Num dia qualquer do mês de Dezembro de 1983, na Praça Marechal Rondon, Centro Antigo de Porto Velho, Capital de Rondônia. Um calouro da UNIR-Universidade Federal de Rondônia, com uma bandeira do Brasil amarrada à guisa de capa, aguardava impaciente na fila em frente ao orelhão. Um gordo falava alto e gesticulava com o dedo indicador para o telefone e gritava:
-Pois você largue a porra desse telefone e vá chamá-lo, AGORA! Vou ficar esperando na linha.
Caleb, o calouro da UNIR, irritado ao extremo, contou pela décima vez, a quantidade de pessoas que esperavam a vez na fila. “Puta-que-os-pariu! Oito… Ainda faltam oito! A parada já vai começar e a Glorinha não chega... Também, deve ter tomado todas ontem, e deve 'tá dormindo até agora!"
Sem ter o que fazer, olhou esperançoso para os outros orelhões espalhados pela praça. As filas dobravam na esquina. Olhou para o orelhão em frente ao prédio do Correio, e mordeu o lábio com força. Tinha pelo menos umas quinze pessoas esperando.
Olhou para a sua fila. “Opa! Dois desistiram… E o sacana do gordo praguejando e esperando!”
Um moleque, montado numa bicicleta estacionou perto de uma senhora magricela e cabelo desgrenhado, cochichou alguma coisa, a velha assentiu e saiu da fila.
“Menos um!”
De repente, o gordo começou a xingar e bater o telefone no aparelho do orelhão.
“Será que esse filho-da-puta vai quebrar o aparelho? Era só o que faltava!”
Finalmente o gordo deixou o telefone balançando como se fosse um pêndulo e saiu praguejando em direção a Avenida Rogério Weber.
O calor amazônico, sufocante e abrasador das onze da manhã, foi amenizado por uma ventania vinda do Rio Madeira. Caleb olhou apreensivo ao longo da Avenida Sete de Setembro em direção ao rio; e o dia que estava claro com céu límpido e azul, começou a ficar cor cinza escuro. A ventania aumentando e o dia virando noite como se uma cortina negra começasse a se estender de Norte a Sul, de Leste a Oeste.
Porto Velho, no tempo das águas, que se estendia de novembro a abril, era assim. O dia estava claro e límpido com o calor de fritar ovo no asfalto. De repente… Do nada, começava uma ventania, o céu escurecia e o dia virava noite; e sem ninguém esperar, o vento parava e a abóbada celeste era cortada de uma ponta a outra por uma fileira de raios. E era aí, que o nativo, acostumado com o fenômeno, contava: “E é um, e é dois… “ - A contagem nem chegava aos três segundos, e o pipoco do trovão ecoava aterrorador, fazendo o chão tremer sob os pés. As andorinhas, pombos e pardais se alvoroçavam, assustados! Muitos forasteiros faziam o Sinal da Cruz e rezavam o Credo.
Invariavelmente, depois de um raio seguido do trovão ensurdecedor, e dependendo da contagem, um beradeiro de passagem pela cidade, preocupado, segurava o patuá de Olho-de-Boto, conjurava uma proteção e murmurava:
“Eééǵua. macho! T'esconjuro! Esse caiu perto!”
Se a contagem fosse superior aos cinco segundos, era indicativo que o raio tinha caído longe… Sem perigo!
Sob o céu carregado de negro, finalmente chegou a vez do Caleb. Colocou as fichas, e apressado, discou o número. Nesse momento, outro raio cortou o céu e o trovão não esperou nem dois segundos para fazer o chão tremer. Uma faísca enorme brilhou na antena de para-raios no Prédio do Relógio, antigo Centro Administrativo da lendária EFMM-Estrada de Ferro Madeira Mamoré, a cerca de quatrocentos metros de distância; Caleb sentiu uma leve corrente elétrica percorrer o seu corpo, seguido de um zumbido. E por um centésimo de milésimo de segundo, sentiu como se estivesse flutuando… Como se estivesse sendo abduzido. E aí, tudo voltou ao normal… Aparentemente!
Alguém com voz feminina atendeu o chamado do telefone.
-Pois não! Quem é?
-Glorinha…?!?!?
-Desculpe! Aqui quem fala é Aninha… Você se enganou, meu caro!
O sinal de fim da transmissão ecoou intermitente. Novo raio caiu, outrp trovão ecoou, e desta vez uma fagulha de fogo subiu do para-raios do predio dos Correios. Caled sentiu-se flutuar.
