O homem à prova de balas
O HOMEM À PROVA DE BALAS
Miguel Carqueija
Eles são o Exército das Sombras. Sombras que a luminária de chamas faz dançarem pelas paredes carcomidas, enquanto Ralph Olegário fixa o olhar no homem careca que caminha de um lado para o outro enquanto fala:
— Chamei todos vocês porque estamos com um problema novo e perigoso. Uma ameaça insólita que pesa sobre toda a base brasileira. Reunimos alguns informes e sabemos que o nosso inimigo está infiltrado entre nós e fazendo das suas.
“Entretanto o que preocupa o Comando é a presença de um indivíduo muito estranho, que recebeu a missão de destruir a nossa base, acabando com a presença brasileira na Lua.”
— Perdão, Master, mas como poderia alguém destruir a nossa base? Seria como destruir Nova Iorque, Bombaim, Sidney...
— Vamos por partes. O agente do Império Pacífico chama-se, oficiosamente, Augustino Esposito. É um homem de vasto currículo no terrorismo, com grande conhecimento sobre bombas caseiras, venenos, armadilhas e emboscadas. Há cerca de três anos, conforme o relatório secreto que recebi, Esposito foi submetido a uma estranha experiência no laboratório do Dr. Puig, aquele da sinistra fama.
— O Mengele moderno — completou Isabel.
— Esse mesmo. O que está escrito nesse relatório é mesmo isso: um tratamento especial foi dado à pele desse homem. Ela permaneceu flexível mas ganhou uma resistência especial. Esposito, por mais incrível que isso possa parecer, é um homem invulnerável, à prova de balas.
Olegário fez um gesto de incredulidade. O Master percebeu:
— Alguma dúvida, Ralph?
— Isso me faz lembrar o Super-Homem...
— Ele não é o Super-Homem, bem entendido. Não voa, não tem super-força nem visão raio-X, não é imune a venenos ou a lesões internas, e nem a um tiro de canhão. Não sabemos se aguenta laser ou bala calibre 45. Mas um revólver comum não o fere.
— Isso está provado?
— Um agente duplo, mas nosso, assistiu a uma demonstração e ele próprio atirou em Esposito, que só ficou ligeiramente arranhado.
— Mas mesmo assim... como poderia ele destruir a base?
— Esposito, já se sabe, não é um homem normal. Ele tem outras habilidades: é perito em bombas, como eu disse. É perito no manejo de armas. Tem uma equipe com ele, de indivíduos fanatizados e implacáveis. Além disso a base tem suas fragilidades. Se a cúpula for destruída a base estará destruída.
Olegário não faz muito caso de tais observações. Para ele é impossível que existam super-vilões. As reuniões não lhe agradam muito. O Comando é de um formalismo irritante. O único detalhe informal da reunião está nos pés de Isabel, que estão desnudos. A seu lado, tendo notado isso, Olegário pensa na facilidade psicológica que as mulheres têm para tirar os sapatos e lamenta não ter coragem de fazer o mesmo.
Sua atenção retorna ao Master, que prossegue uma explicação enfadonhamente técnica:
“... as fibras de vidro plástico foram forjadas em temperaturas baixíssimas, muito próximas do zero absoluto, e possuem seis camadas concêntricas engastadas em bases circulares de cerâmica supercondutora, profundamente enterradas na superfície do satélite. O sistema de segurança, altamente informatizado, e que custou o equivalente a 25 bilhões de dólares...”
Olegário boceja. E já está com vontade de mandar o Master para aquele lugar.
E aí o Master se volta para ele:
— E você,Ralph, está encarregado de pegar esse sujeito.
— EEEU?!...
..................................
— Sempre eu?
Dirigindo o panquecóptero, Isabel tenta consolá-lo:
— Vamos, meu bem. Isso quer dizer que o Master tem você em grande conta.
— Mas eu não sou à prova de balas!
— Ninguém é. E alguém teria que pegar a missão.
— Mas logo eu?
— Nós.
— Acho que deviam simplesmente chamar a polícia.
— Muito engraçado. Às vezes eu me pergunto para que você entrou no Serviço Secreto.
— Foi o único meio de me livrar dos cobradores. O Governo pagou as minhas dívidas e eu me coloquei à disposição para o que precisarem.
— Bem, no meu caso não foi bem assim...
Isabel estacionou numa vaga do Parque Robótico. Os dois saltaram e Ralph observou distraidamente os robozinhos que circulavam aqui e ali, pelos caminhos dos jardins, alguns brincando com as crianças ou posando para retratos. Isabel porém enganchou o braço esquerdo no seu direito:
— Esqueça a paisagem. Temos um dever a cumprir!
— O que você acabou de falar foi um completo lugar-comum, um clichê. Se nós fôssemos personagens de algum conto...
— Não estou interessada. Vamos, Ralph!
Caminharam por uma alameda de palmeiras, onde se divertiam robôs, crianças e cachorros, e dirigiram-se para o restaurante. A investigação preliminar indicava o local como ponto de reunião dos conspiradores. Todavia, em tais casos os agentes inimigos não repetiam de lugar, ou não se esperava que o fizessem. Isso o Master lhe dissera mas Olegário, cioso de seus direitos sobre os seus próprios métodos, insistira em investigar no local.
Seu relatório diário não ficaria vazio no primeiro dia e além disso ele estava com fome.
Isabel, sentada à sua frente, troçou:
— Aposto que você está pronto a repetir o velho ditado “o criminoso sempre volta ao local do crime”. Só que aqui não houve crime nenhum.
