O teste
O TESTE
Miguel Carqueija
“O corpo humano pode ser estudado à luz de suas diferentes funções. A função digestiva, por exemplo, é representada por um complexo aparelho, que vai da boca ao reto; inclui a faringe, o esôfago, o estômago, o intestino delgado e o grosso, e órgãos anexos que são o fígado, o pâncreas e a vesícula.
Já o aparelho respiratório vai do nariz até os dois pulmões, formando a árvore respiratória, com a laringe, a traquéia, os brônquios e os bronquíolos.
Temos o sistema ósseo, ou esqueleto, e o sistema muscular.
Temos a epiderme, que nos recobre o corpo, com suas várias camadas...”
— Professor! Professor!
— Hein? Que foi, Alcir?
— Nós temos mesmo que estudar uma matéria tão chata?
— Ela não é chata, rapaz. Eu só estou dando as linhas gerais, depois nós vamos estudar cada aparelho e sistema em detalhes...
— Aí vai ser mais chata ainda!
— Bem, e o que vocês sugerem? Como vão aprender ciências naturais?
— Nós temos nossas antenas, não temos?
— Sim, é claro.
— Ora, se os nossos pais puderam nos ensinar através das antenas, por que não fazem isso nas escolas?
— Vou explicar, ainda que já tenha explicado isso a centenas de seus colegas.
— Os pais não têm outro remédio que o de ensinar seus filhos com as antenas, passando-lhes os conhecimentos básicos, pois quando muito novos não sabemos falar e não compreendemos as coisas facilmente.
— Mas depois que crescemos um pouco e aprendemos a ler, a escrever e a digitar, como poderíamos manter este sistema de aprendizado?
“Seria preciso um professor por aluno, o que, convenhamos, é inviável. Alguém pode objetar que o ensino antenar é mais rápido. Pode ser, mas é mais subjetivo e incerto.
“Nada irá substituir o ensino oral e visual, que pode ser avaliado facilmente. No ensino antenar você corre o risco de abarrotar o seu cérebro com excesso de conhecimentos que não conseguirá catalogar, metodizar.”
— Professor — prosseguiu o garoto, sem se importar com os colegas que já o mandavam calar a boca — eu não concordo com isso! Se eu posso adquirir grandes conhecimentos em questão de segundos...
— Existem mestres particulares que fazem isso, mas sai muito caro — lembrei. — Gastamos muita energia transmitindo conhecimento por antena, é como a mãe que aleita o seu bebê...
Ele enrubesceu com a comparação, fato que não passou despercebido aos seus colegas, tanto que a Vanuza torceu freneticamente as suas antenas e chistou:
— Olha só! O Alcir quer mamar, nessa idade!
Mas nem todos zombaram e agora era o Mercutio quem o secundava:
— Mas, Professor Bertoldo, isto poderia ser feito! É verdade que teria que ser individualmente, mas leva tão pouco tempo transmitir uma aula completa que o senhor poderia fazer isso com todos nós, um por um, e terminaria em menos tempo que uma aula convencional!
— Isso acabaria com a coletividade da aula, e francamente destruiria com a pedagogia! Numa aula se trocam idéias, se esclarecem dúvidas...
— O que nós queremos não é aprender? Ou será que os senhores, mestres, têm medo de nos passar muitos conhecimentos?
— E por que teríamos medo disso?
— Ora, porque nós poderíamos ultrapassá-los! — exclamou a Azurita.
Senti que gradativamente os alunos da minha turma iam aderindo àquela reivindicação, sem refletir na insensatez da mesma.
— Está bem — falei por fim. — Vou lhes propor uma experiência. Darei a aula normal, como sempre faço. Um de vocês, porém, vai esperar lá fora, e depois terá a sua aula antenar. E depois, sabatina para todos. Veremos, então, se a aula antenar dá tão bons resultados assim...
E é claro que escolhi o “sabichão” que havia iniciado aquela mazorca: o Alcir. Ele só faltou pular de alegria, suas antenas agitando-se tão freneticamente que pareciam prestes a pular fora da cabeça. Mas julguei vislumbrar em sua expressão qualquer coisa como um medo não admitido, não assumido.
Ele foi esperar na copa e eu prossegui com a minha aula normal, embora já desmotivado, o que eu queria era efetuar logo o teste. Para isso eu fôra desafiado...
Encerrei a aula diante da impaciência dos alunos e chamei o Alcir de volta. Lá veio ele, sob os incentivos da Azurita, do Mercutio, do Gorgonzola e dos demais — aproximadamente metade da turma — que se haviam entusiasmado com a idéia do “rebelde”.
— Estou pronto, mestre — disse Alcir, com um riso de desafio.
— Então sente-se, por obséquio, em frente à minha mesa.
Ele não se fez de rogado e nós dois nos encaramos, num instante de expectativa. Mas notei que a sua respiração estava rápida. O pulso, se eu pudesse examiná-lo, na certa estaria também alterado.
— Pois bem, vamos lá então.
