Item de Colecionador
Lisa colocou a tiara metálica e os wrinting glasses. A imagem da área de escrita parecia flutuar à sua frente, com as letras e sugestões de palavras e construções frasais em sua volta. A prática com o equipamento e as calibrações eleitas por experimentação a permitiam produzir textos em velocidade maior do que seria capaz de fazer digitando em um teclado ou mesmo através de comando por voz.
Não. Mesmo durante a era da exploração espacial de terceira geração a literatura não havia morrido, embora isso surpreenda apenas a quem não refletiu o suficiente sobre o que é essa arte e qual o seu papel. Lisa estava escrevendo a bordo de uma nave espacial da classe Constantin, chamada Esplendor.
Sua função não era documentar a missão, simplesmente. Isso faziam as câmeras, microfones, logs dos tripulantes, registros digitais dos sensores. Lisa era uma cronista de bordo. Escrevendo sua própria história nesta nova jornada humana, entre as miríades de corpos celestes e exoplanetas promissores. Ela estava lá para ser os olhos e coração do cidadão comum da humanidade espacial, que poderiam investir, apoiar e até mesmo participar da exploração espacial de terceira geração, e principalmente se inspirar. A história do pessimismo existencial que flagelou o espírito humano por quase um século e meio mostrou que inspiração, senso de propósito, é tão vital quanto qualquer necessidade física. Uma nova onda de vitalidade percorria a humanidade. Para o bem, na maior parte.
Ainda haviam dificuldades mesmo numa humanidade em expansão pelas estrelas. Nas colônias havia espaço para todo tipo de realização e recomeços, inclusive recomeço de velhas ideologias fracassadas, tiranias e erros de todos os tipos, inclusive capaz de ameaçar outras colônias.
Ela estava escrevendo na cabine espaçosa, confortável e cheia de objetos pessoais. Trabalhava em seu diário pessoal, o qual seria uma de suas fontes quando estivesse escrevendo de fato o material que lhe fora encomendado. Por hora, ela estava mais interessada em viver plenamente a experiência, para que esta transparecesse em sua escrita.
“É manhã! Pelo menos pelo horário da Esplendor. Depois de emergir do hiperespaço e navegar pelo sistema estelar de Kepler-438, passei por mais um marco na minha vida, porque pela primeira vez eu passei por uma inserção orbital em um exoplaneta, neste caso o Kepler-438b.
Eu já tinha estudado sobre isso no treinamento, mas Lucky, nosso piloto, explicou toda a operação para mim. Ele adora seu trabalho e faz tudo soar bem mais interessante e apaixonante do que ver os holoinfográficos.
Lucky aprecia a sensação da frenagem da espaçonave quando ela entra em contato com a alta atmosfera. Sente-se como que 'tocando' o planeta. Os pilotos chamam isso de aerofreio desde as naves da primeira geração. Quando estávamos sentados em nossas poltronas, cintos de segurança afivelados, eu fiquei de olhos fechados tentando sentir da mesma forma.
Antes do início da manobra, Canister, o jovem engenheiro que subiu a bordo na última estação estelar, me lembrou que essa parte era uma das que estavam mais propensas a acidentes. Eu o achei meio sinistro, mais do que bonito, mesmo com sua altura, físico vigoroso. Me simpatizei muito mais com o maduro Rian, engenheiro sênior da nave. Ele, pelo menos, não me assusta.
Ao contrário do que o velho médico doutor Charles achou, eu não fiquei realmente com medo. Bom, não sou muito corajosa, mas depois de ter viajado 145 parsecs para longe de casa… Bem, eu já estava envolvida demais para querer recuar.
Dentro de algumas horas começaremos as operações para o pouso no planeta. Teremos uma reunião. Serão duas incursões, e eu vou participar da segunda. Carina esteve muito ocupada desde que emergimos neste sistema. Tem vários trabalhos a conduzir com a fauna e flora deste planeta. E pensar que um dia a exobiologia era apenas um ramo teórico, como xenopsicologia ainda o é.
Ah, acabam de informar pela comunicação interna que a reunião antes da operação na superfície vai começar.”
Ela desligou o aparelho e caminhou até a porta que deslizou verticalmente para cima, entrando em um corredor largo e bem iluminado, onde outros membros da tripulação caminhavam para a sala designada.
A reunião foi na sala que chamavam de “ponte de comando”. Apenas o piloto e os engenheiros passavam mais tempo lá, já que a tripulação dispunha de cabines confortáveis, amplas, que eram um luxo que naves como aquela, feitas com material abundante minerado no espaço e alimentada com um reator de fusão de hélio-3, podiam oferecer.
A sala era redonda e os consoles ficavam em uma estrutura em forma de toro, cujo o centro continha um grande projetor holográfico multipropósito.
Naquele momento a sala estava com a iluminação comum reduzida, mas os um holograma de Kepler 438b deixava-a muito clara. Em volta do planeta estava representada a órbita da Esplendor e sua posição atual.
Enquanto os demais sentavam, Lucky e Carina estavam conversando de pé. Eles dividiam o comando da missão, sendo o primeiro responsável pela operação da nave e do lander, enquanto a ela cabiam as decisões quanto ao aspecto científico. Uma hierarquia mais relaxada e baseada em consensos sobre competências eram a norma nas naves civis.