Balançou a cabeça para retabelecer a consciência momentaneamente perdida, pegou mais algumas fichas na capanga e discou apressado, de novo. Esperou uma, duas, três quatro chamadas… Quando ia desligar, a voz feminina atendeu novamente com uma ponta de irritação:
-Cara, já falei que você está discando errado? Dá licença, tá!
-Espera! Por favor, não desligue… Tenho certeza que disquei o número certo! Você conhece a Glorinha?
-Conheço! Mas como sempre, ela está atrasada e a passeata já vai sair… No caminho eu ligo para ela. Você quer deixar recado?
-Passeata? Passeata onde? De onde você está falando?
-Ué? Aqui da praça! Onde mais eu estaria?
-Praça? Que praça?
-Da Praça Marechal Rondon, oras! De onde mais você acha que vai sair a passeata de protesto contra o Passaporte Vacinal, cara?
-Passaporte? Mas que porra de passaporte é esse? Eu também estou na Praça Mal. Rondon, a moçada ainda está se reunindo, e a passeata é para exigir as Diretas Já. Que droga de Passaporte Vacinal você está falando?
-Passaporte Vacinal, cara! O ditador do Governador em conluio com os “deuses” do STF, está exigindo que o povo ande com um passaporte com o registro das vacinas contra o COVID-19… Peraê! Você está em qual cidade, cara? Em que planeta você vive em que nunca se ouviu falar em Passaporte Vacinal?
-Garota, você está louca, é? Que tipo de erva você fumou? Eu também estou na praça, em frente ao Prédio do Correio, falando no orelhão da esquina e não estou vendo nenhuma garota falando do orelhão, nem na calçada do Correio e nem no orelhão em frente a loja de calçados…
-Peraê… Orelhão? Que orelhão, cara? Ficou louco? E eu é que estou queimando sativa… Cara, depois do celular, ninguém usa mais orelhão, sabia? Garoto, a sua erva é boa pra karáy, sabia? E que história é essa de Diretas Já? Garoto, tu dormiste no século passado e acordou agora, foi? Cacete! A tua erva é trangênica, é?
-Celular? Que porra é essa, garota? Isso aqui é vida real, menina! Não é a revistinha dos Jetsons, não! E esse tal de celular já ouvi falar… Mas foi no cinema, no filme do 007. E outra, dá para explicar o que está acontecendo, dá?
-Peraê! Que barulhinho é esse?
-Fica fria, menina! É o orelhão pedindo mais fichas… Não desligue e fique na linha, tá?
Caleb vasculhou a capanga, pegou várias fichas e colocou algumas no aparelho. As pessoas que esperavam na fila em frente ao orelhão em que o chato da vez, confusamente, falava e gesticulava, numa pantomina parecida com a do gordo, começaram a ficar impacientes com a demora, e os primeiros protestos iniciaram-se. De início, comedidos, mas à medida que o tempo passava, os ânimos foram se exaltando a ponto de alguns ameaçarem expulsá-lo do orelhão. Caleb foi salvo da iminente fúria do pessoal da fila, pelas primeiras gotas da chuva torrencial que se anunciara minutos antes e que caía torrencialmente sobre o Rio Madeira e começava a avançar furiosamente pela Avenida Sete de Setembro em direção à praça.
Como num passe de mágica, a fila se esvaiu, a praça ficou deserta e Caleb se encolheu como pode procurando abrigo sob a concha do orelhão, momentaneamente esquecido que o telefone continuava grudado em sua orelha, e alguém do outro lado da linha o chamava insistentemente.
-Alô… Alô… Alô! E aí, cara, ficou mudo? Vou desligar, viu? Tenho mais o que fazer!
-Espera! Espera aí, pô! É que eu estava procurando fichas para municiar o orelhão, demorei, e a turma que estava esperando na fila, ficou “p” da vida comigo. Mas aí, começou a cair o maior toró e os caras deram no pé! Tô de boa agora… Tô sozinho, ok? Podemos falar com mais tranquilidade… Diz aí! Que história é essa de celular e Passaporte Vacinal que nunca ouvi falar?
-Celular, garoto! Puxa vida! É cada maluco que me aparece… Celular é um aparelho portátil que todo mundo na Terra carrega consigo, e vive vidrado, olhando para ele como se fosse um zumbi lobotomizado, entendeu?