— Schiu! Aí vem a garçonete!
A garota, louríssima e donairosa, sorriu para Olegário ao entregar o cardápio. Este, examinando o seu, fitou repetidas vezes a garota:
— Tem tanta coisa aqui no cardápio...
— Se tem, senhor. Já escolheu o seu prato?
— Bem, você tem alguma sugestão?
Uma dor súbita e Olegário corrigiu:
— Pode deixar! Eu quero uma canela de carneiro...
— Uma o que?
— Não, canela não. Ui... quero dizer, um assado de perna de carneiro, com tudo o que tenho direito.
Isabel acrescentou:
— E para mim um “strogonoff” com lasanha. Bote suco de uvas para nós dois!
— Está bem, está bem.
Depois que a mocinha se afastou, Ralph protestou:
— Por que você me deu um chute na canela?
— Ainda pergunta?
— Parece-me que você está de mau humor...
— Não, é impressão sua. Eu fico felicíssima quando você paquera uma sirigaita na minha frente...
— Eu fiz isso? Quando?
Isabel ia responder quando, por sorte de Olegário, um gato assustado pulou em seu colo, depois para a mesa, depois para o ombro de Isabel, que deu um grito e jogou o bichano longe; então um waimaraner bem tratado pulou sobre os joelhos de Olegário, ganhando impulso para saltar sobre a mesa, na perseguição ao felino, levando em seguida Isabel de roldão, com cadeira e tudo.
Irrompeu o pânico. Diante dos destroços da mesa, o agente percebeu que os brucutus da segurança já vinham na sua direção, com a evidente intenção de espancá-lo. Levaria tempo para explicar que ele não tinha feito nada e que nem era dono dos bichos que continuavam derrubando coisas e pessoas pelo salão.
Ralph levantou-se e mostrou depressa o seu distintivo.
— Esperem! Eu sou um agente! Sou intocável!
No momento seguinte o “intocável” levou um murro no nariz, foi jogado ao chão e pisoteado, enquanto Isabel, menos crente em distintivos, se defendia a cadeiradas. Olegário espumava de raiva quando resolveu sacar a arma de fulguração e impacto e disparou à queima-roupa. Os agressores foram caindo como pedras até que o último, um muro de homem, ficou parado, estático, espantadíssimo diante da fulguração elétrica que lhe bateu no peito e queimou sua roupa, mas só isso.
É proibido portar armas nas bases lunares. Nunca se espera encontrar alguém que as tenha, por isso os espancadores de restaurantes contam com a impunidade, pelo menos enquanto não chega a polícia. Então o estranho leão de chácara chuta o pulso de Olegário, que só tem tempo de recuar e puxar a velha arma de balas. Será possível que esse pessoal não saiba o que é um emblema do Comando? Sem saber que tipo de proteção o grandalhão tem no peito, Ralph alveja o ombro esquerdo. Em vão. A bala ricocheteia.
— Augustino Esposito!
O grito de Olegário faz imobilizar o punho do oponente, em pleno ar. O terrorista se volta para fugir.
Isabel agarra seu pulso direito e num espetacular golpe de jiu-jitsu atira o corpanzil a vários metros de distância.
Esposito podia ser à prova de balas, mas não de pancadas fortes na cabeça: perde os sentidos ao bater com ela numa coluna.
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O MASTER — Sinceramente, não esperava que vocês pegassem o nosso homem tão depressa.
Ralph Olegário, com esparadrapos no rosto e moído de pancada, não está suficientemente consolado.
— E os cúmplices dele?
— Já pegamos vários deles. Mas espionagem e contra-espionagem são coisas que nunca têm fim. O importante é que pegamos esse. Ele nos revelará seu segredo e um dia todos nós seremos à prova de balas.
— Oh, meu complexo de Frankenstein — geme Olegário, de cabeça baixa.
— Como disse?
— Nada de importante, Master — explicou Isabel. — Sabe como é... ele apanhou muito e ainda está meio perturbado.
— Bem, de qualquer forma eu providenciarei para que vocês sejam condecorados...
Ralph arriscou uma pergunta:
— Isso é muito bom, Chefe, mas nós não podemos ser gratificados?
— Bem, sabe como é... não é que vocês não mereçam... mas as verbas andam tão curtas...
—Está tudo bem, Master. Nós ficamos satisfeitíssimos com as condecorações — atalhou Isabel.
Do lado de fora ela dirá ao Ralph: — Não se preocupe com a gratificação, que seria mixuruca. Essas condecorações valem uma nota no ourives.
Ralph, apesar de tudo, sente-se orgulhoso com o sucesso rápido. Então, ao entrar em casa, sofre nova surpresa: um gato passa correndo para o quintal e um cachorro enorme, desistindo de persegui-lo, voa na canela do agente.
— Ei! Ai! Que bicho é esse?
— Fora, Adamastor! Não morde o Ralph! — grita Isabel, irritada. Adamastor resolve continuar a caça ao gato.
— Que fazem esses monstrinhos aqui?
— Ora, querido, eu os adotei! Ou já esqueceu que é graças a eles que resolvemos o caso? Vamos, venha por um curativo nessa perna!
— Homessa... quando eu estiver com o Master, vou lhe dizer para nos tornar à prova de balas e de dentadas. Oh, como é dura a vida de um agente secreto!
Rio de Janeiro, 18 de setembro a 1º de dezembro de 1990.
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