A Maldição da Rejeição

Eu nasci em uma antiga alcatéia da Califórnia. Não éramos muitos, mas vivíamos como uma grande família que tinha algo ainda mais poderoso que linhagem sanguínea nos unindo: a licantropia.

Quando me lembro da minha época de criança, é impossível esquecer as histórias que meu pai contava sobre a luta que nossa espécie enfrentou até poder andar livremente nas ruas, as maravilhas da transformação e também os horrores dos caçadores de lobisomens. Esse último era usado para assustar as crianças da matilha que gostavam de fugir da vila onde morávamos e se aventurar para a cidade, no meio dos humanos. Eu nunca fui uma dessas crianças, desde cedo entendia a responsabilidade de carregar a licantropia, esperava ansiosamente os meus quinze anos que era onde ocorria a primeira transformação e também quando eu poderia sair para correr na floresta sozinho. Mas assim como nem toda família é perfeita, nossa matilha também tinha seus problemas, e o maior de todos eram aqueles que um dia foram crianças curiosas que queriam cruzar o limite imposto entre nós e os humanos da cidade, e se tornaram adolescentes revoltados e furiosos com as proibições dos mais velhos.

Havia um líder, Isaac, do pequeno grupo de rebeldes e lembro-me muito bem do dia da sua primeira lua, quando fez quinze anos. Eu estava curioso porque as histórias sempre diziam que era muito bonito de ver, mas só aqueles que já tivessem tido o primeiro ciclo de transformação poderiam assistir. Então eu fui escondido, sabia que por se tratando de quem era, não haveria espectadores, somente aqueles que eram necessários, por isso era a oportunidade perfeita. Eu ouvi os gritos antes de realmente ver. Senti meu estômago embrulhando antes mesmo de entender o que estava acontecendo. Mas então eu vi, ouvi e entendi como era a transformação.

Vi Isaac, um adolescente de quinze anos ter todos os ossos do corpo quebrados e restaurados, sua forma mudando conforme os gritos horripilantes foram se transformando em rosnados e uivos. Vi o lobo pela fresta da janela que eu espiava, ele estava acorrentado e parecia... triste. Onde estava a história maravilhosa que meu pai contava? A felicidade de correr pela floresta com a lua no ápice? A liberdade oferecida pelas quatro patas herdadas por nossos ancestrais? Eu voltei para a casa aquela noite tremendo de medo, horror e tristeza pelas mentiras que me contaram e pelo lobo que ficara preso na sua primeira lua. Foi a primeira vez que os pesadelos me invadiram o sono. A primeira noite de muitas.

Alguns dias depois do primeiro ciclo, Isaac sumiu. Diziam que ele havia fugido, ou que tinha ido até os humanos e sido capturado, mas ninguém foi procura-lo. Eu não o esqueci, noite após noite sonhava com os gritos e barulhos de ossos quebrados se transformando em ganidos e uivos de dor. Eu não percebi o que estava acontecendo, que aos poucos estava esquecendo a glória da licantropia, o orgulho da matilha e passava a sentir medo conforme os anos foram correndo e a minha primeira transformação se aproximava. Na minha primeira noite de lua cheia com quinze anos, meu pai me acompanhou até o local em que ocorreria a transformação. O mesmo lugar onde eu espiei Isaac anos antes.

Não era bem uma cela, mas tampouco era um quarto. As paredes resistentes o suficiente para segurar um lobo com fúria pelas correntes presas a elas. Uma única janela, fechada, trazia um pouco de ar para o cômodo. Não havia cama, banheiro ou qualquer outra coisa que pudesse fazer da minha estadia mais confortável. Meu pai falava comigo, as mesmas histórias, enquanto eu era acorrentado a parede:

― Você vai se sentir incrível! É simplesmente mágico quando acontece e você sente a honra de ter o lobo despertando em você...

Ele continuou dizendo, mas tudo o que passava na minha cabeça eram os gritos, a dor... eu não vi a lua chegando ao ápice porque a janela estava fechada, mas senti a licantropia querendo tomar conta do meu corpo. O lobo querendo sair. Meu corpo inteiro queimou e o medo tomou conta de qualquer sentimento de adoração que eu tinha sobre a transformação. Eu entrei em pânico, não queria meus ossos se quebrando nem a tristeza de passar o ciclo acorrentado naquele lugar sujo e desconfortável. Não sei quanto tempo senti cada parte do meu corpo queimando, como se todo o meu sangue fervesse, meus olhos se fecharam para evitar assistir à decepção nos olhos do meu pai porque àquela altura eu já entendia o que estava havendo.

Eu estava rejeitando a licantropia, ignorando a necessidade do meu lobo de surgir naquela noite. Senti o choro crescer pelo meu peito e as lágrimas começarem a transbordar dos meus olhos quando a sensação do fogo em minhas veias ia se abrandando, mas sabia que aquela não seria a última vez que passaria por aquilo, seria noite após noite até a lua cheia ir embora, então deixei que a exaustão tomasse conta e me permiti dormir antes de encarar as consequências. Eu perdi a conta de quantas noites foram, mas sabia que estava chegando ao fim quando usei todos os meus esforços para encarar o rosto desesperado de meu pai que se ajoelhava ao meu lado:

― Meu filho... meu único filho rejeitando a herança... aceite de uma vez! É a última noite, e sua única chance!

Ele não perguntou porque estava acontecendo, só me deixou ver sua máscara de dor e traição. Eu não disse nada e passei a última noite da lua cheia sentindo meu corpo derretendo, mas quando tudo passou... A primeira coisa que vi, foi a minha mãe entrando em meu quarto com uma mochila e me acordando no meio da noite com lágrimas escorrendo pelo seu rosto enquanto dizia:

― Pegue isso e corra, vá embora, você renegou a licantropia meu filho... vai se tornar um marcado se ficar.

