Dois estados de um elétron

Um homem deu entrada no hospital há dias. Perdeu a consciência. Exames médicos não conseguiram detectar problemas neurológicos, cerebrais, respiratórios, cardíacos… nada. O paciente apagou. Suas atividades cerebrais estão normais, tudo está normal. Com o passar o tempo algo incomum começou a acontecer. O homem estava ficando transparente, como se estivesse sumindo aos poucos. São sintomas que já foram vistos antes. Entretanto, ainda não foram catalogados em enciclopédias médicas. A família se desespera, pois o que presencia é o seu ente querido desaparecer, como se sua existência estivesse sendo apagada.

Um homem no corredor do hospital observa o penar dos familiares. Os médicos não sabem que diabos há com o rapaz, mas esse cara sabe. Seu nome é Witt Booth, ele é um funtivo. Um categoria de policial que existe em outro mundo e que atua em duas Terras, capturando viajantes ilegais entre os mundos. A sua Terra teoricamente é o mesma que aquela, mas mil anos a mais. Sua sociedade é tão capaz que tornou banal a viagem entre mundos. Onde Booth está agora é ano 2021. Na sua Terra é 3021.

Ele recebeu um contato do capitão.

- Você deve achar que esse mundo é um lugarzinho primitivo.

- Não, mas realmente me sinto estranho.

- Achou o alvo?

- Não o alvo, mas a “vítima” dele. O cara está sumindo. Não tenho muito tempo.

- Encontre imediatamente. Ele é muito perigoso.

- Eu sei.

- Pois é. Você precisa trazê-lo para julgamento.

- Sim. Te mantenho atualizado.

Havia uma controvérsia perene no mundo de Booth: é tudo determinado ou é possível mudar eventos temporais e surgimentos de novos “conjuntos”? A sociedade dos cientistas havia se dividido entre multiconjuntistas e biconjuntistas. Os primeiros ferreamente se fundamentavam no conceitos quânticos e do espaço-tempo: a superposição quântica expressa o “princípio da incerteza”, ou seja, antes de ser medido, um sistema físico pode estar em qualquer estado quântico. Isso significa que enquanto na Terra A o elétron pode aparecer em uma determinada posição, na B aparece em outra, na C em outra e assim por diante. Portanto, haver duas Terras significaria que o elétron só pode estar dois estados quânticos somente, limitando o princípio da incerteza a uma quase certeza. Ademais, segundo os multiconjuntistas, não se pode alterar o futuro indo ao passado. Quando se faz isso, não vai alterar sua própria linha temporal, mas sim criar uma outra ou outras. Existe outras linhas temporais, Terras de universos paralelos, novos conjuntos.

Os segundos acreditam ser possível voltar ao passado e alterar o futuro e para eles só existe duas Terras, dois conjuntos, que estão em função entre si. E que uma poderia ser a versão do futuro da outra.

O biconjuntismo é considerado ortodoxo. A Polícia Funtiva se fundamenta nas suas teses. O problema é que ainda não conseguiu explicar como a Terra paralela surgiu.

Booth saiu pelas ruas de VennCity, local onde rastreou o fugitivo, que estava a muitos quilometros de distância da sua versão. Ele vê uma manchete de jornal: “INEXPLICÁVEL: MAIS UM HOMEM ESTÁ DESPARECENDO”.

Péssimo.

Lembrou do Efeito Borboleta. O fato de haver cidadãos presenciando aberrações inexplicáveis pode alterar o futuro ou criar novos mundos? Por enquanto, a tecnologia do seu tempo só pode fazer a transição entre a sua Terra original e essa onde ele está, porque as duas têm “função”, mas não pode detectar, muito menos viajar para outras Terras.

Ao que tudo indica, a função entre essa Terra e a outra é bijetora.

Depois de dias procurando, ele finalmente achou o procurado. Olhou bem a aparência. Era exatamente a mesma do homem que desaparece no hospital. Sim, o procurado é uma versão do paciente, mas de outra Terra.

Enquanto nessa Terra ele é um policial honrado, lá ele é um criminoso no melhor estilo “high tech, low life”. Um traficante chamado Paul Cantor, que colocou as mãos em armas perigosas e avançadas, foi preso, escapou. Conseguiu acesso ao serviço de “turista bi-universal” e fugiu para a outra Terra. Que é essa onde ele está há exatos 60 dias, muito além do tempo permitido, então isso explica por que acontece aquilo com o homem do hospital.

Há estudos matemáticos que mostram que as duas Terras são conjuntos com os mesmos elementos que se correspondem, daí o fato de ser uma função bijetora. Mas quando um elemento de um conjunto vai para outro, significa que há dois elementos iguais no mesmo conjunto. O que ocorre?

Um dos elementos começa a desaparecer, sua existência se extingue, pois apenas um pode ficar no conjunto. Mas isso só ocorre quando se ultrapassa um limite de tempo. E outra: o turista pode ter a sua existência ameaçada, em vez de o elemento dessa Terra. A solução para evitar seu desaparecimento é matar o outro elemento. A Polícia Funtiva foi criada para lidar com foragidos da outra Terra e os funtivos estão cientes de que podem perder a consciência se forem eles que estiverem desaparecendo. É por isso que há nanotecnologia capaz de evitar o apagão - que também caiu nas mãos de bandidos. Mas isso é usado no modo de emergência. O ideal é capturar o deliquente antes do deadline.

Paul Cantor nem precisou usar esse recurso, o seu equivalente é quem está sumindo.

