O Limite do Evangelho

DIZEM QUE O APÓSTOLO PAULO escreveu em Colossenses 1:23 que o Evangelho foi pregado a toda criatura debaixo do céu. Mas e as criaturas que estão acima do céu? Se as Boas Novas são universais, então elas precisam se disseminar por toda galáxia, quiça todo universo. Se o universo for infinito? Bem, os seguidores de Jesus terão que se virar.

No ano 7032, dois dos “apóstolos” viajaram ao planeta Vonne para contar o Evangelho para aquelas criaturas. No caminho, o piloto da nave Elias, Isaac, reflete sobre algumas mensagens durante a passagem na Terra. Há cinco mil anos uma seita teria dito: “Jesus volta no século 21”. Em paredes de casas brasileiras do anos 2000 era muito comum ler: “Jesus está voltando. Prepara-te”. Isaac se questionava se a volta do Salvador estava condicionada à pregação universal do Evangelho. Ou seja, o Messias voltaria somente se cada criatura de cada planeta e estrela ouvisse a mensagem Dele. Imagina o trabalho hercúleo. Seu companheiro, Robert, descartava a tese.

- Mesmo quando Paulo dizia “toda criatura debaixo do céu” ela expressava hipérbole. Não é necessário cumprir isso literalmente. - disse Robert.

- Mas aí não seria justo condenar alguma criatura à danação eterna, se ela nunca tivesse ouvido a mensagem de salvação.

Esse era o teor dos embates teológico-filosóficos dos dois apóstolos interestelares. Mas havia algo que ambos concordava: as limitações do Apóstolo Paulo. Quando escreveu a carta para os colossenses, ele nunca poderia imaginar que havia múltiplos mundos. Sua perspectiva de “universal” era limítrofe.

Depois da viagem de alguns meses, a dupla chegou ao planeta Vonne. O Apostolado que os enviou estava ciente de que eles encontrariam uma sociedade quatrocentos anos mais velha. Relatividade. Vonne era um planeta similar à Terra, porém não se sabe o que poderia acontecer em quatro séculos. As informações sobre como era a sociedade naquele momento estavam escassas.

Pousaram.

Aeronaves cercaram a Elias e alguém do porto espacial de Vonne entrou em contato com os dois tripulantes. A mensagem imagética em resumo: já sabem que eles não representam perigo e indicaram um local para pouso.

A configuração urbana era semelhante às especulações futuristas que terráqueos já fizeram sobre a própria Terra. Pegue, por exemplo, o cenário do filme Metropólis, de Fritz Lang, coloque um céu alaranjado com estrelas mais brilhantes e um tom mais luminoso nas ruas e, por fim, acrescente seres bípedes, semelhantes a humanos, mas com pele azulada.

Isaac e Robert foram encaminhados à fiscalização do Porto Espacial.

- O que querem os visitantes?

Falaram num código linguístico assaz distinto dos dois, o que era previsível. O Apostolado havia desenvolvido um dispositivo na roupa de Isaac e Robert. Inspirado pelo evento de Pentecostes, o equipamento aspirava a compreender qualquer construção linguística universal. No entanto, nesse caso não estava funcionando plenamente. Isaac respondeu que os dois estavam ali para pregar o evangelho. O Fiscal disse algo do tipo “mais pregadores religiosos de outros planetas”. Não se sabe com certeza se foi exatamente isso que foi dito. Todavia, a entrada deles no planeta foi permitida. Ao que tudo indica, há outras religiões pela galáxia e aquele planeta já recebeu outros antes de Isaac e Robert.

O planeta adotava muitas convenções similares às terrestres. Ademais, era, digamos assim, “cosmopolita”. Eram visíveis muitos seres de variados planetas. Viviam ali, alguns em fuga de seus planetas em guerra. Os dois apóstolos notaram que era um mundo hospitaleiro. Aparentemente, não precisariam “sacudir o pó dos pés”. O método de pregação era clássico, de mais de sete mil anos: “de porta em porta”. Não havia residências individuais, tudo era prédio, apartamento, usando a linguagem da Terra. Talvez aquela região de Vonne fosse um imenso conjunto de condomínios.

Para entrar, enfrentaram mais fiscalização. Os dois se perguntaram por que todo esse rigor. Provável que o motivo estava no fato de ambos serem estrangeiros, mas será que era só isso?