-”PN”, garota! Não entendi “lhufas” do que você falou…
-E nem eu estou entendendo nada da tua resposta, garoto! O que é “PN” e “lhufas”, menino? Que linguagem retrô é essa, garoto?
-Meeu Deus! Em que século você vive, garota? “PN’ significa “porra nenhuma”, e “lhufas”, é o mesmo que nada! Áááfe Maria…
-Garoto, saiba que eu vivo muito bem no ano de 2.021, do Século XXI, sabia? Embora seja um ano complicado por causa da Pandemia do COVID-19. Saco…!!!
-O quêêêê…??? Ano dois mil e vinte e um, do século vinte e ummmm…?!?!?!? Tudo “vinte e um”??? ‘Tá me sarrando, num ‘tá não?
-Que sá… sá… o quê, garoto? ‘Tá me chamando de maluca, é? Saiba que estou bem lúcida e que estamos no mês de Dezembro do Ano do Nosso Senhor de 2.021. E está um Sol de tremer asfalto. Está bom pra você, ou quer mais alguma informação?
-Aaaahhh tá! Como que está sol? Se está caindo o maior toró aqui no Centro, na praça! E que história é essa, garota, de Século XXI? Se estamos em pleno Século XX, no ano de 1983?
-Século vinte? Ano de mil novecentos e oitenta e três? Meeeeu Deus… Deixaram o telefone da Ala Psiquiátrica do Hospital de Base sem vigilância, e um maluco danou fazer ligação a torto e a direito! Que falta de responsabilidade desse pessoal… Meeeu Deus!
-Que ala psiquiátrica que nada, garota! O maluco aqui, quer dizer, a maluca aqui é você!!! Vamos fazer o seguinte…
Nesse momento, Caleb foi interrompido pelo ribombar de um trovão. O chão tremeu sob seus pés, e a concha do orelhão oscilou em razão da onda de choque e da ventania que soprava do Rio Madeira em direção à praça.
-Minha Mãe do Cééééu!!!! Que explosão foi essa, garoto? Está tendo uma guerra aí, é?
-Foi nada, não… Foi só um trovão! Mas como eu estava dizendo, vamos fazer o seguinte! A gente se acalma e tenta entender o que está acontecendo… Sem tirar sarro um do outro, ok?
-Ok! Então vamos lá… Eu primeiro! Que história é essa de orelhão, de século vinte, de ano mil novecentos e oitenta e três, e que chuva é essa que está caindo? Se nós estamos no século vinte e um, o ano é dois mil e vinte e um, e o calor que o Sol está fazendo dá para fritar ovo no asfalto?
-Garota, eu não sei o que está acontecendo. Mas que tem alguma coisa estranha, tem! Como é que você diz que está falando comigo por um celular, se esse tipo de tecnologia ainda não existe no Brasil? E que pandemia é essa de nome COVID-19? Que doença é essa? Siiim… O conceito de pandemia ainda é usado para doenças em grande escala, de proporções continentais não é?
A ligação ficou muda por algum tempo, e durante esse período, Caleb ouvia somente um intermitente “tec tetec tec tetec tec...”
-Garota!!!! Você ainda está aí? Que barulho de telex é esse?
Por fim, ele ouviu a voz feminina no outro lado:
-Calma, menino! Estava consultando o google para pegar algumas informações… É o seguinte… Papo reto! Se é que você está falando sério e não está me trollando; se estiver, tudo bem… Vou entrar na trollagem e depois a gente vê! Em 2021, diferente de 1983, a tecnologia facilita a vida de todo mundo. Por exemplo, o celular, como eu disse antes, é um aparelho portátil usado em grande escala, ou seja, por todo mundo que é antenado - Caleb ouviu uma espécie de riso contido - no Século Vinte e Um, e existe - outra risada - no Brasil, desde o ano de 1990; e o COVID-19, é uma doença que ataca os pulmões, e tem como sintomas mais comuns, febre, tosse, cansaço e perda de apetite; e para seu governo, já matou mais de cinco milhões de pessoas no mundo. Hoje em dia todo mundo é obrigado a usar máscara cirúrgica e manter distância de pelo menos um metro e meio por causa dessa doença, que é altamente contagiosa. O cotidiano ficou um porre! E mais, o google…
A explanação foi interrompida pelo Caleb:
-Gúgou? Que gúgou, garota? O que é isso? Mais essa agora…
-Calma, garoto, que eu chego lá! Pois é! O Google está informando que esse movimento, “Diretas Já”, foi um movimento democrático que antecedeu a eleição do Tancredo Neves, em 1985, dois anos depois - riso contido - do teu tempo. O cara, que ironia né? Foi eleito indiretamente por um Colégio Eleitoral em 1985. Ganhou mas não levou. Morreu antes de tomar posse e quem assumiu o lugar dele foi o vice, José Sarney. Já ouviu falar no cara?
