Vaso sanitário barulhento

- ENTÃO, VOCÊ ESTÁ ME DIZENDO que extraterrestres conhecidos como “greys” invadiram sua casa, ameaçaram você e sua família e abusaram sexualmente da sua filha adolescente?

Era um homem que estava falando. Óculos, barba branca, rosto cansado que lembra os tantos trabalhadores que são assaltados em ônibus ou desempregados presos depois de meter os canos. Ele está tentando se justificar, falando contra supostos E.Ts que cometeram uma série de crimes numa única noite.

Sacaneei.

- São coisas muito graves, mas acho que você não sabe, nossa jurisdição não cobre crimes intergaláticos!

- Isso não tem graça.

Não deveria levá-lo a sério. Mas eu gosto de ficção científica.

- Vai em frente, rapaz. Me conta tudo.

“Eu sou um youtuber. Tenho interesses críticos em temas religiosos cristãos como escatalogias, existência de Jesus, Epístolas Paulinas, eventos bíblicos que desafiam a ciência etc. No entanto, eu passei a me interessar por temas mais amplos como teorias conspiratórias, ufologia, paranormalidade. Foi então que tudo começou a mudar. Semanas antes eu tinha feito vídeo sobre aparição de OVNIs em regiões do Brasil e do mundo. Comecei a fazer especulações que muita gente considera como absurdas e tolas. Eu comecei a conjecturar nos vídeos sobre as características dos habitantes desses OVNIs. Há ampla literatura na internet sobre o assunto. Disse que as naves deles têm poderes de invisibilidade e que a inteligência deles são muito mais avançadas que as nossas. Na verdade, isso é um senso comum.

Apenas um ou dois dias depois, recebi muitos contatos. Quase todos os e-mails e mensagens no Whatsapp eram desinteressantes. Um único me chamou atenção. Um ufólogo chamado Everton Pratiano me mandou inúmeros e-books que ele escreveu. Ele aborda o tema de uma forma criativa, sem ser prolixo, a leitura flui. O cara tem talento, acredito que ele poderia escrever bem sobre qualquer coisa, até mesmo sobre soldagem de portão. E ele fazia conexões que alguns consideram absurdas, tolas, dignas de riso, temas de ficção científica, mas que outros, pouca gente, consideram importantes.

Ele, por exemplo, atribuía o desaparecimento de um jornalista e de um motorista, no bairro de Canelão, em Salvador, aos E.Ts. Os dois teriam sido abduzidos. Uma explicação nada convencional, é claro. Mas pelo menos ele tentava dar uma resposta. A polícia nunca tinha conseguido saber o que houve com aqueles dois. A tese supostamente mais próxima da verdade é que ambos teriam sido mortos por traficantes de drogas, que teriam destruído os corpos deles. Everton morava na mesma região que eu. Então marcamos um encontro. Convidei ele para que fosse até minha casa.

Ele tinha trazido mapas, recortes de jornais, revistas, livros… Tudo era sobre ufologia e afins. O foco das investigações dele era o sumiço de pessoas. O jornalista e o motorista do jornal não eram os únicos desaparecidos sem explicação. Havia dezenas, centenas. E Pratiano dizia que tudo era obra de aliens. Que estariam abduzindo seres humanos para fazer experiências. Ele não duvidava, por exemplo, que os aliens estariam entre nós na forma de humanos! As coisas que ele dizia poderiam parecer absurdas, mas ele conseguia racionalizá-las.

- Outros ufólogos dizem que o jornalista e o motorista não podem ter sido abduzidos na favela. Cheios de casas e puxadinhos. E.T raiz gosta mesmo é de matagal, de canavial. Pergunto: como podem especular algo assim? Mesmo que muitas abduções e ataques de aliens tenha acontecido em lugares rurais, não se pode fazer generalizações. Assim como a maioria da população brasileira tem o futebol como seu esporte favorito, não se pode dizer que todos os brasileiros também têm. E.Ts podem abduzir em cidades. Essa gente precisa ter mais imaginação, Luciano. Com todo o recurso tecnológico que os aliens têm, eles podem ficar invisíveis e poderiam abduzir gente até mesmo num show de algum cantor sertanejo. Ninguém ia notar nada.

Logo passei a notar que Everton tinha um modelo teórico no qual tentava interpretar eventos a partir dele. Acontecimentos mundiais, segundo ele, não eram por acaso. Ele fazia uma mescla entre ufologia e teoria conspiratória. Não era uma amálgama original, mas a abordagem dele sobre isso era peculiar.

