O Dragão e o Robô (2022)
O Dragão e o Robô
Andróides esportivos existiam em diversos modelos e potências. Velocidade, defesa, ataque, tudo configurável. Um parceiro de sparring sempre disposto.
O RA-01, o mais moderno modelo do mercado, era criticado pela potência exagerada. Se retiradas as limitações de software, era duas vezes mais forte e ágil que o maior dos atletas e centenas de vezes mais resistente a golpes. E era um RA 01 “destravado” que Weimin Lao iria enfrentar.
Equipes de resgate estavam a postos mas, por exigência do próprio Weimin Lao, o combate iria acontecer numa ampla cela fechada de vidro à prova de balas. Abrir as fechaduras da câmara ou romper o vidro levaria muito tempo.
Naquele estádio de futebol em Pequim, China, estavam reunidos repórteres, autoridades chinesas, místicos, cientistas, técnicos, discípulos de Lao e muitos mais.
A relutante organizadora do evento era a Fundação Educacional James Randi, a famosa instituição cética que desafiava quem alegasse demonstrar algum poder ou capacidade além de qualquer explicação possível à ciência convencional, inclusive oferecendo um prêmio.
Richard Jones, físico, representante da instituição, mesmo com todas as salvaguardas legais assinadas sem reservas por Lao e pelo governo chinês, não podia deixar de ficar apreensivo com a “luta”. Mas se a fundação se recusasse, Lao e os malucos do “Partido” realizariam o desafio de qualquer jeito.
Resmungava consigo o absurdo da situação.
-Aquele cara é louco! Meu Deus! Vai cometer suicídio para o mundo todo ver! Olha só! Está meditando em posição de flor de lótus a um tempão! O quê? Duas horas?
Ele olhou para os consoles de monitoramento do RA 01 que mostrava o gráfico de desempenho parado, mas ficaria louco quando o robô começasse a se movimentar, para então parar, depois de quebrar os ossos de Lao. Vários alertas indicavam que o equipamento não era seguro e, pior, que o console não poderia controlar o androide: Mais uma exigência do senhor Weimin Lao.
-Suicídio! Suicídio!- Lamentou.
Richard lembrava de quando tudo começou. Lao chegou com dois discípulos, um deles como intérprete. Chegou sem alarde e pediu uma oportunidade de mostrar ao mundo o suposto poder do “Ki”. Era um mestre Kung Fu, de família chinesa abastada, mas havia largado os privilégios praticar a arte marcial ancestral.
Não havia dúvidas: Lao era incrível e parecia capaz de fazer qualquer coisa em matéria de combate, agilidade, força, quebra de objetos. Quem viu espalhou a notícia, e a mídia anunciava bombástica um possível vitorioso do desafio.
O senhor Jonhson Miller, presidente, após os rigorosos experimentos, deu o parecer.
-De fato, senhor Weimin Lao - Dizia. O chinês ouvia a tradução para o mandarim com atenção e humildade.- O senhor é o mais incrível artista marcial que já se teve notícia. Suas habilidades e técnicas parecem impossíveis para nós, pessoas comuns. Mas o senhor deve convir que provou apenas que o corpo humano é mais passível de desenvolvimento físico do que costumamos pensar…
Várias explicações sobre exames, critérios, avaliações e testes se seguiram. Lao permanecia, inabalável. Admiradores do tigre chinês tentavam contestar.
-Por fim, lamento informar que o senhor não atingiu as exigências necessárias para que o prêmio e a vitória do desafio lhe sejam entregues. Suas habilidades são frutos de uma grande disciplina, dedicação e trabalho duro. Mas não são sobrenaturais. Em nada.
Weimin Lao disse algo em mandarim. Seu discípulo intérprete deu um suspiro.
-Mestre Lao diz: “Senhor Miller, não discordo de suas inteligentes colocações. Por mais que eu me esforçasse, não fui capaz de demonstrar o que eu vim aqui demonstrar. Se me permite, quero fazer uma proposta.”
O discípulo se mostrava desconcertado. O olhar firme do mestre foi o único motivo para que ele continuasse a tradução. Lao dizia que precisava entrar em um estado de frenesi. Estar diante da morte, um duelo mortal com um adversário superior.
Adversário superior? A você?- Disse o senhor Johnson Miller.- Onde poderíamos conseguir um?
-“Um robô de treinamento”, o mestre diz. “Totalmente livre de limitações”. - Disse o discípulo, se esforçando para manter a postura.- Diz que o modelo RA-01 seria perfeito.