-José Sarney? Nunca ouvi falar, e nem sei nem de que buraco o sujeito saiu! Político famoso nessa época - Caleb ouviu outro riso disfarçado no outro lado da linha - é o Ulysses Guimarães, junto com o Franco Montoro e o Mário Covas. São os caras que, entre outros, lideram o movimento das “Diretas Já”.
-É mesmo, é? Então, para seu conhecimento, o cara depois que foi Presidente do Brasil, ficou famoso e até entrou para a Academia Brasileira de Letras. Se bem que hoje em dia, qualquer um está entrando na ABL, inclusive quem nunca escreveu um livro na vida. Machado de Assis deve estar se revirando no túmulo!
Caleb ouviu um suspiro de enfado, e a peroração continuou no outro lado da linha:
-Pois se eu não estou ficando maluca por estar dando corda para outro maluco, saiba que, ainda de acordo com o “Google”, o Zé Sarney foi um sapo, tipo cururu tei-tei, que o Tancredo Neves teve que engolir na marra para concretizar a transição do Governo Militar para o Governo Civil. E mais, cara! Dessa turma toda aí, de Ulysses, Montoro, Covas e Sarney, o único que continua vivo é justamente o cururu tei-tei. O resto foi tudo pru saco! Pra você ver, né? Vaso ruim não quebra!
-Como assim “pru saco”?
-Pru saco, garoto! Foram dessa para melhor, morreram respectivamente em 1992, 1999 e 2001.
-E o que mais que esse teu Gúgou informou? Aliás - dessa vez quem conteve o riso foi o Caleb -, esse Gúgou é uma espécie de enciclopédia, é?
-Pode-se dizer que sim, garoto! É um sistema de pesquisa largamente utilizado na internet… Huummm! Você sabe o que é internet - mais uma risada contida -, não sabe?
-Nunca ouvi falar!
-Menino, tu és completamente doido, trollador ou realmente, estás vivendo na Idade da Pedra! Arrfff… Internet, garoto, é um sistema de compartilhamento instantâneo de informações, ou dados, como se diz atualmente. Entendeu?
-Peraê… Instantâneo como o telex ou o fax?
-Nunca ouvi falar nisso! Como eu ia dizendo… É um sistema de comunicação - outra risada contida -, usado em âmbito global, onde as pessoas podem se comunicar “on line”...
-Onláine? Que diabo é isso?
-Pára de interromper, garoto!!! Como eu estava dizendo… Nesse sistema, as pessoas se comunicam instantaneamente, tipo videoconferência, troca de arquivos, ou dados entre computadores e dispositivos eletrônicos, e-mail…
-Vídeo o quê? Tipo vídeo cassete? E esse meio? É meio de quê? Ficou maluca, menina?
-P.e.l.a.m.o.r d.e D.e.u.s! Quer parar de interromper, por favor! Que saco…?!?!? Escuta aqui! Estou levando nosso papo, trollagem ou seja lá o que for... Numa boa porque estou achando que você entrou numa de zoação e resolvi entrar no teu jogo… Mas se você vai ficar nessa de truncar o papo… Vou te mandar catar coquinho e desligar a droga do telefone. Falei?
-Desculpa! É que você fica falando umas coisas que não dá para entender… Por exemplo: O que é essa coisa de “É meio?” Essa coisa é no meio de quê? Serve pra quê?
-E-mail, garoto, é tipo uma carta ou um bilhete, uma comunicação de texto, só que instantâneo… Não precisa mandar pelo Correio ou portador. Você escreve e remete imediatamente via internet… On line! Se o destinatário estiver esperando na frente de computador ou dispositivo, tipo celular, tablet ou notebook, e estes aparelhos estiverem adequadamente configurados para emitir um aviso, o destinatário pode ler a mensagem na mesma hora. Entendeu?
-Mais ou menos! Porém, tem umas coisas me deixando encafifado… Por exemplo: o que é tábleti e nôutibuque?