- Acredito que todos os fabricantes de vasos sanitários sejam controlados por E.Ts.

- Mas por que você acha isso?

- Para que os vasos sejam fabricados de uma maneira que não incomodem a audição deles.

Ele também expandia hipóteses disseminadas na internet. Envolvendo gente importante da política mundial. Lady Di teria sido assassinada por E.Ts. Segundo ele, a mãe dela, a Rainha, teria feito um acordo com os greys - aliens com coloração cinzenta - para que ela pudesse viver eternamente. O preço foi a vida da filha dela. Com a tecnologia extraterrestre, é possível manipular eventos mundiais sem que nós, os meros humanos, percebam.

Então eu comecei a fazer vídeos sobre os livros dele. As visualizações das minhas produções - amadoras demais, admito - se multiplicaram. Ganhei 200 mil escritos em poucos meses. Fui chamado até para dar entrevistas na televisão.

Então aconteceu.

Apesar de ter virado uma subcelebridade no tema ufologia na internet, o Youtube não monetizava meus vídeos. Como você sabe, estava com pouco dinheiro e tinha que procurar emprego. Tinha enviado currículo para seu escritório. Mas eu era soldador de portão. Sabe como é, tempos complicados, não consegui.

Cheguei em casa. Primeiro vi minha mulher e minha filha sentadas no sofá, as duas tinham chorado muito.

- O que aconteceu? - perguntei a elas.

Um deles apareceu. Era alien grey. Aparência horrenda. Bípede como o ser humano, mas o corpo lembrava um anfíbio cinzento. Horroroso, temível. Gelei. Passei mal.

- Sente-se, Luciano. - disse a coisa feia, com uma voz gutural.

Foi então que o outro saiu do banheiro.

- Estava dando uma olhada no seu vaso sanitário.

O outro começou a falar, que tinha quase a mesma voz do outro, mas menos rouca.

- Você tá falando demais. Sabe o que queremos dizer. Apenas apague tudo. Depois faça um vídeo dizendo que estava maluco e inventou tudo. Caso contrário…

Aquelas coisas nojentas tinham línguas imensas. Um deles, o que tinha saído do banheiro, começou a lamber várias partes do corpo de minha mulher e de minha filha, que entraram em desespero.

- EU APAGO TUDO! PAREM!

O alien parou.

- Agora não quero mais parar. Eu achei a pequena ainda mais deliciosa.

- Luciano, ele gostou da sua filha. Teremos que fazer um acordo.

- Por favor…

- Mas antes precisamos conversar sobre seu banheiro.

Fui até a porta do banheiro. O alien, que lambeu minha mulher e filha, apertou a descarga e o vaso fez um barulho forte.

- Luciano, seu vaso sanitário está com a linha de drenagem entupida, por isso o som de sucção. Troca essa porcaria. Fizemos um esforço para que os vasos dos humanos não fizessem muito barulho, mas mesmo assim faz, porque vocês não tomam cuidado. Agora o acordo será cumprido. Pode fazer.

O outro alien voltou a lamber minha filha, chegou a enfiar a língua dentro da calcinha dela. Ela começou a gritar e a chorar.

- Se não tirar os vídeos, o meu - como se diz no linguajar humano - parceiro vai devorar a sua filha, pedaço por pedaço, na sua frente.

Trêmulo, horrorizado, morrendo de medo. Nem consegui dizer nada.

- Agora estamos indo. Não se esqueça, Luciano.

- Ele deve estar se perguntando sobre aquele amigo dele, o Everton.

- Ah, aquele ali já é visto como maluco. Os livros dele não tinham muito alcance. Começaram a ter com os vídeos. Não precisamos nos preocupar.

Eles saíram pela porta da frente. Uma luz muito forte clareou tudo, nem parecia noite, por um instante. Depois um raio de luz subiu aos céus e desapareceu como se entrasse num portal.”

- Então, Luciano, é essa a justificativa que você me dá para explicar aquele vídeo com 500 mil visualizações, em que você diz que é Lelé da Cuca?

- Marcos, é tudo verdade.

- Luciano, sabe que um funcionário como você não pode ter um emprego no meu escritório de advocacia. Isso ia arruinar nossa imagem. A não ser que você apague aquele vídeo.

- Não posso, vão matar a minha filha.

- Sem chances, Luciano. Mas valeu a tentativa de se refugiar na audácia.

FIM