Planeta abandonado

Depois de uma cuidadosa análise da atmosfera planetária e dos possíveis patógenos presentes no ambiente, a capitã Lilioza liberou duas técnicas, Ieva e Daiva, para explorar os arredores do local de pouso da "Outrunner", uma clareira aberta numa floresta esparsa, com sinais de ocupação humana não muito recente.

- Não foram verificados sinais do uso de armas nucleares, químicas ou biológicas, - explicara às técnicas antes do desembarque - mas a colônia fundada aqui há 70 anos, desapareceu. Podem ter sido evacuados durante a guerra, ou tornaram-se baixas civis dela; precisamos de alguma conclusão para pôr no relatório e liberar ou interditar este planeta para novos assentamentos.

- E se não houver tempo para chegar à uma conclusão? - Questionara Ieva, a técnica mais velha. - Afinal, estamos fazendo um serviço terceirizado para a Aliança, e nos pagam pela quantidade de planetas visitados.

- Só vamos ficar pelo tempo necessário; - replicara Lilioza - basta que tenhamos uma resposta que dê subsídios aos analistas da Aliança para vetar ou aprovar outra colônia aqui. Depois, decolamos e partimos para o próximo mundo da lista.

As técnicas não ficaram muito convencidas com a réplica, mas tinham que fazer o trabalho que lhes fora destinado. Trocaram as roupas informais de bordo pelos macacões alaranjados e as botas pretas de cadarço usadas em atividades externas, reuniram o equipamento científico que usariam na avaliação, e saíram da nave pela câmara de descompressão, embora os parâmetros da atmosfera planetária fossem semelhantes aos da Terra e nenhum equipamento auxiliar de respiração fosse necessário.

- Isso aqui parece a Terra - avaliou Daiva, a técnica mais jovem, que usava óculos de telemetria erguidos na testa, e tinha os cabelos encaracolados presos num longo rabo de cavalo.

- A grama foi plantada pelos colonos, - replicou Ieva - não é nativa daqui. Na verdade, a fauna e a flora nativas têm uma bioquímica diferente da nossa, e portanto nada local é comestível.

- Ou venenoso? - Questionou Daiva, apontando para duas criaturas que lembravam lagartos cinzentos e longilíneos, com olhos que se projetavam das laterais de cabeças diminutas, como as de um tubarão-martelo. Os animais observavam imóveis as mulheres de uma distância segura, cerca de cinco metros.

- Lagartos de Brenke - informou Ieva, consultando seu terminal de pulso. - São compridos, mas inofensivos; comem insetos. Devem ter sido atraídos pelo calor dos motores...

Aparentemente satisfeitos com a rápida inspeção visual, os lagartos correram para dentro da floresta de árvores de tronco escamoso, e sumiram de vista.

- Afinal, os colonos informaram a existência de alguma criatura perigosa? - Inquiriu Daiva, começando a colher amostras de vegetação e solo, que guardava numa caixa presa ao cinturão.

- Não foi informada a existência de nenhum predador de grande porte... pelo menos, nada que tenha sido classificado como hostil a humanos - replicou Ieva. - Alguns animais maiores devem ser evitados, naturalmente, pois mesmo não representando perigo de fato, podem nos ferir caso se sintam ameaçados.

- Esse lugar parece um paraíso - avaliou Daiva, baixando os óculos de telemetria e começando a fazer uma varredura dos limites da clareira.

Um ruído surdo soou enquanto estava de costas e ouviu a voz de Ieva em seguida.

- Vire-se devagar... se não, vai assustá-lo.

Daiva engoliu em seco e procedeu como a chefe orientara. A cerca de dois metros de distância, viu uma criatura que lembrava um enorme inseto rosado, com seis patas, sendo que o par traseiro era superdimensionado, como os de um grilo. A cabeça era comprida, tinha um focinho longo como o de um tamanduá, e dois olhos pretos redondos, que a encaravam sem expressão.

- É um saltador de Freimane - leu Ieva no terminal. - Uma saltadora, aliás; é uma fêmea, veja pelos nódulos no abdome: são os filhotes que ela leva até que estejam prontos para sobreviver por conta própria.

- Isso morde? - Indagou Daiva, apreensiva.

- São vegetarianos - tranquilizou-a Ieva. - Acho que foi atraída pelos nossos macacões...

- Como assim? - Daiva franziu a testa, sem ousar se mexer do lugar.

- Deve estar pensando que somos outros saltadores de Freimane; são criaturas muito gregárias.

- E o que eu faço agora?

A saltadora de Freimane inclinou a cabeça para um lado, como um cachorro faria. Daiva contraiu os maxilares, apreensiva, pronta para sair em desabalada carreira.

- Não faça nada; logo ela vai concluir que você não é da espécie dela, e irá embora - replicou Ieva.

A saltadora, contudo, começou a emitir um barulho ritmado, como de uma serra cortando madeira.

- Essas criaturas podem ser ensinadas a executar tarefas repetitivas e repassá-las aos descendentes - informou Ieva, consultando o terminal de pulso. - Talvez os colonos as tenham ensinado a repetir uma mensagem...

- Como se fosse um gravador? - Daiva estava perplexa.

- Você está com o equipamento de telemetria; ponha seus óculos e veja se esse barulho faz algum sentido - redarguiu Ieva.

Daiva procedeu como havia sido orientada e, sim, havia sentido por trás daquele ruído aparentemente aleatório.

- A maior parte dos colonos foi convencida a abandonar o planeta durante a guerra, - conseguiu decifrar - sob a promessa de que seriam levados para um local mais seguro. Mas os que se recusaram, perceberam depois que se tratava de uma armadilha: o pessoal que esteve aqui, não era da Aliança.

E para Ieva, erguendo novamente os óculos:

- É possível que os colonos tenham sido vendidos como escravos.

Estendeu a mão para tocar na saltadora. A criatura não se moveu, como se esperasse o gesto.

- Bom trabalho, amiguinha - agradeceu Daiva.

- Acho que isso conclui o nosso trabalho por aqui - decidiu Ieva. - Vamos pôr no relatório que não há sobreviventes, e que o planeta está aberto para recolonização.

- Falta ainda descobrir o paradeiro dos colonos - lembrou Daiva.

- Isso é trabalho para o pessoal efetivo da Aliança - redarguiu Ieva. - Nós somos apenas terceirizadas, não fazemos resgates nem salvamentos.

E após recolherem seu equipamento, a dupla bateu em retirada para o interior da nave, onde a capitã Lilioza já ordenara ligar os motores. Havia muito trabalho a ser feito, e o tempo era curto...

- [26-12-2021]