Armadilha
Quando a vi logo percebi algo diferente, talvez fosse seu jeito de andar, cronometrado e calculado em cada passo, ou talvez fosse seu olhar, fixo demais, atento demais. Aproximei-me mais um pouco dela, e vi também que outros ao nosso redor faziam o mesmo, sinal de que ela, por mais que se esforçasse, não conseguiria esconder suas características humanas por muito mais tempo.
Mais perto eu tive a certeza: ela era humana!
Não esperava encontrar mais nenhum ser humano naquela região, quanto mais uma fêmea, fêmeas eram raras em todo o planeta, já fazia mais de cinco anos que eu não via uma, e tinha sido uma senhora já de idade avançada, bem diferente daquela que encontrava agora, essa era jovem demais, talvez não tivesse vinte anos, sua simples existência já era um mistério.
E para resolver de vez esse mistério tomei a frente antes que os outros o fizessem, me coloquei ao lado dela e logo puxei conversa:
- A paz das máquinas.
- A paz das máquinas – respondeu ela, e sua voz era tão perfeita que por um momento revi meu julgamento. Seria ela humana mesmo?
- De onde vem? – perguntei eu.
- Vim do nono berçário. E você? De onde vem?
- Do segundo berçário. – respondi.
Foi sutil, mas percebi em sua face um certo ar de espanto, o suficiente para denunciar sua condição humana.
- É um dos primeiros então? – ela perguntou.
- Sim, segundo berçário, segunda geração. A primeira totalmente humanoide, em todos os sentidos. Construído a imagem e semelhança de nossos criadores.
Depois de eu dizer isto o rosto dela adquiriu uma expressão de deboche, um quase sorriso.
- Acredita mesmo nisso? Nessa história de criadores?
Era óbvio que ela estava tentando me iludir, todas as máquinas mais recentes duvidavam da história de criadores humanos.
- Também acreditaria se tivesse visto um – falei.
- Ooh – agora o espanto em seu rosto foi legítimo – conheceu mesmo os seres humanos? E como eles eram?
- Tão perfeitos quanto você – eu não afirmei, acusei.
Ela ficou em silêncio por um momento, mas continuou a andar, e eu a seu lado. A nossa volta um pequeno, mas crescente grupo, se aproximava mais e mais, por mais que ela disfarçasse não conseguiria engana-los por muito mais tempo.
- Está insinuando algo? – ela ainda tentou disfarçar.
- Estou apenas dizendo que seu disfarce, por melhor que seja, não durará muito mais tempo. Não percebe a nossa volta? Há mais deles se aproximando.
- Deles? – disse ela – Não quer dizer “mais de nós”, ou “mais de vocês”?
- Não importa, o que importa é que logo a levarão, a não ser que venha comigo antes.
Ela mais uma vez pareceu parar para pensar, e veio com uma pergunta inesperada.
- Diga, quando tudo mudou? Quando eles passaram a ser a maioria?
Será que ela não sabia mesmo? Será que, criada para fingir ser uma coisa que não era, nunca contaram a ela o motivo da decadência de nossa espécie?
- Aconteceu devagar, um processo muito lento. Primeiro eles não se pareciam conosco, eram seres mecânicos com engrenagens e circuitos a mostra, mas ter aquelas criaturas cibernéticas por perto não agradava as pessoas, elas necessitavam de algo mais próximo, algo mais humano. Então criaram-se os primeiros robôs humanoides, os de segunda geração, quase tão perfeitos quanto os humanos. E eles substituíram os humanos em todos os trabalhos, no campo, nas indústrias, na guerra, nos serviços, aos humanos só sobrava a ociosidade, logo as taxas de reprodução despencaram, pois até nos serviços sexuais as máquinas eram mais requisitadas.
- E ninguém fez nada?
- Para quê? Qualquer mudança significava voltar a uma vida de trabalhos pesados. Mas a verdade é que chegou um ponto em que não se sabia se uma pessoa era humana ou robô, tamanha a semelhança, mas os robôs eram produzidos em fábricas, já os humanos nasciam, e também morriam, logo seu número começou a declinar, até que...
- Até que? – ela se empolgou com a história.
- Até que os robôs perceberam que os humanos eram um fardo pesado demais e decidiram adiantar o inadiável, a extinção da raça por completo, por isso todos os humanos, em todos os lugares, foram caçados.
- Mas parece que nem todos...
- Assim como os robôs se parecem com humanos, os humanos podem se parecer com robôs. Eu estou fazendo isto agora, você está tentando também, mas sem sucesso.
- Bem, mas há uma falha em seu raciocínio. – ela disse.
- É qual é?
- Eu não estou tentando ser um robô, eu sou um robô. E você, acaba de falhar em seu disfarce.
Depois de dizer isto ela apontou seu dedo para mim, e os outros a nossa volta, aqueles que eu pensava estarem seguindo-a, me agarraram.
- Dizem que os machos da sua espécie eram facilmente atraídos pelas fêmeas – ela falou – apenas usamos isto a nosso favor.
Surpreso e derrotado eu não resisti e fiz uma última pergunta:
- Já sabia de tudo não é? De toda a história que lhe contei.
- Sim, mas saiba que se escreveu agora o último capítulo. Com você, sua raça está totalmente extinta, para o bem desse planeta. Agora levem-no.
Fui arrastado como se fosse um mero saco de ração animal, eu deveria chorar, gritar, espernear, mas apenas ri, ri tão alto que desconcertava meus raptores.
- Do que ri tanto? – perguntou um deles – Será executado em breve, ou será que é tão irracional que não pode entender o significado disso?
- Sim, eu entendo – respondi – mas você não vê? Não, você não vê, e nunca verá.
Olhei para trás, minha algoz se virava, mas não antes de mostrar mais um pequeno sorriso para mim. Não, aquela não era uma máquina, era tão humana quando eu, e de algum modo se colocou numa posição de comando, o que significava que em algum lugar, de algum modo, os seres humanos tentavam uma última rebelião. E estavam tão bem disfarçados que a única forma de continuaram assim era eliminando os poucos que podiam identifica-los, ou seja, outros seres humanos como eu, seres humanos velhos e cansados, que não tinham como contribuir mais com a nova empreitada da humanidade.
E por isso eu ria, eu morreria, mas a humanidade, essa, ainda não.