Ferrugem
FERRUGEM
1.
– Bom dia, Leon, dormiu bem? – a voz suave e feminina, tão tranquila que parecia ainda parte do sonho que ele estava tendo até há pouco, envolvendo uma mulher lindíssima sem roupa nenhuma, apenas esperando-o de braços abertos. – São 7:21 da manhã. Gostaria de ouvir alguma música enquanto se arruma para o trabalho?
– Não, obrigado, Pietra. Pode deixar o som natural mesmo.
– Entendido – sibilou, e quando respondia assim, monossilábica, Leon sempre julgava que Pietra estava insatisfeita com a ordem que recebera. Era bobagem, ele sabia. P.I.E.T.R.A. não passava de um sistema operacional da sua carapaça, uma voz que estava ali para ajudá-lo no seu dia-a-dia; mas quando ele dizia que queria dormir um pouco mais, ou que talvez se atrasaria para algum afazer, Pietra se limitava aos seus “claro”, “ok”, como quem precisa engolir a própria indignação para acatar as ordens de um patrão incompetente.
De todo caso, a ordem foi recebida e o efeito de silêncio que estava ativado até então foi desabilitado deixando entrar o som externo, os clamores agonizantes, os gritos de dor e o bater de dentes mais alto de um dos zumbis ali no canto, que estava tentando roer a parte inferior da cama de Leon.
Enquanto ele se levantava com certo esforço para erguer aquela estrutura toda deixou escapar um pequeno urro, o que serviu de aviso para Pietra, que aliviou o peso sobre o seu usuário.
A carapaça era pesada e precisava que fosse assim, com aquele ferro todo para manter Leon ali dentro em segurança. Um zumbi mais desaforado tentou atacar a sua perna direita.
Era inútil, claro, e enquanto Leon espreguiçava os braços, fez um pequeno movimento para tirá-lo dali, e o maquinário tratou de interpretar o comando e lançar o zumbi longe, se espatifando contra a parede do quarto.
– Posso ativar o sistema higienizador? – Pietra perguntou no momento em que seu usuário se levantava e caminhava até o espelho meio turvo da parede.
– Claro, claro.
Leon acompanhou o momento em que o vapor foi liberado em jatos por dentro do seu aparelho, limpando a sua pele com vários produtos químicos para evitar qualquer odor desagradável e também que alguma bactéria começasse a se proliferar naquele espaço tão pequeno. Ele já ouviu histórias de que antigamente, crianças e até jovens como ele, com seus 19 anos, não gostavam de banhos, como esse efeito de limpeza corporal era chamado na época, e ele achava totalmente compreensível, porque se agora que todo esse processo leva menos de um minuto ele já acha insuportável aquela coceira formigando na pele, imagina na época em que precisava ser manual e levava mais de vinte minutos? Diante do espelho, o pequeno visor na frente do seu rosto se embaçava com os vapores até a sua própria imagem desaparecer de vez. Era a única parte do seu corpo que ficava visível para alguém que olhava de fora e também a sua única maneira de ver o exterior. E assim, na falta da opção, Leon desviou novamente olhar para dentro do próprio aparelho repleto de luzes e circuitos, que agora ativava suas turbinas de ar quente para secar o seu corpo todo, cada centímetro de pele, o umbigo, as curvas da virilha, das axilas, e por fim seu rosto.
– Higienização completa.
O vidro desembaçou e seu rosto voltou a aparecer diante do espelho, bastante escondido pela carapaça, aquela estrutura que lembrava muito um escafandro dourado, pesado e de difícil locomoção, mas pelo menos fazia o que prometia, mantinha-os vivos e seguros dos zumbis que se infestaram pelo planeta.
– Leon, seu transporte chegará em cinco minutos – Pietra avisou, já que esse parecia ser um daqueles dias em que o rapaz estava mais desligado que o de costume, pensando longe, ou talvez não pensando em nada.
– Claro, estou a caminho.
Ele levava menos de trinta segundos para sair do cubículo em que vivia. Ninguém tinha muito luxo, e nem se podia esperar muito de lugar nenhum já que a única coisa que qualquer ser humano precisava para sobreviver agora era a carapaça, onde praticamente eram auto-sustentáveis, então havendo uma cama para se deitar enquanto o sistema recarrega suas energias e um teto para proteger o aparelho de metal das chuvas, o resto era dispensável e fútil – que ficasse para os zumbis.