Lisa sentou e apalpou as próprias coxas, sentindo-as firmes. Pelo fato de Kepler 438b ser alguns pontos percentuais mais massivo que a Terra, a gravidade no interior da nave foi gradualmente ampliada durante as semanas de viagem, para adaptação dos passageiros.
Carina e Lucky trocaram algumas palavras, e o piloto foi quem iniciou a palestra.
-Bom dia, senhores! Este é o briefing final antes da primeira incursão atmosférica. Vou repassar os procedimentos de entrada e extração.
Lucky começou a descrever o cronograma, tudo acompanhado de hologramas animados que dançavam sobre o centro do toro. A explicação era resumida, uma vez que todos já haviam estudado e treinado para as atividades dos próximos dias, mas todos estavam atentos e interessados nas imagens exibidas, tanto por serem lindas, quanto pela antecipação da aventura.
O lander a ser utilizado era perfeitamente aerodinâmico, com asas de geometria variável. Possuía motores de manobra a gás, mais possantes e de reação rápida do que os iônicos, além de possuir dois conjuntos de motores. O primeiro, de combustão, capaz de usar o oxigênio da atmosfera de Kepler-438b, o que renderia ao veículo várias horas de voo, se necessário. O segundo, de um tipo chamado LPS, seria uma ferramenta central para o retorno do veículo do campo gravitacional do planeta.
Na primeira de duas inserções atmosféricas, no lander iriam Carina, comandante da equipe de expedição e pesquisadora; Lucky, experiente em veículos do tipo do lander utilizado; o Dr. Charles, que estaria lá para supervisionar as reações médicas ao ambiente do planeta.
-E também porque eu quero estar sem paredes por todos os lados, nem que seja em um traje espacial e num planeta de sol vermelho! - Interveio o médico.
Duran, chefe de segurança, desceria também. A fauna do planeta havia sido registrada como exuberante e com animais de grande porte. Ninguém ficaria feliz com a ideia de ter que usar a força contra um ser alienígena em seu próprio mundo, mas as normas e a prudência fizeram com que o segurança embarcasse no lander com um rifle eletro laser, a única arma permitida na missão.
Quanto à Lisa, ela deveria ir na segunda incursão do lander.
Rian e Canister assumiram o comando da Esplendor até o momento da extração do lander, com Kenus ficando à disposição.
Olhos atentos brilhavam com a belíssima simulação da operação de entrada: O lander se desprende da Esplendor, penetra na atmosfera, planando em velocidade hipersônica, rumando para o local escolhido para o primeiro pouso através de manobras aerodinâmicas sem necessidade de uso de combustível. Ao reduzir para velocidade subsônica, estendendo as asas gradualmente, planou sobre o grande bioma de plantas de folhas escuras, vigorosos rios e fauna exuberante, iluminados pela luz avermelhada de Kepler-438. Ao se aproximar da área de pouso, os motores a jato ligam-se, e a nave direciona o empuxo para um pouso vertical.
-Logo após - continuava Lucky - a doutora explicará o cronograma das atividades em superfície, mas permitam-me detalhar o procedimento de extração.
Esta última etapa era a mais interessante. O lander não era capaz de sair da atmosfera sozinho, simplesmente por não carregar combustível para isso, o que aliás era a razão para o lander ter proporções tão reduzidas e tanta capacidade de carga.
A peça chave para a extração chamava-se Laser Powered Scramjet, ou LPS. Tratava-se de um par de motores scramjet modificados, associado a um conjunto receptor de um laser infravermelho de alto rendimento e coerência disparado pela Esplendor.
Após a decolagem, o lander seria levado a velocidades supersônicas pelos motores a jato, condição necessária para ativação dos motores scramjet. Neles, o ar atmosférico entra em velocidade supersônica, sendo comprimido através do estreitamento da passagem interna, onde a energia recebida pelo laser é direcionada para aquecer o ar a temperaturas extremas, provocando uma expansão poderosa tal como se houvesse ocorrido ignição de uma mistura de ar e combustível. Com esse sistema, o lander pode atingir velocidades de vários milhares de quilômetros por hora.
Mas mesmo o LPS não seria capaz de atingir velocidade e altitudes orbitais, então era necessária mais uma vez a intervenção da Esplendor. A nave era equipada com um cabo de nanotubos de carbono com centenas de quilômetros de comprimento. Sua seção final era recoberta por um material composto especial que lhe permitia suportar velocidades hipersônicas na alta atmosfera. Na ponta deste cabo, estava o “anzol”, um aparelho dotado de um pequeno LPS alimentado por um laser secundário e um tipo de engate ligado diretamente ao cabo. Com a Esplendor reduzindo sua velocidade orbital ao mínimo, haveriam alguns segundos de sincronia entre ela e o lander, momento no qual este seria conectado, então o cabo começaria a ser recolhido e motores de foguete levariam a Esplendor de volta à uma órbita estável, simplesmente içando o lander de volta à nave mãe através de atuadores elétricos.
Lucky sinalizou que sua palestra havia chegado ao fim. Doutora Carina assumiu a palavra discorrendo sobre os detalhes técnicos de sua pesquisa.