-Como é que é? Tu não sabes o que é tablet e - risos - nem notebook? Tá bom! Uma vez que estamos trollando… Garoto, tablet é um dispositivo eletrônico igual a um celular, só que um pouquinho maior. Tem mais ou menos uns 15 centímetros de largura e uns 22 ou 25 centímetros de comprimento. O notebook também é um dispositivo. É um computador, só que portátil e tem o dobro da área do tablet. E para teu conhecimento e trollagem, em 2021, temos também o Uber, que é um tipo de táxi que a gente chama pelo celular; temos o delivery, que é compras que fazemos tambem pelo celular e que a loja, lanchonete, farmácia, supermercado, qualquer coisa que você compra nesses lugares, eles mandam um motoboy entregar na sua casa ou onde você desejar. Raramente usamos os mapas de papel. Eles foram substituídos pelo Google Maps e o Waze. Você instala um programa de computador no celular, denominado de "aplicativo", e eles mostram mapas virtuais. E antes que você pergunte o que é “motoboy”, esclareço que é um motoqueiro que faz entregas das compras. Temos também TV a cabo, que é uma televisão que você paga para assistir canais exclusivos; temos o streaming, que é uma espécie de cinema em casa, só que através da internet. Tem de tudo nesse streaming; tem de desenho infantil, filmes e séries, que é um tipo de filme cortado aos pedaços - ou seja, você assiste por capítulos como se fosse uma novela -, passando por esportes, aulas de culinária e filmes pornô.
-Tudo isso, na real?
-Na real, e para de interromper, garoto! Continuando… E quanto ao “Google”, é tipo biblioteca virtual, ou seja, você pode efetuar pesquisas de qualquer coisa… Garoto, se você pesquisar no “google” e não encontrar a informação, pode esquecer. Ela não existe em lugar nenhum!
-Ah é? Então, me informa duas coisinhas que devem ser bem simples para o teu sabe tudo “Gúgou”; primeiro: me diz o dia, mês e como foi que os caras morreram; segundo: qual o resultado da Loteria Esportiva da última rodada do Campeonato Brasileiro deste ano.
-Garoto, dentro de dois anos do teu tempo - risos, sem disfarce -, ou seja, em 1985 e de acordo com o Google, vai estrear um filme de ficção científica com o título “De Volta para o Futuro”, e que depois vai ter continuação em 1989 e 1990… Nessa trilogia, um cara do futuro que consegue voltar ao passado, altera eventos que não deveriam ser imutáveis. Conclusão da merda que o cara faz? Ele bagunça todo o futuro! Por isso, meu q.u.e.r.i.d.o, sendo trollagem ou não, eu não vou te dar nenhuma informação detalhada. Se contente com o que eu já falei. Ok?
Outro corisco rasgou o céu, e em poucos segundos, um trovão fez estremecer o orelhão e a calçada. Caleb arrepiou os cabelos da nuca e ficou esperando mais alguma manifestação do outro lado da linha. Silêncio total! Esperou mais alguns segundos, depois ficou exclamando:
-Alô? Alô? Alô ô ô..!?!?
A linha ficou muda e Caleb bateu o telefone na outra mão, como se esse gesto o fizesse retomar a ligação. A chuva ficou torrencial e os raios começaram a cair cada vez mais perto. Sem outra alternativa, Caleb largou o telefone sem repor no gancho e correu debaixo da chuva atravessando a Avenida Sete de Setembro para abrigar-se numa loja de venda de móveis e eletrodomésticos.
Sem perceber, Caleb ficou balançando os cabelos como se fosse um cão vadio secando os pelos. Um vendedor da loja se aproximou e falou irritado com ele.
-Pô, cara! Quer se esconder da chuva, tudo bem! Agora ficar espalhando água na mercadoria… Porra, bicho! Aí, já é demais, né?
-Desculpa aí, bicho! É que eu ‘tô muito confuso com um “treco” que aconteceu alí no orelhão… Mas tudo bem! Fica frio, ok? Vou ficar na boa aqui… Só quero me abrigar da chuva até ela passar…
Após se desculpar, Caleb saiu para a calçada e ficou debaixo do toldo. Distraidamente olhou para o orelhão de onde falava e percebeu uma estranha e inusitada cena. O aparelho estava envolto por uma tênue, quase invisível névoa luminescente. Pensou: “Assim que os coriscos pararem de cair, vou tentar retomar a ligação!”
