Soldados Perdidos
Era impossível ver mais do que cinco metros além da cortina de areia que voava por todos os lados. Eram quatros soldados bem armados e caminhando cadenciadamente lado a lado em busca de seu objetivo. O coronel já os havia alertado para irem mais rápido, mas a tempestade de areia dificultava demais o avanço tático.
— Que inferno! — praguejou John. Soldado de origem americana que usava o rádio com frequência para tristeza de seus companheiros.
— É só areia — tentou acalmá-lo Jacques. Francês de natureza e terráqueo de coração, como gostava de falar com frequência, era o mais tranquilo de todos da unidade.
— Não dá pra ver nada — disse John com irritação.
Estavam caminhando fazia horas. As tempestades de areia no planeta Ioron eram frequentes e terrivelmente duradouras. Inofensivas, mas incomodavam os terráqueos que ali estavam. Nunca havia encontrado os locais frente a frente, mas havia rumores que se moviam pelas tempestades de areia como espectros, rumores estes que causavam calafrios nas tropas que eram mandadas para o sul da base militar.
O 22º batalhão era um desses grupos de soldados experientes que já haviam passado por muita coisa juntos. Naquela colônia, entretanto, eram chamados quando as coisas saiam do controle.
— Malditos novatos! — reclamou Kyle. Outro soldado americano. — Eles saem da base, se perdem e nós temos que sair para achar os desgraçados!
— É o nosso trabalho, Kyle — disse Jacques.
— Nosso trabalho é proteger a base, não ser babá de gente novata!
O som da areia contra o capacete se misturava com o som do rádio e abafava as vozes. As luzes das lanternas presas no ombro e na cabeça eram inúteis, já que refletiam na areia em movimento e distorciam ainda mais a visão de quem tentava ganhar terreno.
— Marcus? Está aí? — questionou John, procurando o companheiro alemão que estava fora do campo de visão.
— Estou alguns metros atrás de vocês. Pisei em um maldito buraco!
— Por quanto tempo mais vamos ficar andando nesse lugar, John?
— Até acharmos os soldados desaparecidos, Kyle. Essas são as ordens.
Houve silêncio no rádio por alguns instantes. Os quatro estavam descontentes com a missão, mas nem por isso fariam seu trabalho malfeito. Uma ordem era uma ordem, por mais que não concordassem com ela. O batalhão tinha sido dividido em pequenos grupos de quatro soldados cada e avançavam em leque em busca dos desaparecidos. Essa ideia foi do coronel Turkle e, mesmo todos indo contra, tiveram que acatar.
— Apertem o passo, homens — ordenou uma voz calejada pelo cigarro e anos de gritaria. — Não querem torrar quando o segundo sol aparecer.
No canal usado pelo grupo Kyle reclamava com os demais das ordens do coronel para acelerarem. Apesar dele mesmo ter medo do terrível segundo sol que derretia tudo que estivesse na superfície de Ioron quando subia aos céus.
A colônia estava no planeta há alguns meses e a extração do minério ia bem, mas as condições enfrentadas eram devastadoras. Mais de trinta pessoas já tinham morrido para que aprendessem tudo que era potencialmente letal naquela terra desolada. E ainda estavam aprendendo.
O som de disparos da metralhadora rompeu o ruído da areia e chamou a atenção de todos.
Um grito de dor no rádio colocou todos em posição de defesa com as armas em riste, aguardando o inimigo.
— Marcus! Marcus! — chamou John pelo rádio.
Silêncio.
— Pegaram ele! — constatou Kyle, dando disparos para trás em direção para onde Marcus deveria estar.
— Cessar fogo! — ordenou John.
Os três homens se aproximaram, ficando mais visíveis uns para os outros em meio a areia que voava entre eles. Todos apontando as armas para trás, esperando por algo terrível.
Foram longos segundos de espera até que John mandou que avançassem. Cautelosos e uníssonos os três se aproximavam da última posição de Marcus. Foram poucos metros, mas era como andar no escuro. Quando se aproximaram de um corpo caído tiveram a triste constatação que o capacete do soldado alemão estava ensanguentado e com um furo no vidro.
— Que merda, Kyle! Você atirou nele! — repreendeu-o John irritado.
— Não foi ele — disse Jacques que, de joelhos, analisava o corpo. — Alguma coisa abriu a barriga dele, vejam!
O corpo do soldado de fato estava em uma posição estranha, meio torcido. O tronco exibia um corte profundo e violento. Talvez o tiro tivesse atingido antes, ou depois, não importava. Marcus fora atacado por alguma criatura que eles desconheciam, alguma criatura que era capaz de abrir a barriga de um homem em um só golpe.
Não demorou muito, o corpo de Marcus foi sugado pelo chão, como se um buraco negro engolisse tudo a seu alcance. Os outros três, sem tempo para reagir, foram sugados pelo buraco junto ao corpo do companheiro. Caíram por bastante tempo, como se descessem por um tobogã de areia, fazendo curvas e descendo com velocidade até que seus corpos se chocaram com o chão duro de pedra.
Os três se levantaram com dificuldade. Doloridos e confusos, tentando se recuperar do baque, se postaram no meio que que parecia ser o interior de uma caverna. As luzes das armaduras que os protegiam da atmosfera letal do planeta eram a única fonte luminosa do buraco.
— Vocês estão bem? — perguntou John, pegando sua arma que caiu a alguns metros de onde estavam.
— Sim.
— Claro que não, eu fui sugado pela terra! — reclamou Kyle, que parecia estar bem, já que estava reclamando. — Onde estamos?
