O Homem Duplo

Rodrigo guiava seu carro com toda a velocidade que seu bom senso classificava como adequada. As mãos estavam trêmulas e a fronte encharcada. Ele dirigia realizando curvas ousadas e alternando sua atenção entre a pista e seu relógio de pulso.

Estacou ante a faixa de pedestres praguejando uma maldição que apenas ele ouviu. O sinal havia fechado.

Na faixa uma senhorinha lhe lançou um sorriso, agradecida, e prosseguiu, lentamente, o seu percurso tão lentamente quanto podia. Era como se ela soubesse que Rodrigo estava atrasado para a apresentação que iria definir sua promoção, ou não, na empresa e estava lhe aplicando uma pilhéria.

O homem retribui o sorriso da senhora com outro bem forçado. Enquanto isso o seu pé, nervosamente, acariciava o acelerador em ameaça. Quando o sinal finalmente abriu e a rua a sua frente ficou limpa ele pisou fundo, mas de repente uma brancura tomou conta de tudo ao seu redor.

Ele estava, agora, deitado em uma cápsula metálica coberta de botões das mais variadas cores e formas de onde pendiam cabos de diâmetros diversos que findavam na parede logo atrás da cápsula.

Assim que despertou por completo percebeu que um senhor, que aparentava uns cinquenta ou perto disso, todo paramentado de branco lhe tirava os fios e conectores que estavam fixados em sua testa, peito e braços. Este quando viu que o homem na cápsula havia despertado lhe lançou um sorriso benigno, bem-humorado e falou:

—Como foi sua experiência simulada Sr. Albert? — Questionou o bom senhor.

"Albert?..."

De repente ele caiu em si. Sabia, agora, o que havia acontecido... Havia lembrado...

Ele ainda estava um pouco desnorteado. Apenas se limitou a sorrir, um pouco encabulado, e disse: — Foi substancial.... Obrigado.

— Muito bem, elas são sempre interessantes, garanto ao senhor. — Retorquiu o senhor de branco. Hideraldo era seu nome. Já havia visto todo o tipo de expressões nas faces dos clientes quando estes acordavam da simulação. O trabalho era gratificante e bastante divertido para ele. Ele o adorava.

Dos dois lados da cápsula de Albert havia muitas outras. Nelas, ele pôde notar, os ocupantes ainda jaziam em suas experiências extraordinárias.

Ao redor de cada cápsula montículos de pessoas conversavam, sorriam e observavam com curiosidade àqueles que ainda estavam imersos no processo virtual. Muito provavelmente eram familiares e/ou amigos dos encapsulados.

Albert não notou de imediato, mas a sua esquerda em silencio seu amigo lhe observava com um olhar malicioso e um riso contido. Foi aí que ele lembrou que havia vindo acompanhado. Inclusive experimentara a simulação apenas por insistência do amigo.

— Vamos homem, se levante daí, aquela vida não era real. —Disse Ernesto divertidamente ao perceber a confusão do amigo, tão comum aos marinheiros de primeira viagem.

Hideraldo, com os braços atrás das costas, observava de uma distância respeitável. Com um sorriso no rosto.

Aquele atordoamento era normal ao processo e Ernesto o sabia muito bem. Já havia experimentado diversas configurações simuladas. O valor era acessível e era divertido, as vezes podia ser dramático, então por que não?

Antes de levantar Albert olhou para o amigo, por um instante, de forma acusadora. Ele estava magoado. Era o que parecia.

Ernesto, percebendo isso, tratou de imprimir um ar sério. Puxou a poltrona que havia ali próximo e se sentou ao lado da cápsula que continha o amigo:

— Esse misto de sentimentos é bastante comum. — Começou ele e tocou calorosamente no ombro do amigo.

—A sensação dentro da simulação é a de que vivemos uma vida inteira, eu sei bem disso. Havia um brilho nos olhos de Ernesto enquanto falava. Um brilho que poderia ser tristeza, saudades ou quem sabe um pouco dos dois?

—Então — Prosseguiu — Esse afeto e esse apego que você está experimentando agora ainda irão pairar sobre sua consciência por mais alguns dias, mas tão logo desvanecerão. — Concluiu, cautelosamente, Ernesto.

