Charlie Brown e Snoopy

I

O jornalista Charlie Brown segue uma rotina. Todos os dias ele levanta às sete da manhã. Escova os dentes, toma banho etc. e tal. Por volta das oito da manhã ele começa a ler o livro "Princípios de Filosofia" de René Descartes.

Espera um pouco.

Desde quando ele lê livros? Ele tem dificuldades por conta do déficit de atenção. E acha filosofia chato pra caralho. O homem careca, por volta dos 30 anos, baixo, branco "como um verme" segundo uma ex-namorada detratatora, "peludo de dar medo" tem a diária sensação de que as coisas parecem em ordem "demais".

Às vezes ele pensa em descansar no telhado plano e vermelho de sua casa. Mas aí ele sai e vê que não há nenhum telhado assim na cobertura de sua residência.

Por volta de nove da manhã ele lembra que precisa alimentar o cachorro.

Seu cachorro é da beagle. Todo branco. O nome dele é Snoopy. O animal tem uma habilidade incomum, ele pode andar como um bípede. O telhado da sua casinha é vermelha. Ele fica deitado em cima dela.

Charlie começa a achar tudo muito estranho. Mesmo assim ele age de maneira natural. Abre o saco de ração e despeja na tigela do cachorro, que volta a ficar numa posição quadrúpede e começa a comer como um cão normal. Assim, Charlie tem uma excêntrica sensação de alívio e volta para dentro. No sofá começa a ler "Contra o dia", de Thomas Pynchon. Um calhamaço de mais de 1000 páginas.

Caralho, eu nunca imaginei ler tantas páginas assim, pensou Charlie.

No início do livro, há um cachorro falante. Charlie sente de novo uma sensação lúgubre. Ele escuta algo arranhando a porta. Vai até ela. E lá está o cachorro na porta. Quadrúpede, importante dizer. O canino entra e Charlie fecha a porta. Ele volta a pegar o livrão da porra e deita no sofá.

“Você não tem que escrever aquela reportagem?”, pergunta o cachorro.

Antes de esboçar qualquer reação, Charlie começa a sentir uma forte dor de cabeça. Ele cai no chão, mas antes de apagar observa alguém arrombando sua porta. Só que ele não vê quem é.

II

O guerrilheiro Charlie acorda às sete da manhã numa cama imunda de um quarto esquálido. No chão um pacote junto com um bilhete.

"Leve até no Snoopy". Junto com o imperativo havia o endereço onde estaria a peça-chave da guerrilha que luta contra as forças totalitárias.

Charlie é um homem careca, forte, alto e tem facilidade em conquistar mulheres. Tanto que uma das guerrilheiras fez questão de acompanhá-lo. Ela levava um jornal com ela, havia algum código escrito na página A16. Como os dois provavelmente iriam enfrentar a repressão do regime, ela teria que passar a edição do jornal para ele. Portanto, preconizou a ele.

- Nunca olhe a página A16.

Já havia algum tempo que ele tinha lido um jornal. Parece que a página A16 é onde ficam as charges e tiras publicadas.

O previsto ocorreu e Charlie e sua colega/amante de guerrilha foram emboscados. Os dois tinham a missão de encontrar um tal de Snoopy. Ela tinha que entregar o código e ele, o pacote. Troca de tiros numa rua labiríntica, repleta de becos. Dessa vez com o jornal e o pacote em mãos, Charlie conseguiu escapar. Não se sabe se a mulher conseguiu o mesmo. Mas agora cabe a ele entregar os objetos.

Durante a noite, a tentação em abrir o pacote, em olhar a página específica do jornal. Ao mesmo tempo, uma sensação lúgubre, estranha. Nunca se imaginou pegando em armas, como entrou nessa? É bizarro.

Na residência onde ele está, o telhado é vermelho. Dá para cochilar em cima. Quando se lembra disso, a vontade de olhar o jornal ficou inefavelmente irresistível. Abriu a publicação na página A16. Viu uma tirinha, coisa de edição dominical. Mas de forma muito estranha, ela estava embaçada demais para ele. Sentiu forte dor de cabeça. Não conseguiu ficar muito tempo olhando para aquela arte sequencial. Só conseguiu notar um personagem infantil e seu cachorro. Dormiu logo após a dor amenizar.