O prédio em que vivia, um amontoado de cubículos como o seu que se erguia por centenas de andares até quase tocar o céu de nuvens alaranjadas, tinha uma parada para transporte logo na frente, e Leon, como era de se esperar, chegou atrasado e estava lá atrás na fila de trabalhadores esperando a condução. Todos devidamente paramentados, ignorando os zumbis que tentavam inutilmente pular sobre eles, derruba-los e abrir alguma fresta nas estruturas resistentes como pequenos tanques de guerra. Isso já era tão comum nas últimas décadas que a maioria nem se dava conta mais da existência dessas criaturas. Dentro de seus mundos seguros e particulares davam play em alguma música ambiente, o filme que arrasou nas bilheterias no último mês ou algum programa de variedades e ignoravam completamente o exterior desolado enquanto clicavam permitindo que a carapaça fosse automaticamente para seus postos de trabalho.
Quando o transporte chegou, uma minhoca quilométrica de metal que recebeu todos com pressa pela frente enquanto da parte de trás outros tantos desciam, Leon recebeu um convite de Pietra para assistir a um programa que ela tinha certeza de que ele iria gostar.
– Não estou muito interessado agora, obrigado.
Em frente ao seu assento, um painel com pequenas reentrâncias oferecia as opções de café da manhã, torrada e café; bacon, ovos e suco de laranja; pão com manteiga e chá de maracujá. Leon afundou o dedo na opção desejada, mais pelo gosto do chá que do pão, que ele nem gostava tanto, e uma cápsula entrou na sua carapaça por aquele dedo, num sistema automatizado que enviou aqueles produtos sintéticos por um conjunto de canos invisíveis na estrutura de metal até chegarem em forma de caloria no seu estômago e em forma de ondas elétricas no seu cérebro.
Hum, doce demais o chá hoje, pensou ele de olhos fechados para aproveitar melhor a refeição.
E de olhos fechados ouviu o som dos pingos gordos de chuva do lado de fora. Nesse horário sempre chovia no verão. Da janela acompanhava os pedestres ativando a luz vermelha no visor do rosto dos seus usuários e o tocar de um alarme exagerado e característico. Leon conhecia bem aquele sistema, que ainda era o mais comum, mesmo que já houvessem alguns mais modernos e menos escandalosos. Quando aquela luz estava acesa, era porque o sistema precisou tomar o controle da carapaça, e o usuário não tinha a opção de não obedecer, mas eram situações raras, como aquela em que os comandos automatizados tomavam o controle para saírem o mais rápido possível da chuva. A ferrugem era um problema real naquele sistema quase perfeito, e desde que o céu estava laranja graças às bombas antigas que falharam em exterminar os zumbis e a água caía ácida como vinagre, proteger-se da chuva era uma medida emergencial necessária.
Leon lembrava como era incômodo quando isso acontecia com ele, o maquinário andando e empurrando as suas pernas mesmo que ele não quisesse, o visor vermelho que não permitia nem que enxergasse em que direção estava indo, e o pior de tudo, o lembrete claro de que apesar de poder dar as ordens e ser dono das suas configurações sobre temperatura, umidade do ar, aroma ambiente, na realidade ele só estava no controle porque Pietra foi programada para permitir. Ela era muito mais forte com seus circuitos e seu metal fundido.
Dois canos esvaziaram sua bexiga e seu intestino enquanto um zumbi lambia repetidas vezes seu visor tentando morder o rosto humano lá dentro.
– Pietra, quer saber? Dê play naquele programa que você falou.
2.
Karas era líder absoluta de mercado, então nunca faltava clientes a serem atendidos por Leon, seja alguns querendo trocar completamente suas carapaças por um modelo mais moderno, ou então buscando pequenos upgrades dos vendidos separadamente, que eram descarregados também em cápsulas e permitiam que o assistente pessoal de cada um recebesse novas fontes de informação para melhor atender o usuário.
As cápsulas de música eram disparadamente as que mais vendiam, seguidas pelas de filmes e em seguida algumas mais especificas, como as que alteravam a voz da assistente pessoal ou as que sussurravam frases motivacionais ou eróticas durante o sono do usuário, para lhe garantir melhores sonhos.
