O Pesadelo de Flamir Zertrax (Numenera Fanfic).
Flamir Zertrax depositou o saco de sintético verde escuro sobre a bancada e desabou sobre a cadeira. Enfim, ele pudera se aquietar um pouco, após toda a burocracia envolvida ao retornar de uma expedição de pesquisa financiada pela faculdade de Charmonde, a mais cara e mais longa que já lhe fora confiada.
A notícia da morte de Orfeu, sacerdote na Ordem da Verdade, amigo e mentor de Flamir, veio se somar ao cansaço. Ainda naquela tarde ele visitara seu túmulo. Passara bastante tempo relembrando seu amigo, sábio, imaginativo, curioso e maior apoiador de seus estudos e mesmo das suas teorias mais… criativas.
Ele esfregou o rosto por alguns segundos, reconhecendo o cansaço, mas sua mente ainda vagava agitadamente por lembranças.
Começou então a retirar o conteúdo do saco e a posicionar as peças sobre a mesa. Viu com alívio que as lentes daquele presumível instrumento óptico estavam intactas. Parou para observar a numenera, antecipando como reparar as várias peças quebradas, quais testes iria fazer.
Havia sido essa mistura de senso prático, habilidade manual e conhecimento de numera que desde cedo lhe rendera a alcunha de “jack”, meio que jocosa e honrosa, ao mesmo tempo.
Para ele, a Numenera era a chave para compreender o mundo em que viviam, um mundo moldado por potências abismais das civilizações anteriores, para as quais as realizações de seus semelhantes pareciam apenas gotas no oceano. A questão era existencial. Frustrava-o ver como as pessoas viam apenas o poder dos artefatos, na utilidade das cifras, no fascínio das esquisitices… Poucos queriam saber mais, seja por descaso, ou medo disfarçado de descaso. Sempre houve pouca audiência para suas teorias. Pelo menos até conhecer Orfeu.
Não querendo mais divagar, Flamir se levantou e foi até o armário do outro lado do aposento. Lá estava uma profusão de sucatas, materiais de vários tipos e ferramentas diversas. Ele recolheu ferramentas, colas, tubos e o que mais achou oportuno e retomou o trabalho.
Com algumas fitas de amarração, ele conseguiu alinhar os componentes do artefato com alguma firmeza. Apontou a lente maior para um globo luminoso sobre um poste numa esquina distante. Ajustando o alinhamento das peças do objeto, raios de luz desfocados saíam por um cristal na extremidade oposta. Flamir buscou uma placa semitransparente em seu armário e expôs à luz difusa. Gostou do resultado e começou a fazer ajustes.
As diferentes composições das lentes, bem como pequenos paineis que reagem à luz demonstravam que o artefato tinha recursos incompatíveis com a visão humana. Como eram os olhos das criaturas que o construíram? Será que chegaram a conhecer os seres humanos?
Em uma das conversas, Orfeu e Flamir discutiram sobre um dos ensinos da Ordem da Verdade, o de que a Terra já foi dos humanos, depois deixou de ser, e agora, talvez volte a ser deles novamente.
- Então, - tinha dito - não podemos ter sobrevivido por nossa própria conta, ou mesmo convivido com eles. Acho que a humanidade esteve ausente durante um longo período. Estamos aqui porque fomos trazidos de volta de algum jeito. Uma reinserção intencional, talvez.
O velho sorrira.
- E se for esta a razão do desinteresse das pessoas pelo passado, do qual você tanto reclama. Somos recém chegados em um mundo estranho produzido por mentes indecifráveis, trazidas a ele por meios e razões incompreensíveis. Pode mesmo culpar os que só querem viver o dia de hoje?
- Ser recém chegado deveria ser instigante. É como acabar de chegar a uma festa. - objetara Flamir.
-Hum… – Orfeu refletira por alguns instantes - Talvez tenha algo que não sabemos nisto tudo.
O jack novamente se forçou a parar de lembrar e conseguiu finalmente adaptar a placa. Ela exibia a imagem meio desfocada do globo luminoso, mas bastante ampliada. Ele o tomou o conjunto nas mãos e apontou com curiosidade para alguns dos numerosos pontos brilhantes na porção de céu visível de sua janela.
Ele viu estrelas, mundos distantes que orbitam o Sol, conforme aprendera com os Sacerdotes e professores.
Viu também estranhos corpos que não pareciam de forma alguma naturais. Os Sacerdotes os chamavam de “Numeneras Celestes”. O poder dos antigos se estendia muito além da Terra. Um dia a humanidade poderia alcançar ao menos uma fração desse conhecimento? Se tiver garra e curiosidade, e ser inconformado com a ignorância, talvez seja inevitável.