O plano seria ter uma base habitada por longos períodos, mas essa seria a missão de uma outra nave, dali a um ano. O que a tripulação faria seria testar as condições para o estabelecimento da base e instalar aparelhos de observação climática, além de câmeras que colherão imagens e sons da fauna e flora do planeta.
O segundo pouso selecionaria o local e levaria os materiais para as marcações onde seria construída a base de longo prazo. Lisa havia treinada com esses equipamentos e participaria ativamente da operação, o que certamente deixaria seu livro mais interessante.
-Perguntas, meus caros? - Não houveram manifestações – Excelente. A reunião está encerrada. Neste momento o cronograma começa a valer. Iniciando operação Estranhos no Paraíso!
*******
-Rian... - A voz de Lucky soou nos alto-falantes da ponte de comando – Cuide da minha nave!
-Sinceramente, Lucky. Que cliché horroroso.- Respondeu o engenheiro.
Dentro do lander acoplado à nave estavam Carina, Lucky, experiente em veículos do tipo do lander utilizado. Rian desceu junto com a única arma permitida a bordo da Esplendor, específica para este tipo de missão. E o Dr. Charles, a pretexto de supervisor as reações médicas ao ambiente do planeta. E também porque ele não perderia a oportunidade de estar ao ar livre de um planeta, e não naquela lata espacial!
Rian e Canister assumiram o comando da Esplendor até o momento da extração do lander. Kenus, o segundo agente de segurança, auxiliar de Rian, ficaria à disposição.
Quanto à Lisa, ela deveria ir no lander. A perspectiva de se aventurar em um planeta desconhecido, uma aventura extrema a qual ela já havia se proposto a enfrentar, se mostrou mais difícil do que o esperado quando chegou a hora, e ela não pôde evitar sentir certo alívio quando o doutor Charles se ofereceu para ir na primeira incursão, ainda na primeira reunião. Haveriam mais duas aterrissagens para levar mais material de pesquisa, e ela ganhou a oportunidade de se preparar melhor, graças ao excêntrico médico.
Lucky fechou cuidadosamente a escotilha entre a Esplendor e o lander. Todos estavam devidamente acomodados em suas cadeiras, utilizando trajes pressurizados apropriados.
A operação teve início. A luz vinda do planeta penetrou pelas janelas quando a redoma que protegia o lander se abriu. Pela primeira vez em semanas, a tripulação do lander estava em estado de imponderabilidade, o que os fez tomar várias precauções, como movimentos sem pressa, premeditados, além de doses de remédios contra enjoo.
Sentiu-se um leve estremecimento na estrutura quando as travas de acoplamento foram liberadas. Lucky já havia posicionado a Esplendor de tal forma que não foi necessária nenhuma manobra adicional com os foguetes de manobra. O lander penetrou na atmosfera, planando em velocidade hipersônica, rumando para o local escolhido para o primeiro pouso.
Em minutos o lander estava em velocidade subsônica, e a geometria variável de suas asas permitiam um suave planar sobre o grande bioma de plantas de folhas escuras, vigorosos rios e fauna exuberante, iluminados pela luz avermelhada de Kepler-438.
Ao se aproximar da área de pouso, uma área plana e rochosa, o lander fez o único gasto de combustível inevitável, quando os motores à jato foram ativados para fornecer empuxo vertical para a aterrissagem.
Imediatamente após o pouso, Lucky autorizou que os cintos de segurança fossem soltos. Carina levantou, sentindo a gravidade do planeta confortavelmente.
- Muito bem, vamos preparar os equipamentos. - E desceu acompanhada por Duran e Charles até o depósito de carga através de um acesso no fundo do lander.
Em poucos minutos a equipe saiu pela rampa traseira do lander carregados do material de pesquisa. Pararam por alguns segundos para absorver a paisagem do mundo alienígena, as plantas muito escuras ao sol avermelhado da segunda hora de luz do dia naquela região, captando pelos microfones do capacete o som do vento e o canto matinal de aves estranhas de olhos enormes.
*******
A bordo da Esplendor, Lisa observara a entrada do lander na atmosfera de Kepler-438b. Ela levantou, ajeitando o cabelo e a postura.
-É, Lisa… Dentro de algumas horas, você estará lá. - Ela disse para consigo.
Ela pegou o seu equipamento de escrita e começou a produzir. Escreveu como se sentia e tentou imaginar-se dentro do traje espacial, olhando a superfície distante se tornando mais clara, as feições geográficas mais nítidas, as semelhanças e diferenças para a Terra, trilhões de quilômetros distante.
Subitamente, a porta se abriu para o sobressalto de Lisa.
Era Rian, o engenheiro de bordo da nave. Seu rosto transparecia agonia. Sua mão direita estava sobre o leitor de digitais ao lado da porta, enquanto a esquerda tentava conter um sangramento severo no abdômen.
-O que é isso, Rian? O que aconteceu? Onde está Kenus?
-Teve menos sorte que eu. Rápido, você tem que sair daqui!