E talvez por isso tenha chamado tanta atenção o pedido incomum daquela cliente, depois de horas seguidas recebendo os mesmos pedidos no balcão da loja, era um refresco quando alguém dizia algo assim:
– Eu queria uma cápsula de conhecimento – a voz baixa e discreta, como se fosse um segredo que não poderia ser ouvido pelo homem logo atrás na fila.
Leon estava atento ao visor do balcão e talvez isso tenha ajudado na grande impressão que sentiu quando levantou os olhos e a viu pela primeira vez. Por trás do visor, o rosto doce e misterioso, cheio de sardas charmosas que eram emolduradas pelo cabelo ruivo, radiante como se tivesse iluminação própria lá dentro.
– Qu-que tipo de conhecimento?
Droga, nunca tinha gaguejado assim para um cliente. Ninguém nunca gaguejava, esse sinal de hesitação num mundo onde todos têm muito bem definido o que precisam fazer, como se comportar e o que estava determinado a fazer. E isso era tão inédito que Leon sabia que ela também tinha notado, aumentando a sua hesitação e a certeza de que se tentasse falar mais alguma coisa gaguejaria outra vez, ainda mais agora que ela o olhava com mais intensidade.
Castanhos, seus olhos.
– Han... eu preciso de uma sobre o tema “ferrugem”.
Lá estava nela também, a hesitação que completava a sua. Possivelmente a primeira conversa de verdade a acontecer dentro daquela empresa, dentro daquele polo comercial, dentro daquela cidade, daquele mundo repleto de zumbis que serpenteavam o ambiente em busca de algum resto de comida.
Silêncio. E por mais que tenha durado apenas alguns segundos aquele silêncio os unia e os denunciava, atraía a atenção dos demais na fila, que sabiam exatamente quanto tempo demorava para alguém ser atendido e despachado eficientemente.
Leon se apressou a procurar no sistema. Não havia muita informação sobre o assunto, apesar de todos saberem que a ferrugem era uma preocupação geral, como o próprio sistema lidava com isso, eles não precisavam ficar sabendo as razões ou origens, feito uma verdade que de tão universal torna-se invisível.
Páginas e páginas de programas e upgrades passando na tela do balcão, e enquanto procurava a cápsula desejada, Leon não conseguiu evitar de levantar os olhos discretamente, somente para encontrar os dela outra vez, que ainda estavam fixos nele, atentos e misteriosos.
- Achei uma cápsula sobre como limpar manchas superficiais de ferrugem na couraça da carapaça, seria isso?
– Hm, não é bem isso... eu queria saber... como causar ferrugem. – mesmo que tenha sido apenas um sussurro, foi o bastante para acender uma pequena luz vermelha e piscante no canto do visor de Leon, sinal de que Pietra estava ativada.
– Leon, gostaria de ajuda?
– Não, Pietra, estou bem. Pode desativar.
– Claro – disse ela, e se silenciou, embora a bolinha vermelha continuasse ali, insistentemente piscando.
Como ele não encontrou nada de útil com a palavra-chave “ferrugem”, Leon precisou ser mais criativo. Ele sabia que a chuva causava o problema nas carapaças, então tinha que ter alguma relação com isso, e pesquisou usando os termos “água”, “chuva”, “metal”, para receber uma lista com mais um punhado de cápsulas de conhecimento, todas com pouquíssimas compras, e que pareciam mais um monte de informações técnicas que não deviam interessar ninguém.
No entanto, guiando-se pelas imagens ilustrativas em cada cápsula, Leon se deparou com uma que era ilustrada por uma grande embarcação de metal naufragada, e que visivelmente estava coberta e corroída por ferrugem. Devia se tratar de uma imagem antiga, de antes das nuvens se tornarem laranjas, e a chuva cair avermelhada, porque na imagem era tudo muito azul, um tom lindíssimo de azul.
– Acho que encontrei algo para você, se chama “o perigo da salinidade para a sobrevivência do Sistema” – Leon fez uma pausa. – A palavra sistema, está em maiúsculo...
Ela sabia o que aquilo queria dizer, que Sistema poderia tanto estar se referindo ao sistema de fios e chips da sua carapaça, quanto a essa entidade maior, essa sociedade inteira que conseguiu sobreviver graças a rede interligada que auxiliava os humanos nessa era tão difícil.
– Perfeito, vou levar – ela aceitou, eufórica, enquanto colocava o seu dedo na entrada correspondente para receber a cápsula. – Muito obrigada!