Inclinei-me sobre a mesa e ele fez o mesmo; e minhas antenas tocaram as dele. Em seguida as pontas se enrodilharam, duas a duas. Tratei então de transmitir, por troca química, as noções referentes à aula recém-dada, sobre a anatomia do corpo humano. Para isso eu precisava pensar atentamente no conteúdo da lição e, bem ditas as coisas, esforcei-me para agir honestamente; até mantive diante dos olhos os apontamentos básicos. Pensei no cólon, no apêndice, no suco gástrico, na língua, na epiglote, nos movimentos peristálticos, nos fenômenos do apetite e da fome, em tudo enfim que fazia parte da dissertação daquele dia.
Levou menos de cinco minutos.
Quando terminei, percebi as gotas de suor no rosto daquele meu discípulo; mas ele as enxugou e se ergueu, ainda desafiador:
— Muito bem, Professor Bertoldo. Agora Estou pronto para o que der e vier.
Eu o mandei de volta para a sua carteira e espalhei as folhas com a sabatina. Apenas dez perguntas, pois eu me encontrava impaciente para chegar ao resultado do teste.
Os alunos que receberam a aula oral responderam quase tudo certo.
E eis aqui o teste do Alcir:
P — Qual o nome do orifício de comunicação do estômago com o intestino delgado?
R — Picreas.
P — Como se chamam as lesões na parede interior do estômago?
R — Figaceras.
P — Qual é o processo de assimilação dos alimentos?
R — Digesôfago.
P — Quais são os sabores básicos?
R — Dotestino, Amargua, Aciglote e Salente.
P — Quantos são os dentes permanentes?
R — Trinta e dois.
P — Cite algumas das substâncias básicas dos alimentos:
R — Proteículas, inteçúcares, gordurocas, fariminas e fibretos...
P — Que nome se dá ao processo contínuo de assimilação e desassimilação de alimentos?
R — Metabonição.
Chega, não é?
O problema é que uma parte das informações flui por uma antena, outra parte pela outra, e nos primeiros sete anos o cérebro possui um mecanismo próprio para separar tudo, evitando misturas. Mais tarde o aprendizado antenar torna-se difícil por causa da diminuição da capacidade para separar os conhecimentos. Com exceção da quinta pergunta, em si mais simples, tudo o mais se fundiu na mente do garoto, como num misturador de cimento. Daí a fusão de palavras como proteína e vesícula, doce e intestino, metabolismo e inanição... o resto deixo para vocês deduzirem.
É o que dá, quando o aluno quer ser mais sabido que o professor...
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O TESTE
Miguel Carqueija
“O corpo humano pode ser estudado à luz de suas diferentes funções. A função digestiva, por exemplo, é representada por um complexo aparelho, que vai da boca ao reto; inclui a faringe, o esôfago, o estômago, o intestino delgado e o grosso, e órgãos anexos que são o fígado, o pâncreas e a vesícula.
Já o aparelho respiratório vai do nariz até os dois pulmões, formando a árvore respiratória, com a laringe, a traquéia, os brônquios e os bronquíolos.
Temos o sistema ósseo, ou esqueleto, e o sistema muscular.
Temos a epiderme, que nos recobre o corpo, com suas várias camadas...”
— Professor! Professor!
— Hein? Que foi, Alcir?
— Nós temos mesmo que estudar uma matéria tão chata?
— Ela não é chata, rapaz. Eu só estou dando as linhas gerais, depois nós vamos estudar cada aparelho e sistema em detalhes...
— Aí vai ser mais chata ainda!
— Bem, e o que vocês sugerem? Como vão aprender ciências naturais?
— Nós temos nossas antenas, não temos?
— Sim, é claro.
— Ora, se os nossos pais puderam nos ensinar através das antenas, por que não fazem isso nas escolas?
— Vou explicar, ainda que já tenha explicado isso a centenas de seus colegas.
— Os pais não têm outro remédio que o de ensinar seus filhos com as antenas, passando-lhes os conhecimentos básicos, pois quando muito novos não sabemos falar e não compreendemos as coisas facilmente.
— Mas depois que crescemos um pouco e aprendemos a ler, a escrever e a digitar, como poderíamos manter este sistema de aprendizado?
“Seria preciso um professor por aluno, o que, convenhamos, é inviável. Alguém pode objetar que o ensino antenar é mais rápido. Pode ser, mas é mais subjetivo e incerto.
“Nada irá substituir o ensino oral e visual, que pode ser avaliado facilmente. No ensino antenar você corre o risco de abarrotar o seu cérebro com excesso de conhecimentos que não conseguirá catalogar, metodizar.”
— Professor — prosseguiu o garoto, sem se importar com os colegas que já o mandavam calar a boca — eu não concordo com isso! Se eu posso adquirir grandes conhecimentos em questão de segundos...
— Existem mestres particulares que fazem isso, mas sai muito caro — lembrei. — Gastamos muita energia transmitindo conhecimento por antena, é como a mãe que aleita o seu bebê...