Logo em seguida, um raio caiu na praça. Imediatamente um trovão ribombou, as luzes da loja e dos postes apagaram, e Caleb, assustado, se encolheu com olhos fechados. Depois do susto, instintivamente olhou para onde imaginou que o raio havia caído. O que viu o deixou estupefato. No lugar do orelhão onde há poucos minutos estava falando, havia apenas uma cratera. O aparelho tinha evaporado, sumido!
- o -
Com o calor de quarenta graus e o sol escaldante na moleira, Glorinha desceu no Ponto de Ônibus na calçada da Praça Marechal Rondon e olhou em volta, procurando a amiga. Um pouco mais distante, perto do Coreto da Praça, uma pequena multidão, todos portando máscaras cirúrgicas, formavam pequenos grupos de três ou quatro pessoas. Em alguns grupos, as conversas seguiam animadas. Em outros, as pessoas gesticulavam furiosamente e apontavam em direção ao Palácio do Governo, localizado a três quadras de distância, na ladeira da Avenida Presidente Dutra, em frente ao Campus da UNIR.
Glorinha deu mais uma vista de olhos pela cercania sem localizar a amiga. Quando ia pegar o celular no bolso traseiro da calça jeans para ligar, a localizou abrigada na sombra de um pé-de-benjamim. Parecia agitada com o celular colado à orelha como se estivesse chamando alguém. Sem pensar duas vezes, andou apressada em sua direção.
-Êi, Aninha!!! ‘Tá falando com quem…??? Não vai me dizer que o Gustavo aprontou de novo, hem?
-Ôi, Glorinha! Caraca, migaaaa… Acabou de acontecer uma coisa muito louca comigo. Doidêra mesmo!
Então a Ana contou para a amiga tudo que tinha acabado de acontecer. Que tinha recebido uma ligação de um carinha que a estava procurando e que jurava que estava para participar de uma manifestação igual a que elas iriam participar. Só que por uma tal de Diretas Já. E que ela afirmou que não sabia de nada dessa “Diretas Já”, e que estava esperando uma amiga de nome… “Advinha só?” Perguntou! A amiga respondeu que não fazia a menor ideia de quem fosse. E ela respondeu que o carinha estava procurando por ela, a Glorinha. Glorinha respondeu: “Eeeeu??? Como assim? Não marquei encontro com ninguém aqui, cara!” - rindo divertida, Aninha respondeu - “Pois é! E a doidêra maior, miga… É que o carinha disse que estava chovendo aqui na praça, o maior dilúvio, e que o ano em que ele estava falando era o ano de mil novecentos e oitenta e três. Já imaginou uma loucura dessa?”
Incontinenti, Aninha informou que deu uma consultada no Google e ficou sabendo que, realmente, entre o ano de 1983 e 1984 tinha havido um movimento popular, parecido com o que estava acontecendo em relação ao Passaporte Vacinal, só que pelas Diretas Já; e que esse movimento tinha como líderes o Ulysses Guimarães, Franco Montoro e Mário Covas. Contou também que disse para o carinha que ela estava falando do ano de dois mil e vinte e um, e que os três caras que lideraram o tal movimento popular, tinham morrido, de acordo ainda com o Google, respectivamente nos anos de 1992, 1999 e 2001. Falou também sobre as inovações tecnológicas que existiam no ano de 2021. Falou sobre a Internet, Celulares, Tablets, Notebooks, etc etc. E que pelo celular o usuário podia pedir que uma espécie de táxi, de nome UBER, fosse solicitado pelo celular. Que você podia comprar comida ou qualquer coisa, também pelo celular. Que a internet facilitava a vida de todo mundo. "E sabe o que o trollador falou, miga? Disse que não conhecia nada disso, e ainda disse que tecnologia de ponta em comunicação, era um tal de telex e fax. Viu a doidêra do carinha, miga?"
A recém chegada franziu a testa e instigou a amiga a continuar…
-Sabe, Glorinha, qual foi a maior trollagem que o carinha fez comigo? Questionou que, se eu estava falando do futuro mesmo, e que ficava sabendo de tudo através do Google, que informasse para ele qual o resultado da última rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol do ano de 1983, que era para ele acertar na Loteria Esportiva. Falei que até que eu poderia pesquisar o resultado mas que não iria dar informação nenhuma. Vai que o carinha estava falando mesmo do ano de 1983. Se eu desse o resultado, poderia alterar a onda do tempo e aí iria bagunçar todo o futuro. O nosso futuro! Pois é, amiga! Entrei na gozação do carinha… Eu até iria continuar "trollando" a peça rara, mas a ligação caiu. E aí você chegou e isso é tudo. Já imaginou que doidêra, amiga?