Lembro bem da sensação de pânico me tomando quando me imaginei na pele de um marcado: um lobo solitário sem casa, matilha ou sossego. Os marcados eram carimbados com ferro quente na testa e a marca permanecia na forma de lobo para ficar explicito para qualquer bando que não deviam abrigar e aos caçadores ficava evidente que eram criaturas totalmente excluídas de qualquer acordo de paz. Eu não podia sentir o ferro quente. Então abracei minha mãe com todas as minhas forças e fugi para a floresta o mais rápido que consegui enquanto rodava em minha mente as ideias do que eu poderia fazer. Eu renegara a minha herança, a licantropia. Eu não era mais nada.

Passei os anos seguintes me virando de todas as maneiras que eu conseguisse, sabia que ninguém da minha matilha me procuraria, mas me afastei o máximo que pude e o dinheiro permitiu. Conheci outros lobisomens, nunca cruzei com um marcado ou caçadores, mas fui abrigado por outras matilhas e escondi a minha vergonha de não ter passado pela transformação. Tudo estava bem, calmo..., mas nos meus dezoito anos tudo mudou.

Eu havia chego no Brasil e encontrado um bando simpático que me ofereceu abrigo e no momento em que cheguei ao bairro deles, reconheci Isaac. Foi o único durante aquele tempo todo para quem eu contei sobre tudo, desde a minha espiada até a recusa da licantropia, mas quando eu disse que havia feito dezoito e que não tinha sido marcado, vi o pavor tomar seu rosto enquanto ele me arrastava até uma casa, seguindo por um tipo de porão que parecia muito o local das transformações em nossa antiga matilha.

― Hoje é a primeira noite depois da lua cheia... você não tem como saber a história porque ela nunca é contada, mas aos dezoito ocorre a nossa segunda transformação: aquela onde conseguimos usar todos as nossas habilidades sem assumir a forma do lobo e podemos nos transformar quando quisermos, mas não quando se recusa uma vez aos quinze e não é marcado. Quando não há marca, mas se recusa a licantropia, você se torna um amaldiçoado. Não há tempo para te levar o mais longe possível da matilha, então vou fazer de tudo para que fique acorrentado aqui.

― O que? Eu não estou entendendo... que maldição é essa?

― Eu sinto muito, mas a maldição...

Um grito irrompeu da minha garganta antes que ele pudesse continuar a frase. O vi acorrentar rapidamente meus membros em correntes. Mais correntes. Transformação. Eu fugira disso a tanto tempo, e ali estava eu de novo. Senti a tal maldição tomar meu corpo em agonia, não era mais só o fogo queimando meu sangue, mas aquela dor que eu fugi tantos anos atrás também veio. Meus ossos se partiam e eu senti eles se moldando antes de se regenerarem, meus gritos mudaram se tornando roucos e acompanhando as mudanças do meu corpo ao se tornarem uivos conforme eu assumia a forma de lobo. A lembrança das correntes se arrebentando foi meu último pensamento são antes de acordar novamente com um cheiro de sangue e morte impregnado no meu nariz.

Tentei me levantar, mas percebi que embora o sol estivesse ao ápice, eu ainda estava sob quatro patas. Então olhei ao redor e tudo o que vi foram corpos mutilados e estilhaçados. Mortos. Toda aquela matilha estava morta. O gosto de sangue em minha boca e o sangue por todo o meu pelo não deixavam dúvidas de que eu fora o responsável por aquilo. Tantos anos me escondendo e fugindo do lobo que morava em mim para no final ser tomado pela besta e a tal maldição que eu nem mesmo sabia o que era. Eu torci para que ao menos Isaac tivesse conseguido fugir, e como se lesse meus pensamentos de longe, o vi se aproximar de forma cautelosa saindo da pequena floresta onde ele devia ter se escondido. Ouvi seu coração batendo acelerado conforme as palavras dele me batiam a face:

― A maldição te torna uma besta sangrenta que só busca morte. Ela é ativada depois dos dezoito quando o lobo dentro de você dá o lugar a algo maligno para te punir por não ter aceito a licantropia. A marca é uma vergonha, mas todos a aceitam para não se transformarem em bestas porque por algum motivo o ferro em brasas na testa deixa o lobo irritado, mas domado. Tudo é invertido, você só volta a forma humana nas noites de lua cheia, mas mais que isso... Durante todas as noites vai perder sua humanidade, a consciência dos seus atos enquanto procura por sangue e morte, mas durante o dia toda a culpa vai cair por entre seus ombros sem que possa voltar a ser humano.

Eu espiei uma transformação. Rejeitei a licantropia durante minha primeira lua cheia. Fugi da minha matilha com medo da marca. Viajei sozinho até encontrar aquele que me fez iniciar todo esse processo para no final acabar amaldiçoado. Naquele instante deixei a culpa me abater, o sentimento de ter tirado não só uma vida, mas uma matilha inteira que só queria ajudar. Eu sabia que a culpa era somente minha e que toda a responsabilidade pelos meus atos era minha, mas a besta dentro de mim discordava. Em certa manhã, enquanto vagava pela floresta, um lampejo do que foi a noite anterior me atingiu forte o suficiente para que minhas patas cedessem e eu fosse ao chão agonizando com uma dor profunda no peito. Eu, ou a besta que tomava meu corpo pela maldição, havia matado Isaac. Foi meu último pensamento antes de desistir e entregar não só as noites, como também os dias e todas as luas para a maldição. A última vez que estive consciente.

Bianca Gonçalves
Enviado por Bianca Gonçalves em 18/10/2021
Reeditado em 18/10/2021
Código do texto: T7366479
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