O terceiro lado da moeda
Mal percebo o homem de bigode à minha frente. A atenção está fixa no cano da arma semi enfiada na minha boca. "Meu Deus, penso, não deixe que isso aconteça comigo!" Engraçado como todos, mesmo eu, quase assumidamente atéia, se lembra Dele nos momentos de perigo ou dor.
Visão lateral, o dedo no gatilho move-se milimétrico. “Vai atirar!" Mil segundos num só , estranha relatividade, horas voando, sofrimento, ponteiros do relógio em câmera lenta. Momento esquisito para filosofia barata. Medo que Ele não me ouça. E porquê ouviria? Em mil viventes talvez um como eu. Católicos, protestantes, muçulmanos, budistas, suas crenças, igrejas, olhos e corações fiéis, aceitação das dores e sofrimentos, a não vergonha em crer, porque me ouviria? Porque aceitar minha conversão fora de hora? Por ser um instante de desespero?
Angústia. Calafrio percorrendo as veias como sangue. Pensamentos se atropelando buscando uma saida neste beco sem. Pensamento estranho: medo de morrer feia, vi pessoas atiradas, o buraco da bala , a pele triturada, os dentes partidos no choque com o chumbo quente, olhos estourados. Nunca vi uma pessoa levar um tiro na cara e não estar feia.
A mão se ergue um nada.Outra não veria a diferença entre estava e está , mas na linha de tiro, percebo a elevação, a mira entre os olhos, direta ao cérebro, morte instantânea sem um ái ou chance de fuga. Tudo o que fiz de bom ou ruim pouco importa,ainda bem que não creio em outra vida. Céu, inferno, purgatório, conversa de gente que não tem o que fazer.
Clarão! Dor! Pavor!
Acordo.
Será que morri? Pisco.
Ninguém comigo. Só a dor rasgante no peito, a cabeça explodindo. Levo a mão. Molhada, cheirando alfazema. Não! Outro cheiro. Acre, adocicado.
Lentamente descubro onde estou. O carro, o choque, o barranco.
"O menino, meu Deus!"
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Tento me arrastar no meio das ferragens retorcidas clamando por uma luz.
O volante partiu, corto a mão descobrindo e prensa meu peito contra o banco. Essa a razão da dor. Forço. Cede um pouco, porém suficiente para mover-me. O joelho direito enganchado dói, não tão desagradável, ínfima. Se firmar com jeito fica livre rápido. O diabo é encontrar o jeito certo, um jeito assim... correto, que não doa muito. Suportável .
Preciso encontrar a lanterna portátil, assim posso ter uma idéia do que aconteceu. Milésimos de segundos pensando onde pode estar a maldita lanterna, o desconforto da dor atrapalhando. Deve estar no porta luvas.
Está.
Clic e a luz ameniza a escuridão. Torço o corpo tentando espiar o banco de traz, ver se o menino está bem. O peito dói mais forte em contato com o que era para ser um volante, agora um aro cortadiço, joelho raspando o ferro do painel por baixo. Mais um tiquinho, só mais um tiquinho , a luz bruxaleando ilumina o suporte onde ele está.
Parece bem. De onde estou, a pouca luz da lanterna, a confusão dentro de mim, não vejo sangue nele. Só em minha mão, acho que cortei a cabeça porque sinto-a molhado e alguma coisa líquida escorre pelo rosto. Não sei porque lembro da piada do bêbado que carregando uma garrafa de pinga cai num barranco e sentindo a camisa molhada, exclama:- Tomara que seja sangue! Hora mais imprópria de lembrar piadas, penso . Nunca suportei dramalhão mexicano, não é um acidentezinho de merda, uma batida sem álcool num barranco em lugar impróprio que me fará mudar de idéia radicalmente, sou assim não!