-Diz pra mim, Aninha. O carinha que estava tentando te trollar, pelo menos disse o nome dele?
-Disse, amiga! Falou que o nome dele era Caleb! Caleb… Não é um nome muito comum né, Glorinha?
-Como é que é, Aninha? Caleb? Aninha, você só pode estar de sacanagem comigo. Caleb de quê, Aninha? Ele falou o sobrenome?
-Não! Falou somente Caleb… E te digo mais, o cara ou é um tremendo de um trolador, ou então é um doido varrido. Sei lá…
Ao final da estranha história contada pela amiga, Glorinha ficou pálida e arfante. E sem dizer nada, pegou o celular e os polegares se multiplicaram no teclado virtual. Depois, pegou a mão da amiga e saíram caminhando em direção à calçada do prédio do Correios e Telégrafos, no sentido Avenida Presidente Dutra/Sete de Setembro.
Aninha estranhou o comportamento inusitado da amiga, e sem dizer nada, a acompanhou em sua caminhada apressada, quase às carreiras. Daí a pouco, um UBER parou na frente delas. Embarcaram e Glorinha ligou para a mãe.
-Mãe, estou indo para casa com uma amiga. Mãe, lembra que o pai mantinha guardado um monte de cadernetas ou agendas, sei lá eu… Em que ele registrava tudo como se fosse um diário? Cada uma referente ao ano do calendário delas? Mãe, você sabe onde estão guardadas as caixas?
-Claro! Tudo o que era do teu pai eu guardei no depósito ao lado da despensa. Porquê essa pergunta agora?
-Assim que eu chegar em casa, eu explico para você, mãe. Agora, eu estou num UBER, e daqui a pouco estou chegando em casa, ok?
Sem entender absolutamente nada do que estava acontecendo, Aninha perguntou.
-O que está acontecendo, Glorinha? E a passeata, a gente não vai mais? E por que estamos indo para a tua casa?
Extremamente pálida, Glorinha levou a mão tremendo até a boca, e calada estava, muda ficou.
Durante todo o trajeto do UBER, Glorinha, sem dizer nada, esfregava continuamente a mão nos joelhos. E quando a Aninha tentava saber a razão do mutismo e de seu nervosismo, a amiga levantava a mão no sinal típico de quem indica: “fica quieta, depois de explico!”
Quando o UBER parou, Glorinha pegou a mão da amiga e desceu do carro quase correndo. Entrou atropeladamente em casa e foi direto para um pequeno depósito localizado nos fundos da residência.
A mãe de Glorinha, sem entender o estranho comportamento da filha, indagou:
-Glorinha, o que é que está acontecendo, menina?
Sem dizer nada, Glorinha pegou um molho de chaves e abriu a porta do pequeno depósito. Vasculhou umas caixas por um tempo. Por fim, impaciente, pegou as caixas, uma por uma, e foi jogando os conteúdos ao chão.
Várias agendas e papéis diversos se esparramaram pelo piso. Glorinha, à medida que pegava as antigas agendas e cadernetas de anotações, olhava o ano da capa, folheava e as descartava.
Em dado momento, pegou uma agenda e a folheou freneticamente. Nas últimas folhas, ficou um tempo lendo, colocou a fita de marcar páginas e entregou a caderneta para a amiga que olhava com estranheza para a mãe e a filha.
-Tome, Aninha, e leia a partir da página marcada.
À medida que Aninha ia lendo, a cor ia sumindo da face. Incrédula, fechou a agenda e leu o ano estampado na capa surrada da agenda: 1983.
Estava tudo lá, anotado! Toda a conversa que ela tinha mantido pouco menos de uma hora atrás com o garoto de nome Caleb.
-Aninha, o nome do meu pai era Caleb Youssef. Quando ele escreveu essas anotações, ele tinha dezessete anos. A mesma idade nossa.
-E onde é que está o teu pai, Glorinha? Eu tenho que falar com ele e...
-Ele morreu faz quatro anos, Aninha!
Arigó
João Pessoa/Jan 2022.