Assim que a transação foi realizada, o visor no balcão comunicou que LÍVIA MENDES recebeu uma cápsula de conhecimento com sucesso.
Lívia, que nome lindo, ele pensou uma última vez enquanto a via partindo dali e o próximo cliente se aproximava.
Pietra, coloque na minha lista de compra um exemplar daquela cápsula que ela pediu.
Mas Pietra não respondeu, a bolinha vermelha não estava mais ali.
De fato, no final do expediente, quando Leon pediu para que Pietra lesse sua lista de compras não estava lá a capsula que ele solicitou mais cedo, mas com sorte ainda lembrava claramente do título e conseguiu fazer a compra, recebendo a informação de que era um arquivo de texto, e Pietra não era habilitada para fazer a leitura para ele como costumava ser feito com arquivos semelhantes, então ele precisaria ler por conta própria, algo que estava em bastante desuso desde a automatização.
Pensou em começar a leitura no transporte de volta para casa, mas estava cansado do dia de trabalho e sua cabeça tinha dificuldade em entender a linguagem complicada, as ilustrações sobre o efeito da oxidação, os gráficos sobre o aumento do sal na água, o ar seco resultante dos gases pesados como metano que os zumbis dispensavam na atmosfera, e não carbono como os seres humanos. Tudo muito complexo e maçante, não conseguia imaginar alguém como Lívia se interessando por algo assim e considerou que nesse momento ela devia estar decepcionada com o que ele a vendeu.
– Pietra, você pode colocar a televisão no canal 1, por favor? – pediu, desistindo da leitura, pelo menos por enquanto.
– Com certeza, Leon. Reproduzindo canal 1, noticiário lo...
Subitamente sua voz foi interrompida pelo auto-falante do veículo: “Atenção estamos desviando da nossa rota usual devido a um acidente a frente, calculamos um atraso de dez minutos na viagem, desculpem o transtorno.”. A janela do veículo se tornou refletiva como um espelho naquele momento para poupar os passageiros da imagem do acidente do lado de fora, mas logo a rota foi alterada com uma virada brusca a esquerda e o vidro voltou ao normal, permitindo que Leon visse uma região totalmente nova.
Não conhecia nada da cidade para além do seu trajeto de rotina, mas, a bem da verdade, a maioria das pessoas não conhecia, com exceção dos que trabalhavam na rua, todo mundo pegava seu transporte em casa, chegava ao posto de trabalho e era trazido na porta de casa outra vez. Então seus olhos brilhavam ao conhecer todos os outros prédios que existiam tão próximos do seu, disputando qual arranharia com mais profundidade o céu do fim da tarde.
Até que alguns minutos depois, naquele novo caminho algo chamou sua atenção.
– Pietra?
– Sim, Leon?
- O que é aquilo ali ao fundo?
– Me desculpe, o que exatamente?
– Ali, a linha avermelhada depois daqueles prédios maiores...
– Um segundo, estou calculando – no canto da tela do seu visor apareceu um mapa da cidade, com o ponto em movimento que representava a sua localização, e uma grande mancha laranja que se estendia para muito longe.
– Aparentemente, ali é o Oceano.
Oceano Atlântico.
– O oceano?... Eu não sabia que morava tão perto do mar...
– Você mora a um quilometro do mar, não é uma distância segu...
– Como faço para ir até lá em algum domingo ou feriado? – perguntou, interrompendo-a.
– Sinto muito Leon, o mar é uma região proibida, o nosso equipamento não é resistente para tais condições e a vida dos nossos usuários seriam postas em perigo de ataque zumbi.
– Compreendo...
O veículo voltou para a sua rota usual depois de contornar o imprevisto, e todos os prédios já eram ordinários; todas as ruas, idênticas.
– Mais alguma coisa?
– Não, mais nada.
– Retomando canal 1, noticiário local.
E foi quando ele viu, pegando a matéria do jornal bem no finzinho, o último instante da reportagem ao vivo sobre o acidente que ocorrera ali perto.
– Pietra, volte a matéria.
– O noticiário é ao vivo, Leon, não é possível voltar.
– Pois encontre essa matéria online, procure em outros canais. Preciso ver aquilo!
– Procurando. Isso pode levar alguns minutos.
