O movimento do coração
“Eu preciso mesmo ir?”, resmungou Vitor, fazendo careta.
“Precisa, sim. Todos passam por isso quando completam dezoito anos. Faz parte da vida. Há uma necessidade de experimentá-la. É uma viagem rápida, mas segura”, falou o diretor, erguendo as sobrancelhas.
“Quando perceber, pronto, estará em casa.”
Foi literalmente empurrado para dentro da máquina.
Não queria conhecer outro mundo. Queria ficar ali, no orfanato, com seus amigos e com Stela. Tão linda, com seus olhos puxados, o nariz pequenino e arrebitado, os dentes tortinhos que davam um charme quase infantil ao seu sorriso. Estavam juntos desde pequenos. Pensavam em se casar assim que saíssem do orfanato.
Sentou-se na cadeira que ficava no centro do cilindro. Seguiu todas as orientações: apertou o cinto de segurança, ajustou o protetor bucal (odiou o gosto daquele troço!) e prendeu a respiração. Sentiu uma forte pressão envolver o corpo e tudo começou a tremer. A visão ficou turva e, num instante, o ambiente mudou.
“Oras, até que não foi ruim”, disse ele, saindo da máquina.
Ficou boquiaberto. Era um mundo parecido com o dele. Tinha tudo que conhecia: pessoas, casas, animais, flores, muitas flores. Porém (e bota um grande porém nisso), era tudo feito de engrenagens.
Pequeninas, médias, grandes e de todo tamanho possível. Ficou embasbacado olhando o que parecia ser um girassol. Uma engrenagem redonda era seu centro, amarronzada, e versões pequenas formavam as pétalas, caule e folhas. E tudo se movia, sem parar, num movimento constante e vivo.
“Bem vindo! Fez uma boa viagem? Claro, posso ver que sim! Ótimo, ótimo! Eu sou seu guia e te mostrarei seu novo lar!”
Demorou algum tempo para Vitor achar quem falava com ele. Olhou para os lados, coçou a testa, olhou para baixo e lá estava, uma raposa vermelha com a barriga e patas brancas, focinho comprido e olhos sagazes, toda feita de engrenagens. (Amava raposas!)
“Ah, oi… Aqui as raposas falam, é? Maneiro! Mas o que você quis dizer com “novo lar”? O diretor disse que logo voltaria pra casa…”
A raposa pulou até uma pedra, para ficar na altura dos olhos de Vitor, piscou e disse:
“Sim, você acabou de voltar para sua verdadeira casa. Olhe para tudo, não parece familiar? Você pertence a esse lugar!”
Vitor observou cada cantinho daquele ambiente e tudo parecia novo e original. Tinha certeza de que nunca estivera lá antes.
“Ué, mas como assim? Não está vendo que sou feito de carne e osso? Como aqui pode ser minha casa? Sem ofensas, aqui é bem legal e tals, mas eu não sou um robô! É o que vocês são, não é? Então, de qualquer forma, eu sou humano, não tá vendo?”
A raposa balançou a cabeça e mexeu o focinho. O barulho de pequenas engrenagens se movendo era encantador.
“Humano, pois sim…”, deu uma risadinha matreira.
“Venha, vou te mostrar tudinho.”
Vitor deu de ombros e seguiu a raposa como pode, não conseguia acompanhar suas patas rápidas e ágeis. Até porque se distraía com cada planta, flor, casa, nuvem…
Uma enorme borboleta passou por ele, batendo as asas (num tom de verde esmeralda e azul celeste) devagar, num ritmo que lembrava a valsa. Estendeu o dedo e ela pousou nele. Foi diferente do que imaginava. Ela era leve e suave.
“O que foi, meu bem, nunca viu tanta beleza?”
(Claro, todos os animais deviam falar naquele lugar.)
“Na verdade, não! Você é maravilhosa! Stela adoraria te ver… Ela ama borboletas, sabe…”
Seu sorriso murchou na hora quando pensou na Stela.
“Me fala, como faço pra voltar pra casa? Aquela raposa maluca acha que meu lugar é aqui, mas é um engano, com certeza…”
A borboleta continuou batendo as asas, toda exibida.
“Escuta, querido, se a raposa disse que você é daqui, então você é daqui. Simples assim. Mas por que você quer voltar para o orfanato? Ninguém quer ficar lá, ainda mais quando chega a hora de voltar pra casa.”
