Emaranhamento quântico
- Quem é você? - Indaguei, apreensivo.
- Calma, não sou da SegInt - redarguiu o rapaz, sorrindo e levantando as mãos. - Me chamo Mait, e você deve ser Mairo.
- Então, você me conhece... - constatei desnecessariamente.
- O endereço que Ago lhe deu, fui eu quem mandou; é da lanchonete da esquina - prosseguiu ele, olhando em torno. - Vamos, melhor sair do meio da rua.
Acompanhei-o e logo verifiquei que a informação estava correta: a lanchonete - ou melhor, uma leiteria antiquada denominada "Piimajõed" - ficava no endereço fornecido por Ago Puhvel, o térreo de um edifício rosa desbotado de quatro andares. Fora a atendente atrás do balcão, não havia mais ninguém lá dentro.
- Gosta de kissell? - Indagou Mait.
- Sim, quem não gosta? - Redargui.
- Dois kissell, por favor - solicitou à atendente.
E para mim:
- Por minha conta.
Sentamo-nos, frente a frente.
- Você deve ter muitas perguntas a fazer, imagino - principiou Mait, apoiando os antebraços sobre a mesa.
- Você é meu irmão gêmeo? - Indaguei à queima-roupa.
Ele sorriu.
- Tecnicamente, não - replicou.
- Como assim? - Franzi a testa, intrigado.
- Eu sou um clone seu - disse Mait em voz baixa. - E, não se surpreenda, há muitos como eu por aí.
A conversa foi momentaneamente interrompida pela chegada da atendente com duas tigelas de kissell frio, contendo pedaços de morangos e maçãs.
- Rios de leite correndo num leito de kissell - comentou Mait, meio que de si para si, misturando os componentes na tigela com a colher.
- Que história é essa de que tenho vários clones andando por aí? - Sussurrei, também mexendo no conteúdo da minha tigela.
- Você foi o modelo, a partir do qual todos nós fomos criados - prosseguiu ele, começando a comer. - Antes de morrer, seus pais mandaram amostras genéticas suas para vários laboratórios de biotecnologia em mundos extrassolares.
- Meus pais morreram mesmo na explosão da fábrica, em Kuusirp?
- Sim. Não foi uma simulação, como ainda pensam alguns setores ligados à SegInt; eles realmente foram mortos por decisão do alto comando rebelde, uma vez cumprida a missão que lhes havia sido destinada. Era preciso desviar a atenção da nossa existência, e o governo acabou se convencendo de que você era filho único - e, portanto, inútil para os fins em que gostariam de lhe usar.
Senti um certo alívio em saber que meus pais não haviam me abandonado, muito menos cometido um ato terrorista para encobrir suas atividades; mas era trágico saber que tinham sido prontamente descartados tão logo sua existência passou a colocar em risco os objetivos da organização para a qual trabalhavam.
- Nunca ouvi falar de laboratórios de biotecnologia desenvolvendo clones - ponderei.
- Não aqui - redarguiu Mait. - Essa é uma tecnologia extrassolar, a qual o governo ainda não teve acesso. Quando tiver, poderá prescindir do uso de gêmeos idênticos para comunicação mais rápida do que a luz.
Era disso, então, que se tratava. Mesmo com astronaves capazes de vencer a barreira da luz dobrando o espaço-tempo, ainda não fora desenvolvido nenhum método de comunicação rápido o suficiente para manter o controle sobre as colônias extrassolares. O governo contornava o problema usando pares de gêmeos idênticos submetidos a um processo de emaranhamento quântico que lhes permitia manter contato instantâneo, ainda que separados por todo o Universo.
Comunicação, como bem o sabíamos eu e meu clone, era poder.
- [Continua]
- [03-03-2022]