Tento e nada de conseguir sair para o banco de traz ver como ele está. Poderosas leis físicas impedem. Um último olhar dirigido e nada constato. Nada grave,raciocino, mas alguma coisa deve ter acontecido senão ele estaria chorando ou chamando pela mãe, eu. Talvez tenha batido a cabeça e desmaiado. Talvez tenha se assustado com o que houve. Talvez tenha morrido. NÃO! ISSO NÃO! Sacudo a cabeça , negando a mim mesma a possibilidade e, não importando nem um pouco com a dor na parte de baixo tiro as duas pernas de sopetão.
Preciso sair do carro e tirá-lo para fora. Ver o que aconteceu. Porque não se move.
A porta do meu lado está prensada no barranco. Dá para perceber a terra escorrendo se misturando com o vidro moído no chão do carro. Desisto de sair , o melhor mesmo é saltar do banco dianteiro para o traseiro e faço. Ausculto seu coração. Fraco. Semi imperceptível, mas não há sangue, posso perceber agora. O problema é que pode haver rupturas internas. Crianças são frágeis, passarinhos humanos é o que são. Cristais que um vento fraco pode quebrar.
Num misto de desespero e ansiedade coloco todas as forças nas pernas e chuto a porta travada, a costa apoiada na outra, rente ao paredão.
Tchok!
Abre. Pouco. “Abre desgraçada!”. Outro chute. Desta vez mais forte e tudo bem, o espaço deve ser suficiente. Antes destravo o suporte. O menino desaba no banco, mole e o apanho com todo o cuidado que uma mãe pode ter num momento como esse.
Saio, a costa raspando o teto rebaixado, pouco me importa o sangue escorrendo no rosto, a dor nas pernas aumentando geometricamente, o peito preso sufocando a respiração.
O ar da noite é um bálsamo.
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O médico com cara de menino nos atendeu prestativo.
- Ele vai ficar bem, doutor? Pergunto.
- Não se preocupe! ( como se isso fosse possível) Não tem nenhum ferimento aparente, isso eu pude constatar! Deve ter sido o choque. Onde bateram?
- Não sei direito. – respondo. É a primeira vez que venho aqui, nesta cidade. Na entrada. – tento ser um pouco mais precisa: Não! Um pouco antes da curva. Estava escuro, explico, não posso afirmar com certeza.
- E você?
- Que tem eu?
Indica minha cabeça com o queixo.
- Esse ferimento . Vem comigo. Vou fazer um curativo de emergência, depois a gente tira um raio X ver se não houve fratura!
- Não liga pra mim! Resmungo. Trate do meu filho primeiro.
Sorri tímido.
- O menino está bem! O importante é cuidar de você agora.
Escora meu braço e me faz sentar no banco gelado.
Mãos firmes apanha o punhado de gase, o merthiolate incolor, a pinça indefectível.
- Não vai doer!
A voz me tranquiliza. Apesar da aparência de pouca idade demonstra segurança. Afasta o cabelo um pouco para o lado, molha a gase com o merthiolate e aplica no lado esquerdo da minha cabeça. Disse a verdade quando afirmou que não doeria.
- Só tem ele? pergunta.
- Como? não entendi o que quer saber.
- O menino. Só ele de filho?
Agora sim!
- Só. respondo, sem querer que a conversa prossiga. Nunca fui de muito papo, mesmo antes, hoje é mais complicado ainda.
- E seu marido?
- Não tenho. Produção independente, respondo seca.
- Desculpe! Percebo o mal estar dele quando sacode a cabeça de leve. Como a dizer “que hora de abrir a boca”. Contenho o sorriso. Não ficaria bem sarrear quem me cuida com tanta atenção.
Terminou o curativo. Devo estar horrorosa com as pernas lanhadas e este adesivo na cabeça como uma auréola.
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A menina da portaria não passou um boa noite. Olheiras escuras, procura evitar meus olhos. Entendo. Já passei por isso inúmeras vezes e sei o quanto a gente se sente mal cara a cara com outra pessoa. Desvio o olhar.
- Tem algum plano de saúde?
Faço que não com a cabeça.
Ela suspira.
- E pretende pagar como ? Cheque? Cartão ?
" Ingênua " penso. A maioria das pessoas devem estar numa pior nesta cidade.