Filme repetido. Tiveram que explicar, mesmo com o aparelho de Pentecostes funcionando mal, que eram apenas enviados de Jesus. Ainda assim conseguiram entender a pergunta do Guardião: “tem algum número específico que vocês queiram ir?”. Isaac sugeriu que os dois respondessem o número “12”, referente aos 12 apóstolos. Mais uma vez deixaram eles passarem.

E mais uma vez os dois se perguntaram como aquela comunidade que está a anos-luz da Terra tem muita similaridade com convenções terrestres. Observe que o interior e o formato externo dos “prédios” lembram muito edifícios da Terra. Têm escadas, corredores, mas por alguma razão não havia elevadores. Aliás, eles notaram que os números são os mesmos. 12 é 12 lá, como é na Terra, ou em qualquer lugar do universo. Aquela civilização também tinha adotado os códigos numéricos.

Subiram e andaram até a residência 12. Depois de saírem dali, iriam evangelizar outras casas. A porta era feita de um tipo de metal desconhecido. Bater nela não iria chamar atenção. Antes de tomarem alguma iniciativa, a porta sumiu. Lá dentro dois dos seres. Fizeram um gesto indicando que os dois humanos poderiam entrar. A sala era um cubículo vazio, sem nada, o céu alaranjado o tempo todo iluminava. E havia alguns cubos flutuantes. Um dos seres fez um gesto com as mãos e um dos cubos se transformou em porta, fechando a sala.

Isaac e Robert estavam impresssionados. Entretanto, a Palavra de Deus tinha que ser pregada. O aparelho continuava ruim, porém os dois vonneguianos entenderam. Talvez fosse telepatas, não ficou claro. Robert deu uma versão digital do Novo Testamento, traduzido em algumas linguagens de variados planetas. Não havia na linguagem daqueles seres, porém eles gesticularam e deram a entender que compreenderam a mensagem dos dois. Então transmitiram imagens de outros apóstolos que viajaram até aquele planeta, em outras épocas e que não eram terráqueos como eles. Na verdade, aquela civilização cosmopolita tinha vários apóstolos que foram acolhidos e passaram a viver ali. “Mas como? O Evangelho é da Terra para o resto do universo”, disse Isaac.

O fato é que diversas civilizações pelo universo tinham seu próprio “cristianismo”. Era arquétipo que se repetia por vários cantos da galáxia. Naquele mesmo planeta também havia cristianismo, extinto há dezenas de séculos. Ninguém estava ou estaria impressionado com a mensagem de Jesus.

O Evangelho prega a Salvação em Cristo, da danação eterna. Cristo teria sido o Ser que venceu a morte. Mas naquela sociedade, como em algumas outras, a morte não existia. Os dois vonneguianos demonstraram isso. Um dos cubos flutuantes se transformou numa espada e perfurou os dois anfitriões, para horror de Isaac e Robert. Todavia, ambos se levantaram. As feridas rapidamente cicatrizaram. Robert notou que havia vonneguianos que pareciam mais vulneráveis que outros, o que indicava que a velhice poderia atingir aquela civilização. De fato, poderia. No entanto, eles viviam um ciclo de extinção e retorno, algo natural, sem interferência divina. O problema é que isso implicaria numa civilização com baixíssima taxa de natalidade, quase nula, para evitar superpopulação. A população tinha alguma variação durante esses milhares de anos, porque se alguém “morresse”, precisava ficar na “geladeira” por pelo menos cinquenta anos. Ademais, aquela civilização tinha um forte senso de comunidade e hospitalidade. Não havia crimes, nem doenças. Quase nada fora da curva acontecia ali. Era quase a realização da utopia cristã.

Natureza e estrutura social daquele lugar faziam as Boas Novas perderem toda atratividade.

Isaac e Robert foram embora, nem tentaram evangelizar mais ninguém por ali. Foram forçados a sacudir a poeira dos pés. Eles compreenderam que havia limitações no Evangelho, não em Paulo. Talvez o apóstolo soubesse da existência de outros planetas e compreendesse que a mensagem divina fizesse sentido apenas aqui, debaixo do céu. Pode ser que acima do céu ninguém precisasse do Evangelho, embora houvesse outras versões das Boas Novas por aí.

Os dois viajantes começaram a se questionar se há lugares que Deus nunca foi, muito menos criou alguma coisa.