— Parece ser uma caverna. Com galerias e tuneis — constatou John observando o lugar onde estavam.
— Droga! Droga! Droga! — repetia desesperado o francês que levava as mãos ao capacete enlouquecidamente.
— O que foi?
Jacques tinha uma rachadura no vidro capacete. Seu rosto já apresentava a vermelhidão e o homem começava a engasgar, tentando puxar o ar que não existia. Não havia o que ser feito. John e Kyle só podiam assistir enquanto o francês engasgava até a morte. Não levou muito tempo, mas para quem estava assistindo ao homem sufocar pareceu uma eternidade de sofrimento.
— Maldito planeta!
— Vamos, Kyle. Temos que sair daqui.
John tentou contar o coronel pelo rádio, mas havia interferência. Estavam somente os dois, com corpos inertes em um lugar desconhecido. Mesmo sendo soldados experientes o medo era um sentimento presente, mas latente.
— Vamos logo — chamou Kyle, agitado.
— Não podemos deixá-los aqui.
— Não podemos levá-los com a gente! E se o que matou Marcus estiver por aí? Seremos alvos fáceis.
John sabia disso, mas estava relutante. Abandonar os companheiros não era de seu agrado.
— Vamos — insistiu Kyle, impaciente.
Os dois seguiram por um túnel, passando por duas áreas mais abertas, que bifurcavam e que davam ainda mais certeza aos dois de que estavam perdidos. Era tudo igual, mesmo tom de pedra vermelha que intercalava pigmentos mais claros e mais escuros. Diferente de quando estavam na superfície, avançavam rápido. As lanternas iluminavam bastante e o terreno era relativamente regular.
— O que é aquilo? — questionou John apontando algo que brotava do chão alguns metros de onde estavam.
— Parece ser um cabo.
— Um cabo? Que liga o que?
Os dois seguiram o cabeamento que seguia pelo chão, rente à parede. Logo um cabo virou dois e de dois viraram três. Cautelosos os dois soldados avançavam conforme haviam treinado tantas vezes, um fora da linha de tiro do outro. Os cabos levavam até uma grande gruta que exibia paredes de pedra e metal. Uma grande coluna central saia de um painel com símbolos estranhos e desconhecidos nos botões.
Havia luz e os dois desligaram suas lanternas. Estava vazio, não fossem os computadores e cabos espalhados por todo lado. Todos os fios eram levados até um corredor na direita, por onde os soldados seguiam, investigando o estranho lugar. Uma outra sala, essa ainda maior que a primeira, exibia um piso metálico e brilhante.
— Meu deus! — espantou-se Kyle. — Que diabos é isso?
Tinham encontrado os soldados desaparecidos. Vinte pessoas estavam penduradas no teto, presas pelos cabos que lhe penetravam os crânios. Outros fios pendiam de suas peles que pareciam sugar algo, dado o movimento pulsante que faziam. Os soldados estavam absurdamente magros e expressão de peixe morto. Mas bastava um olhar mais atento para constatar que ainda estavam vivos em sua maioria.
— O que é isso?
— Não faço ideia, mas aparentemente os desgraçados estão usando nossos soldados para alguma coisa.
— Se eu vir um desses malditos vou fazê-los pagar caro! — disse Kyle, irritado e engatilhando sua arma.
— Se os vir, ninguém nem sabe como eles são.
— Se não for humano vai levar bala!
— Gosto do seu entusiasmo, mas precisamos pensar o que vamos fazer com eles — disse John apontando para os soldados pendurados. — Como vamos tirá-los daí? Kyle? Kyle?
Quando se virou para ver por que o amigo não respondera viu uma lâmina negra atravessada no pescoço de Kyle, que engasgou antes de cair desfalecido no chão.
A lâmina que matou o companheiro era na verdade a mão de uma criatura grande e tenebrosa que se postava na sua frente, imóvel. Com quase dois metros e braços excessivamente longos a criatura o observava e ele a ela. Tinha quatro pernas que brotavam da cintura, arqueadas e próximas umas das outras, com pés que mais pariam mãos, com dedos longos e finos. A boca com dentes pontiagudos e protuberantes por onde um líquido amarelado escorria lhe davam a impressão de morte a cada segundo que respirava. Não tinham olhos, como se uma grande testa juntasse a boca com o resto da cabeça, que tinha um formato triangular partindo da altura do maxilar. Como se estivesse usando um chapéu de aba curvadas enfiado até o meio do rosto e fundido ao crânio. O fedor de enxofre e amônia era tão forte que nem o filtro do capacete foi capaz de amenizar o cheiro que causou náusea e tontura em John.
Tomando a iniciativa, o soldado ergueu a arma e disparou.
Não foi rápido o bastante.
Antes mesmo de se dar conta, estava gelado. A lâmina negra lhe perfurava a barriga, fazendo brotar o líquido rubro e lhe drenando a vida. Não tinha conseguido sequer acompanhar com os olhos o movimento da criatura, que se aproximou como um raio. O monstro se aproximou do capacete, baforando e fazendo o vidro embaçar. O corpo tremia, mas, tentando sua vingança, John ergueu a arma e apertou o gatilho.
A rajada de balas atingiu a face da criatura que simplesmente recuou, tirando a lâmina da barriga do homem. Era como se tivesse atirado em uma placa de metal. O som estridente e o ricochete, sem causar nenhum dano.
Caiu de joelhos já sem forças para sustentar o próprio peso.
— Estamos perdidos — disse olhando para a criatura que viu pela primeira e última vez.