Dinheiro, respondo esperando que ela não estranhe. Sabe como é ! Não quero ser muito diferente dos outros. Necessário, no meu caso, não chamar a atenção. Se bem que, com o acidente. . .
Observo-a usando a calculadora. Dedos ágeis demora pouco tempo para dar o valor. Alto, mesmo para mim. Deve ser por isso que as faculdades de medicina com suas mensalidades exorbitantes vivem atulhadas de alunos.
- Tenho de fazer uma transferência de dinheiro da minha cidade! Minto descaradamente. - Posso deixar um depósito inicial e pagar o restante quando meu filho sair?
Como não poderia deixar de ser, aceita.
Deixo 20 % da conta - 300 reais - no balcão. A menina apanha o dinheiro, conta e deposita na gaveta e fica me olhando.
- Quer que assine um documento? Pergunto mesmo sabendo que o que ela quer de verdade são meus documentos. Até o momento, sequer o nome do meu filho perguntaram. Gostei do atendimento, passam a impressão que o importante para eles é cuidar dos ferimentos antes, meu e do menino, e só depois os negócios. Olho-a com simpatia.
- Pode emprestar sua identidade um momento?
- Desculpe! - falo, abrindo a bolsa e tirando o pedido. Antes dela apanhar dou um último olhar no RG. , recordar que nome estou usando nesta cidade. Um dos preparativos primordiais antes de mudar-me de cidade para cidade é esse: escolher um documento de identidade e usar apenas ele. Aconteceu antes dar um nome num lugar, outro noutro, ainda bem que não perceberam, seria difícil explicar convincentemente sem a presença da polícia.
Um rosto de mulher vagamente parecida comigo, um nome escolhido a esmo, Maria Angélica de Souza, domicílio em Goiás , a menina da portaria apanha e coloca alguns dados na ficha. Os principais, creio eu.
Assino o recibo com meu novo nome.
- Nome do filho?
- Josué. Digo o primeiro nome vindo à mente. - Mas não tenho nenhum documento dele aqui comigo. - à guiza de explicação. - Sabe como é ! Saí de casa às pressas, só apanhei os meus!
A menina sorri cúmplice. Está costumada com isso.
Saio dali e volto ao quarto. O menino continua dormindo. A enfermeira olha-me displicente, e continua arrumando os medicamentos na mesinha ao lado.
Aliso a testa do menino. Sem febre. O médico garantiu-me estar bem, só o choque, tomara que tenha razão.
Ele se ajeita ao toque levando um dedo a boca. Sento na beirada da cama, pensando em como ele é forte, como aguenta sem reclamar nossa situação, como é um anjo que apareceu em minha vida para modificá-la completamente.
Às vezes sinto saudade da vida que levava antes. Vida normal, se é que se considere normal ser prostituta, dando sexo em troca de dinheiro, aguentando quem aparecesse na minha frente, levando porrada algumas vezes, torrando a grana ganhada durante a noite em bebidas e drogas. É. Minha vida não era tão normal como poderia pensar. Ou seria normal pensar em transar o máximo possível ganhando o meu dinheiro sujo e sonhar, como todas as putas sonham em , mais tarde, conseguir um velho rico que se sujeitasse a sustentar uma ex- puta ? Que arrumasse uma casa com alguns móveis, uma televisão para assistir o Silvio Santos aos domingos, um filho que tivesse a sorte de herdar algo além dos risos dos colegas de escola e o pejorativo de filhodaputa pelo resto da vida. Sonho simples como todos os sonhos sonhados pelas minhas colegas de profissão. Algum conforto no fim da vida e em troca uma trepada por semana com um velho de pinto mole, cãimbras na boca, que todo amante exige ser chupado, uns tapas na cara vez em quando se fosse ciumento. Pouca coisa. A vida que a gente leva nos ensina a não sonhar demais. Nos ensina que essas histórias de algum Richard Gere aparecer é tão corriqueiro quanto um meteoro de ouro cair no nosso quintal. As histórias de finais felizes existem, é claro! Mocinhas que encontram o amor eterno e vivem felizes para sempre é o que não falta. Maridos que perdoam nosso passado, normal. Viver na alta sociedade depois de anos de putaria, comuml. Quase sempre ao contar comentam: Fulana de tal, aquela que dava como uma galinha. . . voce se lembra dela. . . todo mundo conhecia ela. . . No entanto sempre é alguém que a conhecia, a gente não. . . não teve o prazer ou a sorte de tê-la conhecido.
