Distopia
DISTOPIA
Miguel Carqueija
Acordei um pouco tarde desta vez, pois andava trabalhando muito e com o sono atrasado. Nem ouvia ruído nas gavetas adjacentes. Acendi a luz e constatei no relógio do teto que precisava me apressar para chegar no horário ao trabalho. Ah, vida escrava!
Tratei de apertar o botão para ejetar a gaveta. Sem isso, é claro, não poderia nem me sentar.
Nada aconteceu.
Tornei a acionar o botão. Uma, duas, três, quatro vezes. Nada.
“Oh, não! Já é a quinta vez este ano!”
O mecanismo de abertura já estava muito gasto e a manutenção, como de hábito, atrasada. São milhões de gavetas na cidade. Ah, quisera eu ter dinheiro para poder pagar o aluguel de um armário, onde a gente entra e sai com uma chave e dispõe de mais espaço. Mas se você está dentro de uma gaveta, não pode empurrá-la para fora de seu escaninho. Quando o dispositivo de abertura falha só quem pode ejetar a gaveta é quem estiver do lado de fora, puxando a alça.
E a minha bexiga estava cheia.
Apavorado, comecei a bater na madeira. Mas a hospedaria era muito grande, não era fácil ter gente perto para escutar. Os vizinhos de gaveta, pela hora, com certeza já tinham saído para trabalhar. Então comecei a berrar com quanta força tinha:
— Socorro! Me tira daqui!!!!!
Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2021.
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