que estava ao seu lado.

− Algumas pessoas se juntaram logo que houveram os desaparecimentos e projetaram esse lugar, já imaginando o que estava por vir. Temos muita comida e água estocada. Venha ver tudo.

“… e não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do mal.”

Ainda não acreditava que estava segura. Não importava até quando. Não estaria sozinha, se e quando, o pior acontecesse. Pensou em Custódio, faria de sua vida uma homenagem a dele.

“Amém.”

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 30/05/2022
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