À princípio acreditamos. Talvez por conveniência, talvez por vontade que seja mesmo verdade e possamos encontrar a felicidade. Está dentro das pessoas sonhar. Quando meninas é um príncipe encantado, montado num cavalo branco, que surgirá galopando, nos apanhará nos braços e nos levará para um castelo na montanha. Depois, mocinhas, um cantor de sucesso nos vislumbrará no meio das fãs, se apaixonará e nos fará felizes. Putas velhas querem apenas um velho fedorento que faça a despesa da casa e dê um pouco de dignidade, ainda que escondida de todos.
O menino se agita . Murmura alguma coisa que não entendo. E seria difícil entender, a linguagem de uma criança de dois anos é muito relativa. Corro os olhos procurando a enfermeira que se foi enquanto eu devaneava. Toco sua testa vendo se tem febre - não tem - torcendo que abra os olhos e diga algo, isso me tranquilizaria um pouco mais.
Minhas preces são atendidas e dois olhos lindos me fitam. Isso vale mais que tudo na vida.
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Gorda carregando pacotes, falando alto com os outros e um cece desgraçado tromba comigo na esquina .Teria que ser cega, surda , com problemas de olfato para não descobrir que era uma turista. Acostumei-me com as pessoas dessas cidadezinhas do interior, que vivem exclusivamente de turismo, seja lá que tipo. São amáveis, conversam em voz baixa, vivem sorrindo mesmo com problemas em casa. É a lei do comércio! Clientes querem ser bem tratados e se assim o são voltam trazendo mais dinheiro e é disso que vivem os comerciantes: money!
Ainda não descobri direito qual o produto preponderante aqui. Sei que existe uma capelinha num bairro afastado onde uma suposta criança opera milagres. Ouvi algo sobre o pai ser caminhoneiro e não ter percebido a criança brincando perto dos pneus traseiros. Parece que saiu em ré e esmagou a filha. Algum tempo depois um cego pediu a Deus que o curasse e foi atendido. Ninguém explicou o que isso teria a ver com a menina morta mas o fato é que a notícia se espalhou e começaram as romarias. Gente de todo lugar aparecendo nesta cidade pedindo graças e agradecendo as atendidas. Acho que comprarei alguma coisa relacionada, qualquer porcaria, uma camiseta, boton, sei lá o que vendem esses caipiras. E interessa? Sempre haverá alguém para comprar, não vendem até réplicas de merda?
O médico com cara de menino, agora sei que se chama Ramissés, disse que meu filho ficará internado dois dias, no caso de aparecer alguma complicação.
Chego na parte principal da cidade. Ou o que imagino ser . Igreja antiga. Praça atulhada de barraquinhas. Sorveteiros trombando uns com os outros. Vendedores de pamonha anunciando nos megafones. Um bando de mulheres travestidas de ciganas abordando os passantes.
Tento me afastar rapidamente. Detesto esse tipo de gente. Uma delas, a mais novinha agarra meu braço e com um hálito desgraçado pergunta se não quero ver minha sorte. Obrigada, digo, tentando escapar , sabendo que não será tão fácil assim. Já fiz isso, a estratégia é atuchar o fregues de conversa mole, sem dar tempo dele pensar. Pra se ver livre da gente aguenta a lenga-lenga e dá logo o dinheiro. Básico!
A menina insiste. Vamos, Madame, eu falo seu futuro numa lida de mão! E segura firme meu pulso, o suor melecando meu braço. Mal olhando a palma desfia o roteiro já conhecido por mim. Um amor te espera mais adiante! Voce ficará rica amanhã! E continua apertando o pulso.