Aturdida pela situação e impressionada pelo ferimento de Rian, Lisa acompanhou o engenheiro que cambaleou até uma abertura de manutenção, abrindo-a com uma ferramenta elétrica veloz, que emitia um zumbido fraco. Mandou que ela entrasse.
-O que está acontecendo? - Ela repetiu, quase sussurrando.
-Canister. Ele está louco e é perigoso. Você ficará segura aqui. Não há sensores neste duto e duvido que ele saiba. Há um hub de dutos alguns metros à frente. Espere lá.
-E você? Você precisa de ajuda!
-Eu conheço essa nave melhor que qualquer um. Só eu tenho chance de detê-lo.
Eles ouviram passos pelo corredor. Rian agarrou o braço de Lisa.
-Agora, entre rápido!
Lisa entrou e o engenheiro parafusou a tampa de volta, correndo em seguida na direção oposta de onde vieram os passos, que agora se aproximavam. A cronista não quis ficar para ver através das aberturas de ventilação a figura de Canister passar, e rastejou para dentro o mais rápida e silenciosamente que foi capaz, ficando cada vez mais envolta na escuridão.
A passagem não tinha mais que sessenta centímetros de largura e altura, mas suficiente para a compleição magra de lisa passar. Ela continuou até chegar em alguma câmara muito mais ampla. Ela tateou as paredes metálicas e concluiu que era uma câmara cúbica de pouco mais de um metro e oitenta centímetros de aresta, com algumas outras passagens as quais ela preferiria não explorar agora. Ela sentou em um dos cantos com as pernas encolhidas enquanto tentava escutar qualquer sinal de ameaça.
A adrenalina da situação a deixou agitada, e ela começou a procurar desesperadamente por algum interruptor, ferramenta, peça que pudesse ser removida para usar como defesa.
Ela encontrou uma passagem semelhante a que ela entrou, mas essa ficava a mais de um metro do chão. Ela não pretendia contrariar a recomendação de Rian, mas decidiu tatear dentro dele em busca de qualquer coisa.
Sentiu algum tipo de tecido sintético. Depois do sobressalto inicial, ela agarrou o que quer que fosse e arrastou para si. Era pesada.
Colocando aquilo que parecia ser algum tipo de bolsa bem resistente, passou a mão por ela em busca de um zíper. Ela o encontrou e quase se sobressaltou com o som do deslizar do fecho ecoando nas paredes lisas.
Tateando o interior ela sentiu uma variedade de objetos de vários formatos que a faz pensar em ferramentas. Ótimo!
Ela separou um objeto comprido e pesado, que lhe deu uma impressão de ser resistente. Continuou a tatear e encontrou um volume com dimensões de um livro de bolso. Ao tomá-lo nas mãos uma tela se acendeu exibindo sob um fundo azul vários dados identificados por siglas que ela não conhecia.
A luminosidade tênue da tela lhe deu algum conforto. Olhou a ferramenta que ela havia separado para defesa e suspirou.
-Espero que não seja preciso...
Lisa se levantou e iluminou em seu redor, vendo mais sete dutos escuros. Algum deles serviria de rota de fuga?
*******
-Lander para Esplendor. Lander para Esplendor. Solicitando reporte. Rian! Responda, Rian!
Lucky tentou todos os meios de contato. Era visível que a Esplendor estava no alcance do comunicador, ele conseguia sinal do transponder, mas perdeu o link da ponte de comando e a comunicação direta não dava resposta. O piloto olhou para a tela da câmera externa que acompanhava o trabalho da equipe. Melhor não os preocupar agora, pensou.
-Se a coisa não estiver resolvida quando eles voltarem, eu falo com eles...- Ponderou.
Olhou para o panorama externo e pensou na água e comida que tinham trazido. Obviamente, não era um estoque generoso. Não haveria necessidade. Será que as plantas nesse planeta seriam comestíveis? E aqueles pássaros tão feios?
Lucky sacudiu a cabeça.
-Nós não vamos ficar presos aqui! - Acionou o comunicador mais uma vez – Rian, diabos! Cadê você? Canister! Lisa! Kenus! Qualquer um!
O piloto se endireitou na cadeira e levantou, indo até um console a um metro de sua poltrona. Armou uma cadeira embutida na lateral e abriu um painel de proteção. Inseriu um nome de usuário e senha, combinada com reconhecimento biométrico. Os engenheiros de bordo, ainda mais Rian, não gosta quando outros profissionais interferem em suas áreas, mas supôs que ele o perdoaria. Aquela coisa não era normal.
A máquina sinalizou que ele tinha acesso ao programa supervisor dos subsistemas. Começou a examinar os intermináveis registros atentamente.
*******
Lisa escutou um zumbido baixo e grave ecoando pelo duto por onde ela entrou. Ela apertou a tela brilhante do aparelho contra o peito e se abaixou olhando pelo duto. A metros de distância, a luz do corredor filtrada pelas frestas denunciava alguma atividade.
Por alguns momentos ela teve esperança que fosse Rian, dizendo que Canister havia sido contido, e que agora ela poderia sair. Mas porque ele não a teria chamado em primeiro lugar?