Quando percebeu que estava cansado demais para produzir algo de útil, Flamir repousou o artefato sobre a bancada e tombou sobre a cama.
Adormeceu rapidamente, com imagens vagas dos acontecimentos e pensamentos do dia rodopiando em sua mente, se tornando a cada momento mais difusos.
Sem aviso ele se viu no paço central da capital de Navarene, próximo ao grande parque e ao Mercado. Pessoas para todos os lados, conversando, negociando, passeando, brincando.
Flamir e Orfeu permaneciam ignorados.
-Para onde foram os antigos, Orfeu? Porque não ficaram aqui? Porque a humanidade parece tão perdida? Porque não restava nem uma parcela do poder dos antigos nas mãos dos humanos? Porque as pessoas parecem tão desinteressadas?
Orfeu olhou para ele, mas havia algo de estranho em seu olhar. Não era o olhar de compreensão, e até sonhador, que sempre os ligara intelectualmente. Era um olhar lúcido, esclarecido, mas não estava feliz.
-Não há consolação no passado, Flamir Zertrax. E nem no futuro. Por isso esses humanos se entregam ao presente.
Flamir olhou com estranheza para Orfeu. Sentiu-se angustiado. Mas antes que pudesse questionar, Orfeu ergueu os olhos para o céu. Havia um ponto brilhante solitário acima do poente.
-Veja! - Disse Orfeu e, sem explicação, ambos estavam no quarto de Flamir, e o magnificador óptico estava na bancada, apontado na direção certa.
Flamir olhou para o painel, que mostrava uma imagem nítida, sem necessidade de correção.
Iluminado pelo velho sol, o objeto que ele via era caótico, mas talvez apenas parecesse assim por trazer uma organização completamente alienígena, com estruturas que pareciam vivas e inanimadas ao mesmo tempo. Parecia se aproximar muito rapidamente.
Mais uma vez os dois se encontravam no meio de uma multidão, mas não era nenhum lugar que Flamir conhecesse, mas parecia ter elementos familiares: Bancos, barracas, casas, árvores, estradas… Parecia com todos os lugares e lugar nenhum ao mesmo tempo.
O objeto agora era visível no zênite, e todas as pessoas olhavam para ele, mas não havia pânico.
-O que é isso, Orfeu? O que significa…
Então um tipo de som veio do céu junto a uma luz caleidoscópica de cores desconhecidas. O conhecimento, a curiosidade, a busca de sentido, estavam sendo lavados pela enxurrada sensorial, se reduzindo ao mero instinto de sobrevivência, a agressividade, a busca pelo prazer e a fuga da dor. Perdia até a noção do quanto a sensação estava sendo angustiante.
Subitamente aquele efeito cessou e ele notou que Orfeu tocava seu ombro e olhando pensativo em volta. Flamir fez o mesmo e ficou atônito.
As barreiras sociais, as fronteiras de propriedade e até de espaço pessoal, sendo substituídas pela mera lei do mais forte. A comunicação clara e elegante do idioma Verdade, sendo trocada por gritos, uivos e grunhidos. Os objetos construídos pelo engenho humano, depredados e descartados de maneira revoltante. As pessoas foram reduzidas a animais.
-Porque, Orfeu? Os antigos criaram esse objeto? Eles queriam essa crueldade?
E ambos afundaram no chão, buscando refúgio no subsolo, para longe do espetáculo nefasto.
-Limites… Nos deram limites! - Quando ele disse isso, Flamir viu que, à medida em que desciam pelo solo, inumeráveis ruínas de construções dos antigos. Porém, junto a essas numeneras, ele via também sinais claros da presença humana, dos esforços de várias gerações, e também de aparente fracasso, como se a obra fosse iniciada, então abandonada até se transformar em ruínas, e depois recomeçada.
Flamir acordou impressionado. Olhou para o céu e ficou a imaginar se, entre as órbitas dos corpos naturais e numeneras, havia algum mecanismo responsável pela prisão dos homens, impedindo que progredissem até o nível de poder dos antigos, ou ao menos até o máximo do seu potencial.
Seriam os humanos prisioneiros tristonhos e melancólicos devido à falta de esperança de seu cativeiro? Será que não havia esperança no futuro tanto quanto iluminação no passado?
Flamir se levantou, pegou um grande caderno gasto, procurou as folhas em branco perto do final, e começou a esboçar mais uma teoria.
>Este texto é baseado no cenário de RPG Numenera, de Monte Cook, com exceção dos personagens e enredo.<