Vitor coçou a cabeça, contrariado.
“Mas eu nunca estive aqui antes! E tem uma pessoa me esperando lá, tenho que voltar. Não parece óbvio que sou diferente de vocês?”
“Não, não vejo diferença nenhuma. Você parece se encaixar perfeitamente aqui. Até mais, amor, te vejo por aí. É melhor correr, a raposa está impaciente. Garanto que isso não é bom.”
Bateu as asas com mais força e levantou um voo elegante.
Ao longe, a raposa acenava para ele com insistência.
“Vamos logo, rapaz! Não temos tempo a perder!”
Chegaram a um galpão gigantesco, colorido, feito com pecinhas minúsculas que não paravam de girar.
“Aqui é onde a mágica acontece, garoto!”
Dentro estavam centenas de pessoas, todas feitas de engrenagens, juntando peças e peças, criando coisas, como abelhas, gatos, violetas, violões, nuvens, gotas de chuva, estrelas…. Tudo que se podia imaginar era montado ali e assim que o objeto ficava pronto, quando a última pecinha era colocada no seu lugar, ele ganhava vida, começava a se mexer e ia fazer o que fora criado para fazer.
“Uau! Isso é incrível! Mas como eles ganham vida assim do nada?”
“Não é do nada. Quando todas as suas peças estão no lugar certo, você simplesmente se torna quem deveria ser. Uma peça sozinha não é nada, mas o conjunto pode ser qualquer coisa! Aqui, tente montar um esquilo.”
A raposa estendeu um punhado de peças marrons em sua direção.
“Mas eu não sei como fazer isso!”
“Tente, tente, vai se impressionar com o resultado.”
Analisou cada uma delas. Eram inanimadas, silenciosas e frias.
“Não pense muito, só junte. Não é você que está criando o esquilo, ele já existe, você só está emprestando suas mãos para montá-lo.”
Ele começou a juntar as peças de modo aleatório e instintivo, e logo surgia um esquilinho fofo e mecânico, com grandes olhos brilhantes e bigodinhos que começaram a se mexer assim que a última engrenagem foi encaixada.
“Não posso acreditar! Está vivo!”
Vitor segurou o animal como um bebê recém-nascido e, maravilhado, contemplava sua obra.
“Claro que estou vivo! Por que o espanto? Agora me solta que tenho muito o que fazer. Obrigada pela ajuda!”
A esquilinha pulou de sua mão e saiu correndo do galpão.
“Então aqui é assim, tudo que existe é montado por pessoas de engrenagens? E quem monta as pessoas? Elas vêm prontas?”
“Não, elas vêm de orfanatos. Assim como você.”
“Mas eu não sou de engrenagens, sou de carne e osso, olha!”
Estendeu os braços, mais um vez, e cutucou-os na frente dos olhos da raposa.
“Estou vendo, estou vendo!”, balançou a cabeça, com ar de deboche. “Mas acredite em mim quando digo que nem tudo é o que parece, mas tudo é o que deveria ser.”
“Eu não entendo!”
“Não se preocupe, um dia você entenderá. Enquanto isso, pode montar o que quiser!"
“É só isso que fazem por aqui? Criar animais e plantas e tudo o que existe?”
“Na verdade, você pode fazer o que quiser. Não precisa ficar aqui, nesse galpão. Esse mundo é seu, você é livre, maior de idade, faça o que quiser.”
“Eu quero voltar para o orfanato e buscar a Stela. Como faço isso?”
“Ah, menino, isso é impossível! Ninguém consegue voltar e ninguém pode entrar se não pertence a esse lugar.”
“Mas então o que vai acontecer com ela?”
“Quando chegar a hora, ela vai ser mandada para seu lugar de origem, para ser o que foi criada para ser. Assim como você.”
“E quantos lugares como esse existem?”
“Milhares, meu filho, milhares.”
A raposa saltou e deu tapinhas nas costas de Vitor, correndo até os portões do galpão em seguida.
“Até mais, garoto! Meu trabalho está terminado, nos vemos por aí.”
E foi embora.