De cabeça baixa e tocando seus próprios dedos Albert absorvia a preleção do amigo em completo silencio. Resignado.

De repente ele levantou os olhos na direção do amigo e falou: — Foram apenas vinte minutos mesmo? Havia confusão em seu rosto.

Ernesto riu: — Sim, olhe as horas na parede e apontou a direção para Albert. Um relógio metálico e retangular denunciava: Eram 15h26.

Albert refletiu, assombrado. De fato, se lembrou do amigo lhe informar as horas assim que chegaram no prédio e adentraram a sala GESTAÇÃO. Na altura da lembrança Ernesto havia lhe falado: “Vamos logo com isso, já são 15h00, não podemos nos atrasar”

Ernesto estava curioso. Olhava interrogativamente para Albert. Este, captou a súplica visual do amigo e então contou um pouco da experiência que teve em seus vinte minutos de uma vida irreal.

— Meu nome era Rodrigo, na altura em que foi desconectado tinha 42 anos, era feliz... Tinha um filho chamado Rodolfo, de 10 anos e uma menininha adorável de 6, Sabrina.. Enquanto falava a voz de Albert vacilava. Havia filetes de desespero em seu tom. Como se algo muito valioso houvesse sido roubado dele.

Ele prosseguiu: — Eu estava dirigindo. Atrasado para uma apresentação. Eu ia ganhar uma promoção no trabalho. Gerente regional. Eu Morava numa metrópole importante em um planeta chamado Terra... Planeta terra...

— Quando de repente tudo ficou branco e.......

Ernesto o interrompeu

—Eu pedi para o Hideraldo aqui te ejetar, caso contrário iríamos nos atrasar para nossa verdadeira vida, você se lembra dela? — Disse o homem dando uma gargalhada e se levantando da poltrona.

—Agora vamos Albert. — Finalizou.

Albert finalmente se desvencilhou da cápsula, alisou suas roupas para desamassá-las. Agradeceu Hideraldo com um aperto de mão meio sem graça e saiu do recinto em companhia do amigo.

Os dois atravessaram o corredor em completo silencio. De vez em quando Ernesto lançavam um olhar discreto ao amigo. Imaginando o quanto a experiência havia mexido com os sentimentos dele.

Antes de alcançarem o carro Albert rompeu com o silencio que pairava no ar e perguntou ao amigo, quase esperançoso, se os familiares que ele tinha tido dentro da simulação eram outras pessoas experimentado o mesmo processo. A perguntando estava carregada de ansiedade e expectativa. Havia quase uma súplica nos olhos de Albert.

Ernesto olhou para o amigo um pouco constrangido, mas também consternado com o seu questionamento.

Comprimiu os lábios, como normalmente fazemos quando temos que dar más notícias a alguém e por fim falou: — Não amigo.

E estudou bem as palavras antes de prosseguir:

— Todas as pessoas que estiveram presentes em sua experiência são programas Albert... Comandos executáveis. Elementos que compõe a narrativa simulada, nenhuma delas diferentes, em natureza, dos objetos inanimados que fizeram parte de sua experiência, como sua casa ou o automóvel que possui-a lá...

Entraram no carro, Ernesto girou a chave. Os propulsores foram acionados e o automóvel flutuou. Albert o fitava, ainda não satisfeito. E Ernesto, percebendo, concluiu já um pouco incomodado:

— Com a exceção de você toda e qualquer outra forma de vida presente na simulação era apenas um amontoado de zeros e um. Lamento amigo. — E deu mais uma batidinha no ombro de Albert.

— Mas não se preocupe, foram apenas vinte minutos e essas sensações logo irão ser sobrepostas, como lhe expliquei lá na sala.

Abert protestou apenas em seu pensamento: “Vinte minutinhos? Eu era um homem que viveu 42 anos pelo amor de Deus...”

O carro partiu. E no fundo do coração de Albert ele se questionou, amedrontado, se iria realmente ser capaz de esquecer o seu outro eu e sua família de bytes. Fora tudo tão real. Tão vívido e tão longo....

Refletiu amargamente que ele mesmo gostaria de ser, agora, um amontoado de zeros e uns para não ter que sentir o que naquele momento perfurava seu peito.

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 25/07/2021
Reeditado em 18/02/2022
Código do texto: T7306675
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.