No grande telão usado para transmitir os lances e replays de jogos de futebol, se via a cena do interior da cela, com a contagem na parte superior: 00:08:54. A agitação que reinara nas arquibancadas dava lugar a um tenso murmúrio.
O esbelto e poderoso corpo de Weimin Lao permanecia imóvel, em inabalável meditação desde duas horas antes, já trancado com seu adversário.
O RA 01, que também permanecia imóvel, mas de pé. Seu cérebro magnetrônico alheio à importância daquele confronto público entre o ceticismo e materialismo contra o misticismo e a espiritualidade, apenas executava a contagem regressiva.
00:03:02. Lao se levantou e começou a se aquecer. O vigor de seus movimentos elásticos e possantes, arrancou toda a dúvida da multidão e um grande ruído de gritos, aplausos e palavras de incentivo se seguiram.
00:00:30. A multidão ficou tensa ao perceber que faltava meio minuto para o combate começar.
00:00:00. O Timer desapareceu. O robô fixou seus olhos mecânicos em Lao e se aproximou em uma corrida lenta até vencer metade da distância entre os dois. Só então manifestou o poder que os fabricantes lhe haviam conferido
Com uma arrancada que danificou o tatame, o robô desferiu um salto giratório na altura da cintura de Lao, que permanecia ereto apenas com os joelhos discretamente flexionados. Parecia impossível se abaixar ou recuar a tempo. Com uma agilidade surreal, Lao saltou executando uma pirueta, fechando as pernas e orientando o corpo na horizontal, acima do chute do robô e com os dois pés à altura da cabeça..
A face artificial atingiu os pés rijos de Lao a mais de setenta quilômetros por hora. O artista marcial foi arremessado longe mas absorveu a queda rolando, se pondo de pé velozmente. O robô rodopiou e sofreu um impacto brutal contra o vidro blindado, produzindo um som assustador ouvido até da arquibancada.
O console de controle sinalizava danos, mas os circuitos magnéticos podiam criar um novo arranjo em frações de segundo, “contornando” as avarias. O corpo do robô sofrera uma considerável perda de calibração, mas isso também foi quase imediatamente compensado pela auto-reprogramação motora. O RA-01 ainda tinha 98,9% de capacidade combativa, e uma nova manobra de defesa devidamente registrada em seus bancos de dados.
Desta vez Lao não manteve uma postura aparentemente descuidada de antes, assumindo uma pose de guarda muito eficiente. O novo ataque do robô não foi uma nova carga, mas uma sequência de golpes de velocidade e força monstruosas. O artista marcial absorvia os impactos com as pernas e braços, mesmo assim seu corpo era sacudido. O RA-01 o encurralava. A multidão se desesperava.
Lao também golpeava. Conectava um contra-ataque veloz a cada 3 ou 4 ataques recebidos. O senhor Johnson Miller e Richard acompanhavam o monitor do console.
-Ele não vai conseguir. -Disse o senhor Johnson Miller - O andróide sequer se preocupa com defesa. Já avaliou que a força física dele é insuficiente...- De fato, cada impacto de soco registrado tinha sido avaliado como “negligenciável”- Lao vai se cansar, e então…
Foi quando Weimin Lao efetuou mais uma surpreendente manobra. Inclinou-se para trás no preciso momento em que o RA-01 ia socar seu rosto. A análise fria dos algoritmos de combate no cérebro magnetrônico do robô decidiram por prolongar o golpe avançando com o pé direito alguns centímetros, para manter o equilíbrio. Justamente o que Lao esperava, e por isso o pé direito do robô encontrou o de Lao bloqueando seu avanço.
Aproveitando-se do desequilíbrio momentâneo da máquina, Lao Agarrou seu braço direito e puxou com uma força que o projetou num giro rápido para as costas do robô que se viu impossibilitado de golpear. Com um assustador “kiai” aplicou dois golpes simultâneos com as palmas das mãos atrás e na lateral da cabeça do adversário, então o console alarmou “Falha crítica de hardware!”
Os técnicos ficaram surpresos mas, como físico, Richard percebeu que Lao havia, de alguma forma, golpeado de forma que as ondas de choque dos impactos dos dois golpes se somassem justamente na região dos circuitos magnetrônicos. Era fisicamente possível, mas como um ser humano conseguiria tal façanha sem nenhum equipamento e em plena luta pela vida?
A máquina ficou momentaneamente estendido no chão, enquanto o console exibia o progresso da rotina de contorno de erros, tempo suficiente para que Lao saltasse sobre ele com os dois pés, rasgando o tatame e cravando sua cabeça no gramado.