A primeira coisa que Vitor fez foi um bolo (estava com fome). Não sabia se daria certo, entretanto, não custava tentar. Foi montando e, na sua frente, um lindo e saboroso bolo surgiu. Ainda era de minúsculas engrenagens, todas funcionando perfeitamente, mas era macio e convidativo.
Relou a língua no bolo e o gosto de chocolate fez a saliva engrossar. Mordeu ainda com medo. A sensação das engrenagens se espalhando e dissolvendo na boca era incrível, e o gosto, além de maravilhosamente doce, era da conquista de comer o que se fez sozinho.
Continuou construindo. Uma casa, um carro, barquinhos de brinquedo, animais, flores e uma infinidade de coisas. Passava o dia no galpão, as mãos ocupadas, montando sem parar. Não pensava, só montava.
Era muito bom naquilo. Talvez a raposa estivesse certa, afinal, parecia mesmo pertencer àquele lugar, mas sentia-se solitário. As outras pessoas estavam, assim como ele, ocupadas demais construindo suas próprias coisas, não tinham tempo, nem vontade, de fazer amizades, muito menos engajar amores.
Sentia falta de Stela. Pensava nela cada vez mais.
Todos os dias, montava uma infinidade de coisas tentando não pensar no vazio de seu coração.
Puxou conversa com um homem que sempre ficava perto dele no galpão.
“Você também veio do orfanato?”
O homem olhou para ele, com seus olhos feitos de engrenagens azuis vitrificadas, parou de fazer o canário, que estava quase pronto, e disse:
“Claro, todo mundo veio”, deu de ombros.
Sua pele era clara e as engrenagens eram tão pequenas que quase pareciam pele de verdade.
“Mas você não sente falta de lá, dos amigos…”
“No começo, um pouco, mas depois tudo se ajeita.”
“Não sei se vou me acostumar… Acho que não sou daqui”, falou baixinho, olhando para os lados.
“É assim mesmo, a gente estranha no começo, leva tempo para se adaptar. Você vai ficar bem, não pense muito nisso”, e voltou a montar seu passarinho.
Mas ainda achava que não era igual aos outros, olhava suas mãos e pés e via a pele macia, lisa, sem engrenagens.
Construiu um espelho e passou horas olhando para ele. Sim, era diferente. Não era feito de engrenagens, era de carne e osso, sentia o coração bater e o sangue correr pelas veias. Passava a mão nos cabelos castanhos e escuros, encaracolados, livres de engrenagens.
Procurou em todos os lugares, mas não achou uma engrenagenzinha sequer.
Parou de criar aos poucos.
Passou dias olhando no espelho tentando entender.
Pensando em que tipo de vida levaria se tivesse ido para outro lugar, junto com Stela.
Tentou criar uma pessoa, ou melhor, tentou criar Stela. Mas as peças não se encaixaram. Tentou várias vezes, sem conseguir nada além de aberrações incompletas que não funcionavam.
Notou que ninguém construía outras pessoas. Correu por todo o lugar e não achou uma criança sequer.
Novas pessoas surgiam todos os dias, mas ele se sentia cada vez mais sozinho e confuso. O sentimento de não pertencer, esse vazio, cada dia oprimia mais o seu coração.
Vagou pelo seu novo mundo e as engrenagens, seu movimento e suas cores, que antes o fascinavam, agora o deprimiam. Tudo parecia falso, robótico. Queria ver coisas de verdade, pessoas de verdade, queria ter ido para um lugar real.
Não aguentou o peso de ser o único de carne e osso.
De ser diferente.
Tomou a decisão de procurar até encontrar.
Sem pensar, construiu uma faca grande e fina.
Olhando no espelho que criara, encostou a faca na pele, afundou até sentir o tecido cedendo. O sangue escorria viscoso. Estranhamente, não doeu.
Procurou em cada camada de carne.
Assim que expôs o coração, uma surpresa!
A primeira coisa que ouviu foi o som quase musical das engrenagens, depois que o sangue diminuiu, pode ver, afinal.
O movimento do coração.
Pequenas engrenagens vermelho vivo e brilhante, funcionando em uma harmonia sinfônica, pulsando.
Se mexia cada vez mais devagar.
Até que tudo cessou.
Enquanto isso, no campo onde as novas pessoas chegavam, a borboleta dava as boas-vindas à Stela e contava que havia uma pessoa que esperava ansiosamente por ela.