Ele enrubesceu com a comparação, fato que não passou despercebido aos seus colegas, tanto que a Vanuza torceu freneticamente as suas antenas e chistou:
— Olha só! O Alcir quer mamar, nessa idade!
Mas nem todos zombaram e agora era o Mercutio quem o secundava:
— Mas, Professor Bertoldo, isto poderia ser feito! É verdade que teria que ser individualmente, mas leva tão pouco tempo transmitir uma aula completa que o senhor poderia fazer isso com todos nós, um por um, e terminaria em menos tempo que uma aula convencional!
— Isso acabaria com a coletividade da aula, e francamente destruiria com a pedagogia! Numa aula se trocam idéias, se esclarecem dúvidas...
— O que nós queremos não é aprender? Ou será que os senhores, mestres, têm medo de nos passar muitos conhecimentos?
— E por que teríamos medo disso?
— Ora, porque nós poderíamos ultrapassá-los! — exclamou a Azurita.
Senti que gradativamente os alunos da minha turma iam aderindo àquela reivindicação, sem refletir na insensatez da mesma.
— Está bem — falei por fim. — Vou lhes propor uma experiência. Darei a aula normal, como sempre faço. Um de vocês, porém, vai esperar lá fora, e depois terá a sua aula antenar. E depois, sabatina para todos. Veremos, então, se a aula antenar dá tão bons resultados assim...
E é claro que escolhi o “sabichão” que havia iniciado aquela mazorca: o Alcir. Ele só faltou pular de alegria, suas antenas agitando-se tão freneticamente que pareciam prestes a pular fora da cabeça. Mas julguei vislumbrar em sua expressão qualquer coisa como um medo não admitido, não assumido.
Ele foi esperar na copa e eu prossegui com a minha aula normal, embora já desmotivado, o que eu queria era efetuar logo o teste. Para isso eu fôra desafiado...
Encerrei a aula diante da impaciência dos alunos e chamei o Alcir de volta. Lá veio ele, sob os incentivos da Azurita, do Mercutio, do Gorgonzola e dos demais — aproximadamente metade da turma — que se haviam entusiasmado com a idéia do “rebelde”.
— Estou pronto, mestre — disse Alcir, com um riso de desafio.
— Então sente-se, por obséquio, em frente à minha mesa.
Ele não se fez de rogado e nós dois nos encaramos, num instante de expectativa. Mas notei que a sua respiração estava rápida. O pulso, se eu pudesse examiná-lo, na certa estaria também alterado.
— Pois bem, vamos lá então.
Inclinei-me sobre a mesa e ele fez o mesmo; e minhas antenas tocaram as dele. Em seguida as pontas se enrodilharam, duas a duas. Tratei então de transmitir, por troca química, as noções referentes à aula recém-dada, sobre a anatomia do corpo humano. Para isso eu precisava pensar atentamente no conteúdo da lição e, bem ditas as coisas, esforcei-me para agir honestamente; até mantive diante dos olhos os apontamentos básicos. Pensei no cólon, no apêndice, no suco gástrico, na língua, na epiglote, nos movimentos peristálticos, nos fenômenos do apetite e da fome, em tudo enfim que fazia parte da dissertação daquele dia.
Levou menos de cinco minutos.
Quando terminei, percebi as gotas de suor no rosto daquele meu discípulo; mas ele as enxugou e se ergueu, ainda desafiador:
— Muito bem, Professor Bertoldo. Agora Estou pronto para o que der e vier.
Eu o mandei de volta para a sua carteira e espalhei as folhas com a sabatina. Apenas dez perguntas, pois eu me encontrava impaciente para chegar ao resultado do teste.
Os alunos que receberam a aula oral responderam quase tudo certo.
E eis aqui o teste do Alcir:
P — Qual o nome do orifício de comunicação do estômago com o intestino delgado?
R — Picreas.
P — Como se chamam as lesões na parede interior do estômago?
R — Figaceras.
P — Qual é o processo de assimilação dos alimentos?
R — Digesôfago.
P — Quais são os sabores básicos?
R — Dotestino, Amargua, Aciglote e Salente.
P — Quantos são os dentes permanentes?
R — Trinta e dois.
P — Cite algumas das substâncias básicas dos alimentos:
R — Proteículas, inteçúcares, gordurocas, fariminas e fibretos...
P — Que nome se dá ao processo contínuo de assimilação e desassimilação de alimentos?
R — Metabonição.
Chega, não é?
O problema é que uma parte das informações flui por uma antena, outra parte pela outra, e nos primeiros sete anos o cérebro possui um mecanismo próprio para separar tudo, evitando misturas. Mais tarde o aprendizado antenar torna-se difícil por causa da diminuição da capacidade para separar os conhecimentos. Com exceção da quinta pergunta, em si mais simples, tudo o mais se fundiu na mente do garoto, como num misturador de cimento. Daí a fusão de palavras como proteína e vesícula, doce e intestino, metabolismo e inanição... o resto deixo para vocês deduzirem.
É o que dá, quando o aluno quer ser mais sabido que o professor...
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