O Som no Desfiladeiro
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O Som no Desfiladeiro
Terça-feira, já são quatro da manhã na pequena vila de Sopé Encantado. Como nas outras semanas, este era um momento de expectativa. Pontualmente, em meia-hora, o velho cargueiro minerador, com o seu nome Ares VI pintado em néon, passaria pelos céus.
As suas velhas turbinas já sem os silenciadores trepidariam frenéticas enquanto seus jatos queimariam o ar. As suas hélices tortas zuniriam, rasgando consigo o silêncio matinal. O estrondoso som da nave convidaria à sinfonia, cachorros, galos, bebês e o desespero de quem assim acordava forçado.
A vila de Sopé Encantado, como todas outras vilas ao longo do cânion — turisticamente chamado de “mais profundo cânion das colônias extrassolares” — vivia da pacata mineração artesanal, cuja exploração, vila a vila, avançava pelos vales encravados junto às escarpas íngremes e ricas do planeta, que de tão altas, alcançavam até o que se convinha como a atmosfera.
Os caminhos e labirintos dos desfiladeiros serviram de caminho óbvio para todo o transporte aéreo de toda sorte, mas também elaborava uma rica acústica, moldando um perfeito anfiteatro ao caótico berro daquela forasteira nave.
Impossível não se atordoar. Um sofrimento coletivo, mas que cada habitante lidava à sua maneira individual. Seja tampando os ouvidos com trapos, almofadas, ceras e até se submergindo; talvez buscando ignorar o som numa difícil meditação; havia aqueles que até mesmo pensavam, numa mentira particular, como era bom ter um despertador tão certeiro, pois isso era ver o lado cheio do meio-copo.
A timidez de cada um daqueles moradores da vila os faziam sentirem-se envergonhados por reclamar e comentar o tormento com seus vizinhos. Temiam poderem ser julgados exagerados quanto ao incômodo semanal.
Foi apenas há dois meses que a questão foi partilhada como problema municipal, em uma verdadeira confissão comunitária.
O velho Alastor morreu após queda, numa terça-feira de manhã, precisamente as sei horas e junto ao alvorecer. Aquela fora sua última exploração matutina pelas difíceis trilhas que subiam do vale da vila ao cismo do cânion, onde ainda restavam as poucas boas jazidas.
Mesmo que o velho Alastor sofresse de conhecidos problemas cardíacos, labirintite, uma meia cegueira e certo alcoolismo desenfreado, no seu enterro — que atraiu a totalidade dos quase quinhentos moradores locais, como qualquer enterro local o faria — um pequeno comentário descontraído, solto inocentemente, trouxe uma pauta maior do que o próprio luto.
“O velho enganava a morte há décadas, diz ele que já saiu boca de um Ursus, bebeu metano, matou cinco piratas zeburianos com uma pedra, e de uma vez só... Mas por fim foi aquela maldita nave escandalosa que deve finalmente o ter matado. Morreu de cansaço”.
Subitamente, pelos risos saudosistas das façanhas mentirosas de Alastor, surgiu a epifania coletiva que não era frescura o incômodo do barulho da nave pelo desfiladeiro, mas talvez um problema de saúde pública. Decerto, mesmo que aquele tivesse sido um comentário descontraído e mesmo com a conhecida fragilidade da saúde do homem, todos naquele momento tiveram a certeza que sim, o velho morreu de cansaço por ter sido arrancado de sua cama ainda de madrugada. Culpada só podia ser a Ares VI. Maldito seja.
Como um mártir, o velho Alastor arrancou da inércia os seus vizinhos que passaram a planejar a solução do enfim reconhecido problema.
Usar silenciadores em turbinas era lei, ou pelo menos deveria ser, de modo que sugeriram criar um imposto local para barulhos descontrolados para qualquer equipamento ou transporte. Parte da arrecadação seria doado para a família de Alastor, claro.
“Não podemos, o controle dos céus se dá pela Polícia Provinciana, não é nosso território”; alguém observou.
Eis que a tal polícia estava sofrendo com “problemas maiores, como pirataria, contrabandistas, separatistas, e todas outras classes de criminosos”; nas palavras do Agente Imperial do Sul. Não tinham vontade, nem contingente, para ir atrás de miudezas.
Percebendo-se sozinhos, rastrearam a nave, estudaram cuidadosamente seus movimentos, rotas e velocidade. Descobriram que a nave transporta a escavação de uma vila industrial, pertencente a uma daquelas empresas coloniais.
Descobriram também que a nave era particular, de uma tripulação de velhos militares aposentados. Prestava um serviço por contrato.
A petição da vila, com quinhentas assinaturas e o carimbo oficial da Vila do Sopé Encantado, criado exclusivamente para aquela situação, foi enviada à empresa mineradora.
A resposta veio, também de forma oficial, num papel que por sua vez tinha mais de dez carimbos também oficiais. Dizia: “nada no contrato justificava a rescisão com a nave Ares IV, pois não há cláusula específica sobre perturbação pública”. O mensageiro funcionário da empresa tentou justificar-se: “Muitos encargos, multas, discussões jurídicas em caso de uma rescisão contratual sem justa causa, sabem como é”. Mas a empresa falaria com a tripulação da nave; foi por fim prometido.
Se falaram ou não, o assunto não foi resolvido e nada mudou.
Passaram então para planos maiores: talvez, derrubar a nave, quem sabe. Um ataque silencioso, e irônico; sem aviso prévio, sem negociação.
Mas a nave em queda poderia chocar nas escarpas, refletiram. “E se a escarpa desmoronar sobre o rio, o soterrando? Poderíamos criar inundações à montante e seca à jusante, um total colapso ambiental”.
Era um problema, ponderaram. “E há o problema das armas… Poderíamos ser confundidos com criminosos, e dizimados”. Todos acenaram a cabeça. Não era raro que vilas, após a exaustão das suas jazidas, se voltassem para o desespero, terminando sempre em cinzas imperiais.
Sequestrar a nave era uma possibilidade. Talvez, contratar alguns piratas, que ultimamente pareciam haver muito. “A nave é de uma empresa grande, vai dar problema, chamar atenção, muito risco para nada”, pois até os piratas precisavam de lucro e a vila tinha muito pouco a oferecer.
Ponderou-se falar diretamente com a tripulação; quem sabe era apenas um problema financeiro do capitão que humildemente não podia comprar silenciadores novos. Concordaram que não era este o caso, era impossível não perceberem o incômodo causado por suas turbinas, devia ser só algo propositado. Como ex-militares, poderiam retaliar.
Terça-feira, quatro e vinte da manhã. Os habitantes de Sopé Encantado, já com o corpo acostumado como máquina, levantaram, adiantados ao próprio barulho. Aqueceram a água do café, colocaram tampões nos ouvidos das crianças pequenas, prenderam os cachorros em quartos abafados. Aqueles habitantes de sono mais pesado, apenas enfiaram a cabeça por de baixo do travesseiro; sem perder o passo dos sonhos profundos ameaçados. Porém mesmo esses, mesmo aqueles que optaram por se entorpecerem para reforçar o sono, no subconsciente, sabiam que logo acordarão, pois, isso é tão certo quando que em dez minutos a pontual velha Ares VI passará.