Então ela viu a tampa sendo retirada num movimento ágil, por um homem agachado. Ela não pôde ver o rosto, oculto por uma máscara de algum tipo. Ele sacou uma lanterna e Lisa recuou um instante antes do facho de luz alcançar a parede oposta da câmara cúbica, inundando a sala com uma luz pujante aos seus olhos acostumados com o escuro.
O homem da lanterna se arrastava vigorosamente, mas seu físico avantajado não permitiria muita agilidade no duto estreito, mas em um minuto ele estaria ali. A uma mão mantinha o facho da lanterna apontada para frente, enquanto a outra ajudava na locomoção, e a cada movimento um som metálico ecoava. Lisa pensou no ferimento de Rian.
Ela olhou para as aberturas em sua volta. Não havia como saber qual seria a melhor, mas era preciso agir. Talvez ela pudesse usar o fator surpresa. Talvez ele a subestimasse. Ela ponderou o peso da ferramenta e avaliou sua própria força. Teve dúvidas.
Sem pensar mais, ela mergulhou na entrada onde ela havia encontrado a caixa de ferramentas.
Em seu ímpeto, ela não ouviu quando um objeto fora lançado a partir dos dois ou três metros finais do duto, emitindo um pequeno chiado. Em instantes o pequeno cilíndrico começou a inchar no meio. Em seguida com um pequeno estouro, a câmara foi tomada por uma fumaça cáustica saída da rachadura formada próximo a uma tampa de metal com símbolos de positivo e negativo, identificando terminais metálicos que haviam sido improvisadamente ligados com um grosso arame.
Começou a se arrastar freneticamente, imaginava a todo instante perceber a lanterna de Canister apontando diretamente para o duto onde ela estava. Quase exausta, ela chegou à uma junção em T que a ocultaria. Ela virou à esquerda e desabou, com a mandíbula cerrada e repetindo para si mesma que não gritaria, houvesse o que houvesse. A grande custo não se traiu quando o estouro ecoou. Segundos depois um cheiro nauseante da fumaça tóxica chegou e ela não teve outra escolha exceto continuar a se arrastar pelo duto.
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Vários códigos dançavam à frente dos olhos de Lucky. Nem de longe ele possuía a qualificação de Rian, ou mesmo de Canister para esse tipo de análise, mas tinha esperança de achar alguma dica. Entre os dados ele conseguiu verificar o momento em que o link com a cabine de comando havia sido cortado.
Mas o que realmente chamou sua atenção foi uma solicitação de uma sub-rede na network da Esplendor por parte de um BTU-877. Ele não fazia ideia do que isso seria, mas a solicitação havia sido efetuada mais de 100 vezes. Examinando os horários registrados, ele viu que se repetiam em um padrão específico. Três solicitações em rápida sequência, três solicitações com intervalos maiores mais ou menos regulares, mais três solicitações rapidamente repetidas e depois um intervalo especialmente longo antes de começar outra vez.
O treinamento básico de qualquer astronauta incluía muito material histórico, e algumas técnicas antigas continuavam a ser ensinadas, por tradição. Tradições às vezes são sábias. Três sinais curtos, três sinais longos e mais três sinais curtos... Lucky sentiu um arrepio.
A voz de Carina ecoou no autofalante:
-Lucky, terminamos aqui.
-Ah... entendido, abrindo comporta.
-Ué, nenhuma piada?
Lucky não respondeu. Voltou ao console, tocou na última solicitação pendente e digitou seu código de autorização. Deu certo. Dois dispositivos conectados. Era uma rede de manutenção. Ele digitou um comando para verificar os últimos logs. Passou os olhos pelas letras brilhantes.
Os três tripulantes entraram conversando, mas se calaram quase ao mesmo tempo ao verem a expressão de Lucky.
-Senhores... - O piloto suspirou - Temos um problema. Um problema sério.
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O duto era bem mais longo do que os outros e Lisa estava sufocando.
Com esforço ela tentou ver algum sinal de luz do perseguidor atrás de si, mas o cheiro da fumaça já alcançava até ali. Sentia seus brônquios se contraindo, seus pulmões bem menos eficientes. Ficou com medo de morrer. O que aquele psicopata havia feito? Só o que ela podia fazer era continuar.
Ela cerrou os dentes e recomeçou a rastejar. Ela sentia o corpo pesado. Naqueles dutos estreitos, até onde aquele gás chegaria?
Seu coração saltou quando ela viu algo no fim do túnel. Um padrão quadriculado simplesmente aterrorizante para alguém enclausurado.
-Não... não! Não! Não! - Ela lamentava entre lágrimas enquanto se aproximava da grade e confirmando seu temor de que não havia como removê-la.
Ela soltou sua fonte de luz e levou os olhos ao rosto, soluçando em desespero.
-Canister, seu desgraçado...
Lisa foi tomada por aquele sentimento de que já não havia nada a perder. Sentiu um impulso de socar a grade, gritar por socorro. Mas um último fio de esperança ainda resistia no seu coração e ela agarrou o aparelho para tentar ver algo do outro lado da grade. Foi quando a imagem da tela chamou sua atenção. Havia uma mensagem na tela, com o logo de uma empresa de eletrônicos e uma borda decorativa:
“Rede BTU-877 iniciada. Agora você pode trocar informações com sua equipe em um ambiente intuitivo e totalmente interativo! Veja a sessão ajuda para mais informações. ”
Logo abaixo a mensagem “Ingressar” em um retângulo branco.
