Terra de Ninguém
Imagine que você faz parte duma experiência de viagem no tempo, o voluntário escolhido entre centenas de candidatos. O destino é o futuro, final do século XXI, ano 2099.
Você está nervoso, tamanha responsabilidade a suas costas. Treina durante meses, aprendendo a operar os equipamentos do módulo temporal, tendo sempre em mente que não se deve alterar nada no futuro.
“O tempo é um plano muito instável”, eles lhe dizem, “qualquer alteração das partes pode significar grandes revoluções no todo”. Ninguém sabe quais as conseqüências da viagem, por isto, sua missão é ainda mais aterradora. Nem todos estão prontos para cruzarem o limiar do desconhecido.
A data do lançamento é agendada, seu coração palpita de emoção, os dias que se seguem são repletos de ansiedade, você vira alvo da imprensa, entrevistas e fotógrafos.
Você veste o macacão e adentra o módulo, aciona os mecanismos, a ordem de lançamento é dada, o portal de luz, já descrito pelos cientistas, se abre e o módulo é arremessado para dentro dele. Se você já voou num avião durante uma turbulência, então saberá qual é a sensação de se viajar no tempo — uma turbulência sem serviço de bordo. Seu corpo sacoleja, quase se soltando da poltrona, você vomita duas ou três vezes durante a viagem, resultado do medo e dos chacoalhões. Por fim, tudo se acalma, as luzes da cabine se apagam, a porta se abre.
Você está no futuro!
A primeira visão sua é uma mescla de deslumbramento e decepção. O mundo não mudou muito, a arquitetura é quase a mesma, não há carros voando, apenas automóveis nas ruas, ainda existem árvores, ainda se pode respirar. Porém, algo está errado, apesar de todas as estruturas estarem intactas, não há uma única pessoa nas ruas. Tudo permanece estático, como se o tempo houvesse parado, como se a população houvesse sido varrida do mapa.
Você vaga pelas avenidas aleatoriamente, as portas das lojas estão abertas, os carros estão parados nos cruzamentos, os semáforos prosseguem em silêncio alternando vermelho, verde e amarelo. Numa banca de jornal, você lê a notícia:
“Eles chegaram!”
E, numa foto colorida, centenas de luzes surgindo num céu crepuscular. O jornal foi publicado uns cinco ou seis dias antes de sua chegada neste tempo. Por menos de uma semana, você perdeu o que pode ter sido o maior, e possivelmente o último, grande evento da Humanidade.
Você se interroga sobre o que ocorreu neste período: houve uma guerra? Mas a tranqüilidade do cenário inviabiliza esta hipótese. O que quer que tenha ocorrido, foi de maneira inadvertida, inesperada e súbita. Os humanos haviam desaparecido, não fugiram ou foram dizimados, apenas desapareceram.
Sua viagem parece ter sido em vão; sua missão fracassara. Mas você não desiste, perambula pela cidade, numa outra tentativa para encontrar vida e obter informações sobre esta civilização.
As sombras dos edifícios se alongam, anoitece. Você ouve sussurros e passos, uma ponta de esperança surge em sua mente, talvez sejam os habitantes desta cidade-fantasma. Mas toda vez que você corre em direção aos sons, adentrando uma casa ou loja, nada encontra, ninguém, somente o silêncio.
O sol se esconde no poente, as luzes dos postes não se acendem, a única claridade para você é a da lua cheia. Os sussurros e passos aumentam, circundam-no, contornam-no, estão à sua espreita; você está cercado e não tem idéia do que tais seres querem ou pretendem.
Você corre, corre até suas forças o abandonarem, mas eles estão atrás de você, cuidando-no. Sabendo-se encurralado, você abre a tampa do esgoto e se embrenha nas galerias subterrâneas, por entre as artérias da cidade morta. Porém, os passos continuam no seu encalço, passos, sussurros e, agora, rosnados e grunhidos. Você faz curvas e contornos, perde-se nas trevas dos canais, ora parece que seus perseguidores estão na sua cola, ora parece que eles o emboscam na dianteira.
Pela primeira vez, você se lembra da pistola no coldre. Mal sabe manejá-la, era o pior na classe de tiro; escolheram-no por sua inteligência e não por sua habilidade em combate, certamente, nenhum dos cientistas contava com o mundo que você encontrou. No pente há nove balas. Durante o treinamento, a instrução era enigmática: “Em caso de combate, oito disparos são para os inimigos, o nono será para você”. Mas ninguém esperava esta situação.
De relance, você vislumbra uma das criaturas, toda negra, braços (quatro, até onde conseguiu contá-los) compridos e tentaculares, olhos dum vermelho cintilante.
Você adentra uma câmara, a água suja bate-lhe na altura do peito, sua respiração é ofegante, suas mãos tremem. Você sabe que morrerá, tais criaturas devem ser inclementes, pois, pelo que tudo indica, devastaram toda uma civilização. Seus pensamentos vagam, lembra-se de sua esposa, de seus pais, do mundo e da época no qual viveu, pensa na missão que lhe foi designada. Naquele instante, há cem anos no passado, um grupo enorme de pesquisadores e cientistas aguarda seu retorno, à espera das informações e dados que você trará. Num derradeiro gesto de altruísmo, você armazena sua história num gravador de voz. Foi tomado por aquela sensação humana de sobreviver a sua própria morte, de que sua mensagem prevaleça. Você não sabe se um dia alguém encontrará seu registro, mas o faz mesmo assim.
Agora é hora de encerrar a gravação, os passos estão pertos, a pistola está destravada, os cientistas continuarão esperando seu retorno, sua mulher não terá um corpo para chorar.
E não se esqueça: o nono disparo é para você.