Mas mesmo que ela não encontrasse, aquele pequeno instante foi o bastante para Leon ter certeza do que vira. O acidente, a pessoa jogada no meio da rua, com a parte do capacete desacoplada, e um grupo de pessoas com carapaça tentando espantar a todo custo os zumbis dali, mas já era tarde, já haviam cercado a vítima e agora a devoravam vorazmente, deixando apenas o cabelo no asfalto empapado de sangue. Aquele mesmo cabelo ruivo.
3.
Quem dera Leon pudesse se livrar daquela lembrança, quem dera adiantasse de alguma coisa os sonhos que ele tivera nas noites seguintes, aquela mulher nua, que sussurrava no seu ouvido que ele precisava deixar aquela história para trás, que ele estava enganado, o acidente não se tratava da mesma mulher ruiva, que Lívia ainda devia estar por aí viva e bem lendo seus textos rebuscados sobre ferro velho. Mas não adiantava, ele acordava e tudo voltava com toda força na sua mente. As sardas charmosas, o castanho dos olhos, o ruivo do cabelo no asfalto sujo. E o azul.
O azul do mar.
Isso não saía da sua mente, o azul na foto que ilustrava o texto e que o fazia lê-lo e relê-lo obsessivamente, porque nunca antes na sua vida toda ele vira aquela cor, já não existia aquele azul, aquele mar. O mundo agora jazia mergulhado no vermelho do sangue das vítimas, nas chagas dos zumbis, no dourado das carapaças, no radioativo das nuvens, e sua vista doía, cansada. Algo que sempre sentiu e só agora, quando foi apresentado a aquele azul, conseguia distinguir.
– Leon, você recebeu uma mensagem da sua empresa – Pietra avisou, a voz suave de sempre, começando a dar os recados do dia sem ser acionada, o que se tornava mais comum já que era cada vez menos solicitada. – Você receberá um aumento significativo de salário, e a partir de amanhã sua carga horária vai aumentar em três horas diárias, então se você concordar, poderei te acordar as 4:15 para que você possa ir para a fila do transporte...
O aumento em carga horária era uma honra rara em grandes empresas como a Karas Carapaças, e um sinal evidente de que Leon tinha um futuro brilhante no emprego, mas a comemoração que Pietra esperava não veio, ele ainda estava naquele silêncio pensativo diante da sua imagem no espelho. Seu rosto, aquele pequeno visor que resumia tudo o que Leon conhecia sobre si mesmo. O que havia de individual nele, para além do entulho dourado que o protegia dos zumbis lá fora, mas também o escondia de si mesmo.
No prolongado silêncio, se tornava presente o som forte da chuva lá fora.
– Leon? Você está se sentindo bem?
– Com a concentração de sal presente nos oceanos hoje em dia, a carapaça não resistiria nem a um minuto submersa em água...
– Desculpe, eu não entendi seu pedido. Poderia repetir?
– Está correto, não é? Esse ferro aqui não resistiria nem a um minuto de água...
– Meu sistema não está habilitado a interpretar esse tipo de dado.
– Está correto sim – ele mesmo emendou. – E então sabe o que eu me pergunto, se é um mecanismo tão frágil, o que é isso que o sistema usa para me banhar?
– Não estou capacitada para respo...
– Melhor ainda: o que é isso que o sistema usa para me alimentar? Para me manter hidratado?
– Não estou habili...
Bateu a mão com força contra o espelho, que se espatifou em milhares de fragmentos pontiagudos pelo chão.
– Responda a minha pergunta, Pietra!
– Atenção, esse som atrairá mais zumbis para a sua região. É recomendado que se retire desse local até que a área fique segura outra vez...
– O que controla os sonhos que estou tendo desde aquele dia? O que controla a carapaça quando ela segue automaticamente para algum lugar?
– Leon, eu não estou habilita...
– O que me controla, Pietra? – gritou. – O que te controla?
E enquanto ele proferia essas últimas palavras o lugar foi invadido pela turba de zumbis, nunca antes tantos deles estiveram por ali, famintos e desesperados para encontrar quem causara o barulho. E o visor de Leon se tornou vermelho subitamente, na mesma hora em que o alarme começou a tocar.
– Atenção usuário. Devido ao alto número de zumbis na sua região, o seu sistema está sendo controlado temporariamente para te retirar desse local, te devolveremos o controle assim que sua segurança for reestabelecida.
– Pietra, cancele isso.
Os pés da carapaça começaram a se movimentar, empurrando os seus junto, como se uma pedra o arrastasse.