Ela tocou no retângulo com um dedo trêmulo e suado. Mensagens surgiram na tela, e um botão piscando no canto inferior direito dava a entender que havia mais conteúdo.
“Sua rede tem dois dispositivos conectados à network /KDF..y563 (Esplendor). Você tem 4 novos logs e 12 notas técnicas. Deseja ver as notas técnicas? ” Ela pressionou SIM em um retângulo branco abaixo da mensagem.
O cheiro estava ficando mais forte, bem como seu desconforto respiratório.
“Atenção equipe no planeta, Rian aqui. Canister tomou o controle da nave. Matou Kenus e tentou me matar. Não sei quais suas intenções nem o que pretende com vocês. Ele cortou o contato com o lander. Se virem essa mensagem, não confiem nele. Estou tentando contornar a situação. ”
Em seguida haviam várias outras mensagens, inclusive algumas ameaçando e amaldiçoando Canister. Subitamente uma mensagem pop up abriu na tela:
“O dispositivo número de série XP1514/4-4895783903 solicita sua localização. >Aceitar< >Recusar<.
Tossindo, Lisa estendeu o dedo para tocar em Aceitar, mas vacilou. E se fosse um truque? Sua mente estava ficando confusa e sua respiração acelerada.... Ela aceitou o envio da localização no momento em que sua visão se estreitava, seus ouvidos zuniam e as extremidades do seu corpo formigavam e adormeciam. Depois ela sentiu paz. Depois, parou de sentir qualquer coisa.
*******
Um silêncio pesado caiu sobre a equipe quando Lucky mostrou as mensagens de Rian através da subrede de manutenção.
O próprio Lucky decidiu quebrar o silêncio:
-A última mensagem de Rian foi a dez minutos. Eu respondi a cinco. Ele disse que estava ferido.
-E a Lisa? Ele falou algo sobre ela? - Questionou Charles.
-Não. Nem quero imaginar o que pode ter acontecido com ela. Canister matou Kenus...
-Se eu encontro aquele maldito! - Disse Duran, apertando o rifle eletro laser com as duas mãos.
Carina foi até o console para ler as mensagens:
-Não podemos fazer mais nada além de esperar. Ah! Chegou alguma coisa!
*******
Lisa abriu os olhos e se viu em uma sala iluminada por luzes padrão da Esplendor. Ela estava deitada sobre um colchonete fino no chão. Sentindo-se ainda fraca, ela olhou em volta e notou que havia duas portas lacradas, opostas uma a outra à sua frente e atrás. A sala estava quase vazia, exceto por uma mochila, umas caixas pequenas e a figura pálida de Rian no final de um rastro de sangue, apoiado sobre a mochila e encostado na parede. Ao seu lado havia um painel elétrico aberto e vários fios expostos, com diversos aparelhos ligados.
O engenheiro segurava frouxamente um aparelho que tinha as mesmas dimensões do que Lisa estava usando para iluminar seu caminho nos dutos. Ele não se moveu mesmo quando a mulher se se pôs em quatro apoios com dificuldade, soltando um gemido.
-Rian... Obrigada. Achei que eu morreria. O desgraçado tentou me sufocar! - Ela falava com voz sôfrega e engatinhava até ele, mas o engenheiro não respondia nem se movia.
As mãos e o rosto de Rian estavam muito brancos, e seus olhos semicerrados refletiam a luz da tela de maneira fosca.
-Oh, não! - Lisa disse, e começou a chorar. Respirou fundo várias vezes, procurando se acalmar. Agora ela estava sozinha numa nave com um assassino, e as únicas pessoas vivas que poderiam ajudá-la não seriam capazes de deixar o planeta sem o auxílio da Esplendor...
Afastando o desespero, ela levantou rapidamente e sentiu a vista escurecer. Teve que apoiar as duas mãos na parede para não cair, sentindo a cabeça doer.
Olhou para baixo e, se recuperando, notou outro aparelho idêntico ao que estava na mão do cadáver caído próximo ao precário curativo sujo de sangue sobre o ferimento
Se curvou um pouco ainda com uma mão na parede e retirou o aparelho das mãos gélidas. Um comprido fio elétrico o ligava a circuitos na parede.
A tela exibia uma espécie de editor de textos rudimentar. As letras brancas exibiam, acima do teclado virtual com pequenas manchas de sangue: “LISA DEASCUL´PE”.
Lisa apertou os lábios e sentiu as lágrimas voltarem ao rosto. Se agachou e fechou os olhos de Rian, agradecendo em silêncio.
Ela cancelou o texto que estava sendo digitado e viu os logs anteriores.
Rian havia conseguido avisar a equipe em na superfície, a qual escrevera várias mensagens seguidas pedindo informações. O penúltimo log, escrito quase quarenta minutos antes, dizia que, por algum milagre, Lisa havia encontrado um BTU nos dutos o que permitiu que o engenheiro, num último esforço, a salvasse. Mas o melhor que conseguira fora isolá-los em uma câmara de descompressão. Canister não os poderia alcançar lá, mas também, pouco poderiam fazer.