Com 74,8% de capacidade combativa o RA-01 se levantou num átimo, com a cabeça levemente desalinhada sobre o pescoço. Agora duas novas diretrizes regiam seus ataques: A velocidade do alvo foi reavaliada pela segunda vez na luta, e seus golpes diretos foram reclassificados como “potencialmente destrutivos”.
O robô estava cauteloso. Atacava e se defendia. Não havia mais espaço para Lao, que até então contava com a valiosa vantagem de ser sub-avaliado pelo adversário.
Os braços de Lao ardiam pelo esforço. Hematomas brotavam de sua pele. Era só uma questão de tempo e... Seu braço esquerdo foi quebrado! Lao fez uma careta de dor. Sua guarda rachou e um soco do robô quebrou a clavícula esquerda.
Quando os espectadores viram Lao sendo arremessado para trás, por pouco não atingindo o vidro, nada pôde deter o caos na multidão. Pessoas invadiam o campo, enquanto homens munidos de ferramentas corriam até a porta. Richard gritava desesperado. O senhor Johnson Miller fechou os olhos e cobriu o rosto com a mão.
Porém o algoritmo de combate do robô optou por não finalizar de imediato. Percebia a falência fatal do desempenho do alvo. Considerou a capacidade de Lao em surpreende-lo e avaliou os dados. Simples: Estratégia cautelosa. Ou, para ele, a solução de valor mais conveniente na equação daquele problema de otimização.
Lao fez um jogo de pernas e ficou de pé sem auxílio das mãos. Segurava com a mão direita o seu braço esquerdo pendendo do ombro arriado.
Ainda com uma base obstinadamente firme, Lao circulava evitando a aproximação do robô. Seu ombro estava inchado. Ele se sentia mal. Hemorragia interna… Só lhe restavam poucos instantes, mas ele preferiria morrer esmagado pelas mãos mecânicas que colapsar ali mesmo.
Numa inimaginável explosão de velocidade, Lao se aproximou do robô já com uma visão clara da reação que se seguiria. Subitamente se sentiu desconcertado. Atingiu o alvo com um chute frontal apenas com a intenção de parar seu próprio movimento.
O RA-01 deu três passos para trás para manter o equilíbrio e assumiu novamente a postura em que estivera antes do início da luta.
Confuso, Lao olhou em volta pela primeira vez. Viu o desespero das pessoas, inclusive alguns discípulos, o som das ferramentas cortando as trancas. Podia ouvir ecoar um discurso em chinês falando do “grande exemplo de tenacidade para o povo chinês”.
Vergonha. Lao sentia-se em grande vexame. “Sou um tolo” Pensava. “Arrogante.”
Olhou para onde estavam Richard e Miller, com lágrimas nos olhos e expressões de alívio. Ao lado do console, um chinês velho de terno, feições severas, parecia parabenizar os técnicos. Não era para ser assim…
Julgara-se pronto. Pensara que faria a cultura espiritual voltar ao mundo. Agora, após a sua trágica derrota, as tradições ancestrais seriam zombadas pelos ignorantes!
Lao olhou para o RA-01. Aquela máquina já não importava tanto. Toda aquela agitação à sua volta, as providências pragmáticas… Toda a situação era a negação de tudo que ele acreditava: Que o ser humano não era frágil, não era um animalzinho assutado, mas participante da Natureza Divina, e por isso tudo podia superar. Apenas estávamos em uma ilusão, nas garras de Maia. Ele não queria destruir nada, queria libertar seus irmãos. Lao teve que enfrentar suas dúvidas, conflitos, em seus dias de treino. Buscou o conhecimento, meditação. Caminhos internos para a verdadeira natureza humana... “Cada um de nós é um deus...” As palavras de Buda ardiam em seu jovem peito. Foi por elas que ele perseverou contra os vícios da vida mundana e…VENCEU!!!
Um “kiai” retumbante foi ouvido assim que a porta fora finalmente aberta. Um forte impacto e os socorristas instintivamente se protegeram, apesar dos estilhaços terem atingido a parede oposta. Se fez um silêncio improvável em uma aglomeração daquele tamanho, enquanto o telão exibia o robô caído, partido em dois, com o Dragão de pé, ferido, mas firme. Imponente como se envolto por um halo de fogo.
Obs: Este texto é uma reescrita do meu texto mais antigo neste site, feita para se enquadrar nos critérios de uma coletânea de contos de ficção científica. Como resultado, o conto ficou mais curto, enxuto e, creio, superior ao original. O final acabou ficando diferente e talvez melhor para talvez a maioria dos leitores.