Vá segurar na puta que pariu! Grito com um safanão e me safo entre os outros, não sem antes ouvir o xingamento bem mais pesado. Ergo o pai-de-todos e mando ela praquele lugar.
Preciso encontrar um bar de periferia onde façam jogo de bicho. Isso é tudo que preciso no momento, ganhar um pouco de grana, pagar o hospital, pegar meu filho e ter um pouco de sossego. Depois me mandar para outra cidadezinha furreca como essa.
Pretendia ficar um um mês, dois mas o acidente complicou tudo. Bem capaz deles escarafuncharem minha vida . Nada como uma entrada triunfal num antro desses para levantar a lebre, e isso é tudo o que não quero no momento .
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O bar até que é apresentável, o vendeiro não e me olha de alto abaixo . As poucas mulheres que entram nesse lugar devem ser as vagabundas de sempre e ele desacostumou de mulheres de classe.
Deseja alguma coisa Madame ? pergunta entredentes, o nojentol palito na boca atrapalhando a dicção.
Um refrigerante, respondo seca, me arrumando o melhor que posso no banco rente ao balcão. Coca, completo, antes dele se abaixar para apanhar no freezer. Limpo a beira da latinha de refrigerante com o lenço, tentando descobrir algum bloco de anotações de jogo de bicho. Normalmente guardam nas gavetas perto do caixa, por isso estendo uma nota de dez. O vendeiro terá de abrir a gaveta para devolver o troco.
Na mosca! O bloquinho no canto esquerdo.
Vocês fazem jogo aqui? Pergunto aleatória, tentando demonstrar indiferença.
Vai fazer uma fezinha? - apanhando o talonário. Pelo visto os banqueiros soltam uma graninha para a polícia não atrapalhar. Peguei jeito nesse assunto, nas andanças por aí. Se os cambistas vivem ressabiados, olhando para os lados antes de anotarem os palpites, a polícia vive dando duras. Se não. . . como aqui, mole, mole, alguém nas altas esferas deve estar envolvido com a jogatina. É melhor assim. Não se corre o risco de ganhar e não receber. Existem banqueiros chulé tropeçando nas próprias pernas, torcendo para ninguém acertar e quando alguém é premiado a banca quebra. Se não pagam, reclamar com quem? Com o Bispo? Dar queixa na polícia?
Ponho meus neurônios para funcionar durante alguns segundos. Uma centena se forma lentamente na minha cabeça. 480. Ainda não sei como funciona a coisa.Sei apenas que todas as vezes que agi assim, ganhei. Foi um dos inúmeros prêmios ganhos com a vinda de Adriel. Li em alguns lugares que o nome real é premonição. Não me importa nem um pouco que nome deram para esse distúrbio. Importa apenas que sem ela, não conseguiria viver. . . nem fugir, ao menor sinal de perigo.
Preciso de 1200 para o hospital, mais um pouco para sobreviver uma duas semanas nesta cidade. Decido por 3000. Se for necessário jogo mais na próxima semana.
Pretendo gastar 20 reais no jogo. Centena seca. Centena combinada. Dezena. Mentalmente calculo quanto jogar em cada palpite para dar os 3000. 7 reais darão. O restante jogo em grupos secos, milhares e outras centenas que sei, nunca serão sortedas.
Uso sempre essa tática. Se jogasse num número só, fatalmente o cambista repetiria meu jogo e se eu fosse banqueiro e duas pessoas ganhassem num mesmo dia com a mesma centena ou milhar, desconfiaria. E o que menos quero é atrair atenção.
É engraçado. Antes desse dom que aqueles malditos cientistas me deram de bandeja, sem que eu pedisse uma única vez, meu maior sonho era uma noite sonhar com os números da Megasena. Apostaria, ficaria milionária e abandonaria de vez a vida miserável e “normal”. Hoje sou obrigada a ganhar miudezas sabendo que posso ganhar milhões. São as ironias da vida.
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Acordo revigorada. Noite calma sem sonhos depois de ver que meu filho está bem. Deixaram-me dormir no quarto ao lado, fosse uma cidade maior, duvido. Preciso sair e receber minha bolada. Quando derem alta terei de pagar o restante.
