Aquele Fim de Tarde

O vento sobrava agradável, o sol do fim da tarde emprestava a tudo um belo tom de dourado. As folhas das árvores farfalhavam num agradável e preguiçoso ruído. O parque não estava tão cheio, mas aqui e ali crianças corriam, cachorros brincavam com seus donos, casais namoravam e famílias inteiras aproveitavam as últimas horas do dia. Havia um playground onde minha pequena filha se divertia, sorridente, aproveitando sua infância e sua juventude, ao meu lado senti os braços de minha esposa envolvendo os meus e seu toque me despertou.

- Você está mais pensativo hoje, o que foi? - questionou Ana.

Olhei para os olhos dela, aqueles olhos pelos quais me apaixonei desde o primeiro momento que cruzaram os meus.

- Nada – respondi distante ao mesmo tempo em que levava as mãos aos seu rosto e afastava seus cabelos - só estou aproveitando o momento aqui com vocês duas.

- Papai! Papai! Olha pra mim – gritou nossa filha enquanto subia cada vez mais alto no balanço.

Olhei para ela e não pude evitar de sorrir. Quanta energia! Quanta vontade de subir mais alto.

- Olha para nossa filha – disse Ana - já viu alguém tão feliz assim?

Eu a apertei forte.

- Ela é feliz porque tem você na vida dela, sente-se segura.

- Ela tem a nós dois querido, nós dois proporcionamos segurança e amor pra ela.

Segurança? Amor? Como eu queria que ela estivesse certa. Oh Deus, como eu queria! Mas Ana não sabia, nossa filha não sabia. Mas como iriam saber? Na perspectiva dela o mundo se resumia aquele parque, se resumia aqueles momentos, a um eterno fim de tarde dourado. Para elas existiam apenas lembranças vagas de um passado a muito esquecido e aquele presente congelado no tempo.

- Que bom que você ficou conosco hoje querido, odiaria dizer pra ela que você não estaria aqui hoje. - disse aquilo e me abraçou ainda mais forte. - olha que lindo! - apontou ela.

Olhei para onde apontava, o Sol. Ele descia no horizonte, seu brilho dourado se tornando róseo, depois púrpura, morrendo aos poucos...

- Vou buscar nossa filha – disse eu - é hora de ir.

- Não podemos ficar só mais um pouco? A tarde está tão agradável.

- Não, não podemos – falei enquanto soltava os braços dela.

Me aproximei do balanço e segurei a pequena cadeira no ar.

- Ah papai! Está tão bom!

- Já chega minha princesa, é hora de ir.

Peguei-a no colo, ela ainda chateada por interromper sua diversão. Seguimos até sua mãe e a chamei para perto de mim.

- Querido – ela falou enquanto nos abraçava - você está muito diferente hoje, tão pensativo. O que foi?

- Nada meu amor – menti – apenas nos abrace.

E permanecemos ali os três abraçados. No horizonte o brilho do sol poente se apagava cada vez mais. Não ia demorar muito.

- Papai – disse minha filha – o sol tá voltando?

- O que é aquilo? - disse minha esposa.

- Por favor, não olhem, não olhem! - disse as apertando mais forte contra meu corpo.

- Meu amo... - Ana tentou dizer.

Mas já era tarde, a luz do novo sol nos envolveu e numa fração de segundo tudo que existia, todo o amor do mundo, todo o verde da Terra, todo riso das crianças, tudo que traria esperança, morreu.

Era hora de sair.

“Simulação encerrada” - disse a voz onipresente da máquina.

Retirei o capacete cheio de eletrodos da minha cabeça, mas continuei na cadeira de simulação. Levei as mãos ao rosto, gostaria de chorar, mas as lágrimas se foram a muito tempo.

Finalmente me levantei e fui até os casulos delas. No maior, o que restava do corpo da minha esposa jazia conectado a uma infinidade de tubos e fios, o menor eu não tinha coragem de olhar, não sobrou muito, e não estaria vivo por muito mais tempo.

- Relatório - pedi a máquina, e sua voz, vinda de todas as direções, preencheu o vazio.

“Última análise: o suporte de vida nessas condições não irá durar muito mais, em 48 horas teremos a falência do espécime mais jovem, em 72 horas do mais velho. Infelizmente não posso avaliar com exatidão o seu tempo de vida, mas não temos provisões para mais que sete dias. Terá que entrar em um casulo também, se quiser prolongar a sua existência.”

- Compreendo.

Olhei para os casulos, só naquele salão eram dezenas deles, pouquíssimos ainda com sinais vitais.

- Queria me juntar a elas uma última vez...

“Você tem mais uma sessão antes que a transmissão neural se deteriore, depois disso, as ondas cerebrais delas entrarão no estado vegetativo, o que vocês chamam de morte encefálica.”

Então era isso. Fui para cadeira, coloquei meu capacete novamente. Iria repetir aquele momento, o último momento do mundo antes das bombas, lançadas pela ganância do homem, caírem. O último momento delas, o último momento em que foram felizes, momento em que estive ausente e que agora tentava de maneira artificial aproveitar cada segundo.

Entrei.

O vento sobrava agradável, o sol do fim da tarde emprestava a tudo um belo tom de dourado. As folhas das arvores farfalhavam num agradável e preguiçoso ruído...

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 26/03/2022
Código do texto: T7481466
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