O último log escrito por Rian, porém, foi uma mensagem de texto atrapalhado, mas solene em sua despedida. Rian disse que subestimou o ferimento de vibrolâmina. Dava conselhos para a equipe tentar sobreviver com os recursos do planeta, e havia também uma mensagem de boa sorte para Lisa.
Em seguida haviam mensagens da equipe. Perguntavam por ela a vários minutos. Os dedos de Lisa se tornaram frenéticos.
*******
-Aqui! - Disse Carina, digitando no console - É Lisa!
Todos se apertavam em volta do monitor. Carina lia as mensagens em voz alta. Lisa descrevia sua situação, como Canister tentara a matar e que Rian estava morto. Ela não sabia o que fazer.
-A pobre moça está lá sozinha com aquele imbecil. Eu não deveria ter a impedido de vir. Deveria ser eu lá. - Disse Charles.
Duran, mal-humorado por sua impotência frente à situação, retrucou.
-E o que você faria lá, velhote?
-O quê? Pois talvez mais que você, fedelho!
Duran riu de maneira debochada, caminhando para longe do grupo.
-Silêncio! - Disseram em uníssono Lucky e Carina, mas o primeiro preferiu deixar Carina falar, recuando para longe do grupo de volta a sua cadeira, parecendo estar pensando intensamente.
-Controlem-se senhores. O único culpado é o traidor Canister. Tanto faz quem teria vindo ou ficado. Sem a Esplendor, estamos presos aqui!
Duran se voltou e disse:
-E se Lisa sabotasse a nave? Talvez isso obrigasse Canister a pedir ajuda, e alguém descobriria que estamos aqui!
-Uma nave classe Constantin não pode ser sabotada facilmente por uma leiga. -Lucky disse. - Mesmo que ela tentasse, seria mais fácil ela se acidentar, levar um choque! Além disso...
Lucky ativou um holograma sobre seu console de pilotagem.
-Ele nem tentou manobrar esse tempo todo. Ele com certeza sabe que Lisa está presa na câmara de descompressão.
-Isso quer dizer... - Começou Carina, preocupada.
-Que ele está esperando alguém. - Lucky tocou em um quadro a piscar no holograma e um aviso foi exibido:
“Onda taquiônica indicativa de emersão hiperespacial detectada. Distância estimada (±20%): 3 UA. ”
-Podem estar aqui em menos de 20 horas. - Lucky levantou abrindo passagem até o terminal. Ignorou o chat da subrede de manutenção e começou a digitar comandos.
-Talvez... - Carina disse hesitante – Talvez eles não nos abandonem aqui. Talvez nos queiram como reféns, ou alguma coisa.
Kenus resmungou impaciente.
-Duvido! A nave. Querem a nave. Mas gostaria que eles nos içassem, mesmo. Eu carbonizaria todos eles! - E apertou o eletro laser mais uma vez, ignorando o desconforto de Carina.
Charles se aproximou de Lucky.
-Filho, tem alguma chance de Lisa sair de lá? Digo, daquela câmara?
Lucky abrira um compartimento em baixo do console de onde retirou um antiquado manual impresso de manutenção.
-Talvez, doutor. Se eu achar os comandos certos, posso baixar esquemas técnicos da nave pela subrede do BTU e eu poderia dar a ela alguma orientação sobre como abrir a porta. Mas não sei se isso ajudaria. Tento isso porque não sei mais o que eu poderia fazer.
-Faça! E depois me diga se ela pode chegar ao meu quarto.
Lucky olhou para o velho médico.
-Algum último pedido antiquado?
O velho riu.
-Não. Uma última esperança.
Charles tentou ser discreto, mas naquele espaço pequeno, era simplesmente inviável, então disse logo a todos o que tinha em mente.
-Você é mesmo um velho excêntrico, Charles. Sabe que depois dessa você não pisa mais em uma nave espacial, não é?
-Talvez por causa da minha “excentricidade” você ainda volte a pisar naquela ali, em órbita, Lucky!
Carina levantou, juntou as mãos e disse:
-Todos aqui testemunharão a seu favor se for preciso. Sobrevivência justifica muitas coisas.
Como agente de segurança, Kenus odiou o que ouviu, mas esse não era o momento de se preocupar com isso.
-Só me resta torcer pela escritora. - Disse, com toda a sinceridade.
*******
Canister. Ele sabia que ela estava presa lá. Rian escrevera que desabilitou os comandos externos, sensores e sistema de vídeo da câmara, mas com certeza não antes que entrada deles fosse registrada no sistema. O assassino não se importou. Ele saberia se a porta fosse aberta (Mesmo que ela, uma escritora apavorada, soubesse como fazer isso!). Sabia que Lisa estava indefesa e paralisada pelo medo. Ele era forte. Ele tinha uma ferramenta de vibrolâmina e Kenus levara a única arma propriamente dita.
Lisa estava sentada no chão. Cansou de pensar no que poderia fazer e agora divagava em suas lembranças, planos, arrependimentos.
Olhou de novo para a tela e pensou em digitar algo. Mas o quê?
Uma mensagem extensa chegou pelo chat. Eram instruções. Haviam figuras anexadas, e o esboço de um plano.