Booth está chegando perto, depois de horas observando para emboscar. Tem que esperar ele sair do meio de outras pessoas. Cantor anda pela rua. Os dois andam. O funtivo o segue até um apartamento esquálido e descobre que seu alvo está hospedado em um dos quartos. Abriu e entrou. Uma mulher o abraça e o beija.

Cantor construiu uma relação afetiva enquanto esteve aqui. Mas Booth tem que fazer o trabalho dele e o outro homem está sumindo, sem muito tempo. Ele vai até a porta do apartamento de Cantor e bate. A mulher atende.

- Preciso falar com seu namorado.

- John!

John!?

- Posso entrar, John?

John ficou com o cenho sombrio quando viu Booth. Ele viu a insígnia no terno do funtivo.

- Entre. Lucy, deixe-nos a sós, por favor.

Ela vai para outro cômodo.

- Gostei da barba falsa, “John”.

- Eu não vou sair dessa Terra, agente.

- Você não tem querer.

- Aqui eu tenho tudo que eu sempre quis.

- Duas coisas: 1)você é um criminoso; 2) sua presença aqui está fazendo a sua versão desta Terra desaparecer, Paul. Se entregue. Ou usarei da força.

- Se eu for, nunca mais verei a Lucy.

- Se você não for, aquela família nunca mais verá seu ente querido, aquela esposa nunca mais verá seu marido, aquele filho nunca mais verá seu pai…

John levantou e andou até a pia.

- Você me comoveu com essa história, funtivo. Qual seu nome?

- Booth.

- Não vai me levar, Booth.

John puxou uma arma e atirou, Booth conseguiu virar o sofá onde estava sentado e se proteger. Era uma arma de fogo, comum naquela Terra. Uma glock. Lucy se assustou com os tiros. Uma criança começa a chorar. John pulou pela janela e caiu numa lixeira dentro de um beco ao lado do apartamento.

Lucy chora. Pega a faca e ameaça Booth.

- Quem diabos é você?

- Aquele homem não se chama John, ele está enganando você.

- Cala a boca!

- Me diga, a criança é filha dele?

Ainda com a faca apontada, chorando, ela fica claudicante. Cede.

- Não, é de um rapaz que me abandonou.

Booth vai embora.

De volta ao hospital. Cheio de repórteres, médicos de todo canto, curiosos… Família em desespero, o homem está sumindo totalmente. Choro, gritos, tudo isso comove Booth.

Dias se passam. Booth utiliza dos nanorobôs, se não fossem eles, já teria apagado. Mas ele sabe que logo irá começar a sumir também. A tecnologia evita que se perca a consciência, mas não que a existência desapareça. A solução seria ir embora ou matar a sua versão dessa Terra, porém ele não fará isso. O que não significa que não tomará medidas desesperadas.

Há dias ele observa Lucy. Nas últimas horas ela tem atendido demais o telefone. É o dia de agir. Vai ao apartamento. Bate na porta. Ela abre.

- Ele aponta uma arma, da sua Terra.

- Não grite, Lucy. E não tente nada. Se eu apertar, o raio que sair dessa arma vai te transformar em farelo.

Ela põe a mão no rosto e começa a chorar.

- Mas que diabos é isso?

- Se acalme. Sei que você fala com John/Paul pelo telefone. Liga para ele. E me passa o celular.

Ela faz isso. John/Paul atende.

- John, escutou o choro? Eu estou com Lucy na mira de uma A137, você sabe o que é. Você usou dela para desintegrar adversários, se lembra?

- DESGRAÇADO! NÃO A MACHUQUE!

- Venha até aqui, se entregue. Ou eu vou transformar ela e a criança em farelo.

- EU VOU TE MATAR!

- Não tente nada.

Desligou.

- Eu não vou machucar vocês, mas preciso atraí-lo.

Acabou a carreira de Booth. Ele cometeu várias ilegalidades, ameaçou usar de uma arma de outro mundo. Mesmo que leve Paul de volta, é o fim de sua carreira como funtivo. Se der muita sorte, não vai preso.

John chega e está armado.

Booth usa Lucy como escudo e está com a A137 na cabeça dela.

- Paul, minha carreira como funtivo acabou. Eu vou voltar e serei punido. Pense nisso como uma vingança justa. Se entregue. O outro cara lá vai sumir!

- CALA A SUA BOCA, EU NÃO VOU VOLTAR PARA AQUELE MUNDO, NEM PARA AQUELA PRISÃO MALDITA, MEU LUGAR É AQUI!

Criança chora. Distração. Lucy pisa no pé de Booth e dá uma cotovelada na barriga dele. Ela se solta, sai da frente e Paul dispara. A bala acerta o pescoço de Booth, que cai no chão sangrando, mas ainda vivo. Lucy corre em direção a Paul. Booth aperta a insígnia e com isso consegue fazer a A137 disparar automaticamente, antes de Paul lhe acertar mais bala.

Paul/John e Lucy se esfarelam sob os olhos da criança que chora sem entender nada. A muitos quilometros dali, todos ficam surpreso quando o paciente volta a ser o que era e recupera a consciência. Ele faz a pergunta clichê: “o que houve?”.

No jornal, um repórter de ciências e medicina informa: “esse caso não foi o único. Houve outras pessoas sumindo ao redor do mundo, mas todas elas voltaram ao normal antes de sumirem totalmente. A ciência não consegue explicar o que pode ser isso.”

FIM