Sob a bruma vermelha

"Esse é o nosso mundo... O que é demais nunca é o bastante..."

Teatro dos vampiros – Legião Urbana

“Atrasada para o trabalho. De novo.

É impossível acordar no horário quando faço jornada dupla.

O movimento nas ruas já é grande. Gente apressada que nunca olha para trás ou para os lados. Às vezes, tenho-lhes piedade. Às vezes, os odeio. Na maior parte das vezes, nem os vejo. Hoje, por exemplo.

Não devia ter assistido àquela série de filmes do século passado. Torna-se difícil aceitar essa noite vermelha e opaca, essa Lua laranja de brilho leitoso. Bom Deus! Fez-me mal ver antigos estudiosos falando sobre um “aquecimento global” com rostos sérios e preocupados. Quanta ingenuidade! Será que não foram mesmo capazes de prever que ele era apenas o início de algo bem mais terrível, o resfriamento global? Antigamente, os gases estufa não deixavam o calor sair. Foi só uma questão de tempo até se formar essa maldita bruma, que não o deixa sequer entrar. Seremos extintos como os dinossauros. Não. Mais estupidamente que os dinossauros, já que a bruma vermelha é obra nossa, e só nossa.

Droga de semáforo. Não importa o quão informatizados eles sejam, sempre se abrem momentos antes de você ser capaz de atravessar.

Os carros hoje são bem diferentes dos carros que vi nos filmes, mas são igualmente barulhentos e desagradáveis. Odeio sua pressa. Odeio o rosto tenso e carregado dos motoristas. E odeio os jatos quentes de vapor que soltam em mim, enquanto o filho-sem-mãe do sinal não fecha.

Vermelho para veículos. Finalmente.

Como posso amar o vermelho do semáforo e odiar o vermelho do céu?

Quero o céu azul de nossos ancestrais! Quero as estrelas que eles podiam ver a olho nu! Quero andar nas ruas sem respirador! Quero me deitar numa praia de areia branca, sob um céu muito azul e sentir o calor do Sol na pele! Já há três gerações a Humanidade é prioritariamente noturna, já que a bruma vermelha não só barra a entrada de calor na Terra, como deixa as radiações nocivas passarem mais livremente.

Há quem diga que o manto amaldiçoado da atmosfera não é o único motivo para nossa progressiva mudança de hábito. Falam que uma mestiçagem maciça que vem ocorrendo no último século entre a raça humana ordinária e uma outra, minoritária e supersensível ao Sol, acelerou esse processo. Não sei que raça pode ser essa, mas não ouso dizer “absurdo”. Minha vida faz com que eu pouco me dê ao luxo de usar essa palavra.

...

Ah! Finalmente um ambiente aquecido e umidificado! Posso retirar os óculos protetores, o respirador, o chapéu e o sobretudo. Antes de pegar o elevador para o escritório, é melhor eu me ajeitar, no banheiro. Acho que vou cantar de cabelo verde-brilhante hoje. Espero ter trazido o pente certo.

Está cada vez mais difícil fazer a maquiagem esconder as olheiras, e mais difícil ainda manter nos lábios aquele sorriso jovial, sugerindo levemente certas promessas, que faz os adolescentes preferirem um show ao vivo a uma diversão caseira. Não faz tanto tempo que abandonei essa fase, mas me sinto tão mais velha que eles!

Tudo pronto. Vou desligar antes de subir. Não preciso daquela turba de gozadores me enchendo porque estou gravando um diário.

Essa criatura reclamona sai de cena e dá lugar à famosa e desejável Ley-Ley. Vidinha miserável!”

Ashley desligou o gravador e descolou do queixo o adesivo com o minúsculo microfone, guardando-o cuidadosamente em seu suporte. Enfiou tudo de volta na bolsa e entrou no elevador. Era hora de ganhar a noite... Não que cantar profissionalmente fosse rentável, mas ela precisava de um trabalho que mascarasse sua verdadeira fonte de renda. Esse servia.

Vigésimo terceiro. Vigésimo quarto. Vigésimo quinto.

A moça respirou bem fundo para aproveitar seu último momento de paz e individualidade da noite. Pousou a mão na maçaneta do malfadado 2513.

“Coragem, Ashley. É preciso coragem!”

Strix Van Allen
Enviado por Strix Van Allen em 24/11/2007
Código do texto: T749885
Classificação de conteúdo: seguro