Saio antes dele acordar.
Compro jornal na banca em frente. Entre manchetes de escândalos políticos uma nota- pequena- sobre a morte da última paciente do Instituto Genealógico e a indicação de “mais” na página 15. Rapidamente abro o jornal na página indicada e a foto de Mariana salta aos olhos.
Tive pouco contato com ela durante a internação. Muito arredia. Eu conversava mais com Neusa e Suelen, mortas mês passado. A notícia diz que teve complicações neurais pós-operatórias, com certeza plantadas pela assessoria de imprensa. É mentira, assim como a afirmação dela ser a última. Eu sou! Mas isso eles nunca dirão, mesmo que me apanharem. Levarei um tiro e meu corpo desaparecerá. Eles querem Adriel.
Mariana era a mais nova de nós todas. Não sei dizer se era puta também, mas acho que sim, afinal só contrataram descartáveis. E quem mais descartável que putas pobres?
Quando as experiências com o gene alienígena começaram algumas não assimilaram. Sobramos 11, monitoradas dia e noite até os fetos nascerem. Creio terem se assustado ao verem os resultados e por isso tomaram os bebes e isolaram. Tais quais Franksteins modernos não previram os efeitos aleatórios de mistura tão esdrúxula. Por isso a matança indiscriminada.
Ainda não entendo como consegui fugir. Talvez o poder adquirido. Talvez minha vontade de sempre e sempre ter um filho e jamais conseguir. Trompas atrofiadas foi o diagnóstico final e conclusivo dos médicos do SUS enquanto ainda vivia com meu marido. Antes dele ir embora com alguém que pudesse dar-lhe um herdeiro e eu cair na vida.
Recebo o dinheiro junto com o olhar invejoso do cambista. Posso até imaginar o que pensa. “Se soubesse que essa fulana ia ganhar teria copiado seu jogo.”
- Outra fezinha, Madame?
- Tenho de ir para casa. – respondo. Não vou tomar mais dinheiro desse bando de idiotas. Existem mil banqueiros de jogo Brasil afora. Nada mais justo que tomar um pouco de cada um. A cidade mais próxima dista 15 kilômetros. Vou ganhar um carro usado lá , apanhar meu filho e sumir por aí.Essa cidade não me deu sorte.
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A estrada alonga-se à frente.
O menino está sereno, olhos espiando tudo, um ou outro sorriso fugidio para mim.
Ainda não sei o que ele pode fazer. Dois anos. Deve pensar em mamadeiras, brinquedos, sei lá em que uma criança pode pensar? Eu penso em sobreviver, não é fácil com esse bando de farejadores me caçando em todo lugar que vá. Mas o mundo é grande, estou atenta a tudo e finalmente tenho alguém por quem lutar. Precisa mais?
Ainda não sei como será a vida do meu filho. Se apenas por abrigá-lo dentro de mim durante nove meses ganhei esse dom, maldição, chame do que quiser, imagino que será poderoso, sendo o transmissor. Pode ser que seja mau e se transforme em um novo tirano. Um novo Hitler. Um Átila moderno. Alguém cujo poder coloque o mundo à seus pés.
Também pode se transformar num ser bom. E ser uma benção para a humanidade. Um Jesus contemporâneo. Um Sidarta não apocalíptico.
Desvio o olhar da pista e admiro seu sorriso infantil endereçado a mim. Uma nova esperança surge em minha mente.
Porque na vida não precisa existir apenas o bem e o mal. O claro e o escuro. O não e o sim. As pessoas quando atiram uma moeda para o alto esperam cara ou coroa. Certo?
Errado!
Existe uma terceira possibilidade: ela pode cair de pé e se equilibrar.
Na vida, assim como no jogo de probabilidades, existe uma terceira via. E ele, Adriel, pode ser que seja apenas um menino normal. Com seus sonhos, seus amores juvenis, sua acne e seu amor-ódio pelos outros.
Pode ser que seja apenas. . . meu filho.