No dia seguinte seguiu o endereço mencionado no bilhete. Com o jornal e pacote em mãos, passou por uma favela e logo depois passou por várias casas de telhado vermelho. Era um conjunto residencial de casas padronizadas. Isso lhe causou um terrível mal estar. Quando enfim saiu daquele lugar que lhe causava perturbação mental, seu nariz sangrava.

Chegou ao endereço citado. Lá estava o agente misterioso e membro da guerrilha.

- Aqui está o jornal e o pacote.

O sujeito suspendeu o capuz e logo se pôde ver um focinho. Ele tinha a face de um cachorro beagle branco. Seu físico era tenaz, atraente.

- Prazer, eu sou o Snoopy.

Charlie sente uma forte dor de cabeça e cai no chão. Ele observa coturnos se aproximando. Mas não consegue levantar a cabeça para ver quem são...

III

O general Charlie acorda às sete da manhã. Um tonitruante barulho o fez saltar da cama. Dessa vez não tem rotina para seguir. O império foi invadido, quiçá conquistado. Não deu tempo algum de reação. Os soldados do reino adversário o renderam antes de ele pensar em qualquer coisa. Poderiam ter esperado ele escovar os dentes, tomar banho etc. e tal. Mas ninguém mais respeita rotina por aqui.

Não demorou muito para Charlie, ex-general, acabar numa cela esquálida, deitado num colchão imundo. Durante semanas como prisioneiro, e sem contato com ninguém do seu império, ficou comendo ração para cachorro numa tigela. No canto da cela havia um papel, com o desenho de uma casa, com o telhado vermelho. No verso da folha, o seguinte trecho: “Por essa razão é que não apenas entender, querer, supor, porém ainda sentir, são aqui o mesmo que pensar”.

Ele já leu isso, no sofá de sua casa, será que foi um sonho? A dor de cabeça volta a incomodá-lo. Seus gemidos chamaram a atenção de uma mulher soldado que ficou de vigiar a sua cela.

Ela abre a porta.

“O que é que há com você?”, pergunta.

“Muita dor de cabeça.”

“Azar o seu!”

“Ei, nós não nos conhecemos? Acho que te conheço de algum lugar.”

“Não conhece não. É a primeira vez que você me vê. Cale a boca”.

Mais alguns dias preso. Até que a mesma mulher abriu a cela novamente.

“O imperador quer falar com você.”, ela disse.

Três soldados fortemente armados colocaram algemas nas mãos de Charlie e o conduziram até o imperador Caminho longo. Passou tanto pelo luxo da nobreza, quanto pelo lixo da rafameia forçada a comer ração de cachorro. Por um momento passou por um conjunto de casas com telhados vermelhos. Havia sempre alguém deitado deles, virados para cima.

Chegou até o palácio do imperador. Pouco antes da sala de vossa alteza, os soldados tiraram suas algemas e o deixaram abrir a porta sozinho. Dentro da sala, o imperador estava sentado de costas para a porta por onde ele acabou de entrar e de frente para a janela utilizada para se embasbacar com o luxo dos privilegiados.

“O que você quer comigo? Onde estão os meus correligionários?”

Nada de o imperador responder.

“Responde!”

Respeita sua alteza, rapaz! Que nada, dias naquele quarto nojento o fizeram perder toda forma de temor. Até a cadeira começa a girar lentamente. Na face do imperador, uma máscara que lembra aquelas usadas para se prevenir na época da peste negra. Mas não se assemelha a um bico de pássaro e sim ao focinho.

O imperador tira a máscara. E lá está a face canina de um beagle branco.

“Prazer, Snoopy”

Acometido por uma forte dor de cabeça, Charlie cai no ---

IV

“Não está funcionando da forma que queremos. O que pode ser?”

“O cachorro apareceu nas três. Há um padrão mais conspícuo.”

“Um trauma?”

“Talvez.”

“Desse jeito, o aparelho não será útil.”

“Precisamos programar para que haja proteção contra traumas.”

“Mas e quanto a ele?”

“Devolva ao planeta dele. Não vai ser mais útil.”

“Acho que o aparelho deve ter danificado a mente dele.”

“Talvez. Mas não é mais problema nosso.”