– Não é possível cumprir o seu pedido.
Ele foi retirado do seu quarto, no corredor do prédio outros usuários seguiam seus caminhos normalmente, ignorando o alarme de Leon e a sua luz vermelha e chamativa, e por um instante o rapaz considerou que eles poderiam realmente não estar vendo-o. Podia confiar no que via? Podia ter certeza de que já viu alguma coisa real em toda sua vida? Eram seus olhos mesmo que enxergavam o mundo ou o visor da carapaça com os filtros pré-comprados e selecionados por Pietra?
– Eu não quero esse comando, consigo sair daqui por conta própria...
– Não é possível cumprir o seu pedido.
Descia os degraus com lentidão, as articulações do maquinário tinham trabalho em se dobrar com o usuário de debatendo ali dentro, como um filhote tentando quebrar o ovo, mas um ovo de ferro e circuitos.
– Pietra, isso é uma ordem!
– Não é possível cumprir o seu pedido.
E foi quando ele decidiu arriscar tudo, ali no último lance comprido de escadas, sem se preocupar mais se sairia daquela situação ferido ou devorado por zumbis, como aconteceu com ela. Como aconteceu com Lívia. Leon não conseguiria mais passar sequer um dia na sua prisão atarantada. E se jogou com força, com todo o peso do seu corpo, saltando em frente, o que nem a carapaça conseguiu conter, e caiu pesadamente, rolando as escadas compridas. Metal se espatifando em concreto. Os alarmes ecoando dentro do aparelho que avarias severas foram detectadas, a voz que antes era tão suave, agora soava mecânica, distorcida, cacofônica. Até que tombou no térreo estreito.
A máquina quebrada ainda o protegia das criaturas do exterior, mas estava danificada demais para controlar os movimentos do pesado equipamento, o que lhe devolveu o controle, e mesmo ferido Leon se levantou, caminhou em direção a saída, ignorou todos os comandos de Pietra pedindo que por favor seguisse até a manutenção mais próxima antes que os zumbis conseguissem quebrar a estrutura. Mas nada o parou, nem a chuva do lado de fora, nem os avisos insistentes, nem a luz vermelha no seu vistor, o letreiro alertando perigo de ferrugem, perigo de abertura na carapaça.
Leon continuou caminhando na direção que ele não ia esquecer jamais. Mancando, sangrando, chorando. Mas ele não parou, ele não se intimidou com a turba furiosa de zumbis, com as viaturas de polícia tentando cercá-lo. Nada.
Nada o impediu de pisar naquela areia da praia escura e poluída, nada o impediu de caminhar para dentro do mar, se deixando chocar contra as ondas laranjas e radioativas, nada o impediu de deixar a água chegar até a altura da cintura da sua carapaça, que entrou em pane e desligou seus circuitos, e silenciou suas vocês e seus alarmes, e desacoplou seus canos e tubos.
Mas ainda não era o bastante, ainda precisava sentir a água, sentir de verdade, na pele e não do lado de fora daquele casulo mecânico. Nem que isso custasse sua vida devorado pelos zumbis, que importava agora?
Leon fechou os olhos, segurou com as duas mãos o capacete já enferrujado e o forçou para cima, emitindo um forte som de descompressão quando foi desacoplado do resto do aparelho, deixando o ar entrar.
O ar, pela primeira vez ele sentia o verdadeiro ar.
E Leon mergulhou, supondo que os zumbis o devorariam ali mesmo, mergulhou na água gelada. E se deleitou com aquela sensação, então aquilo era água? Aquilo era gelado? Aquilo era o seu corpo sentindo alguma coisa de verdade, e não apenas um impulso elétrico.
E Leon se levantou outra vez, abriu os olhos e quando sua visão se acostumou à claridade, estava maravilhado.
O céu era azul. O céu era todo limpo e azul. E o mar era azul, uma vastidão selvagem e azul.
Leon se voltou para trás, para a praia de onde viera, e não havia mais zumbi nenhum, nunca mais lidaria com zumbi nenhum, nem chuva ácida nem alarmes escandalosos.
As pessoas na areia o observavam com trajes de banho, mas daquela distância não conseguia decifrar seus rostos. Menos o dela, que entendia muito bem o que era aquilo que ele estava sentindo e apenas sorria lá da areia, esperando que ele viesse ao seu encontro.
Era a primeira vez que Leon realmente via Lívia.