Lisa ficou arrepiada quando leu. Releu e seu arrepio foi mais forte. Ficou alguns instantes com os olhos fixos na última frase: “Quando você conseguir, pensaremos em como nos tirar daqui, que será a parte mais difícil. ” A escritora respirou fundo e digitou: “vou começar”
Ela puxou o corpo de Rian de cima da mochila o mais respeitosamente que foi capaz. Abriu a mochila e começou a ver se as ferramentas que ela precisaria estavam lá. Depois releu as mensagens e verificou os circuitos. Aquilo era complicado, mas as instruções eram claras.
Ensaiou mentalmente como se suas mãos manipulassem objetos. Repetiu a operação imaginária várias vezes.
Lisa pegou o BTU de Rian, que tinha um fio ligado aos circuitos na parede e digitou os comandos que havia recebido. O aparelho executou uma série de operações e, em segundos, a comporta selada em frente a ela se abriu. Ela agarrou a mochila e correu.
Tinha medo de que o ar estivesse envenenado, mas talvez Canister não tivesse tantos meios assim, mas com certeza ele já devia saber que ela saiu da câmara. Isto era previsto. Restava saber o que ele faria.
O primeiro passo era passar pelo corredor que dava acesso aos alojamentos, o que a colocava bem próximo à ponte de comando, onde Canister estaria, a julgar pelos gráficos de consumo de oxigênio em cada local, acessível pelos dados do BTU.
Ela enfiou a mão na mochila e sacou as primeiras ferramentas que precisaria. Uma ocultada sob o uniforme de bordo, a outra firmemente na mão direita.
Lisa entrou no corredor indo diretamente à câmera de segurança que cobria a área à frente da ponte de comando. Neutralizou o olho eletrônico com um golpe da ferramenta pontiaguda.
Ouviu o som da trava manual da porta da ponte ser destravada. Sem perder tempo largou a ferramenta e agarrou o cilindro que havia ocultado na roupa, apontou para o chão e acionou a válvula, movendo os braços para cobrir uns dois metros quadrados à frente da porta com uma camada semitransparente de gel.
Houve um ruído de atuadores elétricos e ela viu o corpo atlético de Canister se projetar para fora mal a porta começara a se abrir, olhos injetados de determinação assassina e a ameaçadora ferramenta de vibrolâmina à frente na mão enluvada. Lisa virou as costas e disparou em fuga.
O engenheiro traidor avançou agilmente, mas ao pisar no chão aspergido a instantes pelo spray de Lisa, seu pé simplesmente travou, fazendo-o cair apoiando a mão esquerda no chão. Canister deu um grito furioso ao se ver grudado no chão pelos pés, joelho direito e mão esquerda.
Lisa não nutria ilusão de que o brutamontes ficaria preso para sempre. Ela correu ao quarto de Charles. Agora era a hora do seu maior teste. Soltou a mochila no chão e sacou a parafusadeira.
Com mãos trêmulas, mas cheia de vontade, desparafusou e retirou o painel de controle de biometria, localizou os fios certos e ligou ao seu BTU, com os códigos previamente digitados. Acionou o comando e a porta abriu prontamente.
Ela arremessou o painel de leitura de digitais, para dentro do quarto, e aplicou o que restou da cola sintética sobre os conectores e aderiu a própria mochila.
-Isso vai te dar trabalho, “engenheiro”. - Lisa entrou no quarto e fechou a porta por dentro.
O quarto de Charles tinha uma decoração bastante peculiar. Muitos enfeites e quadro antiquados. E o velho gostava de antiguidades. A nave onde ele estava antes tinha quartos maiores, e parte da decoração estava guardada em caixas. Eram elas que ela deveria averiguar.
A tela da câmera externa da porta do quarto estava ligada, e enquanto ela revirava as caixas de Charles, ela viu Canister se chegar sem as botas, com a luva esquerda uma grande parte do tecido da perna direita da calça faltando. Viu sua cara se contorcer de raiva ao examinar o arranjo que ela fizera no lugar do painel biométrico. A tela mostrou a vibrolâmina se aproximar rapidamente e depois a mensagem “erro na câmera”.
Canister trabalhava agilmente do lado de fora, com intenção calculada e determinação. Lisa abria as caixas de maneira febril, enérgica.
A porta emitiu um estalo seco no mesmo instante em que ela encontrou a moldura grossa com os artefatos atrás do mostrador. Ela arremessou no chão, fazendo a moldura de madeira se abrir e quebrando o vidro. Dois cacos ficaram separados por apenas milímetros no chão após o impacto, exibindo as metades de uma logomarca redonda com um S e um W entrelaçados artisticamente.
Ela sacudiu o vidro do objeto principal, pressionou um mecanismo, liberando lateralmente um cilindro vazado com seis câmaras. Ela pegou os pequenos estojos de ponta ogival e os inseriu o mais rápido que pode nos espaços, como tinha ensaiado mentalmente.
A porta começou a abrir lentamente, centímetro a centímetro. Pela sombra de Canister no chão, aparentemente ele estava fazendo um movimento rítmico, girando uma manivela, ela imaginou.
Preenchidas as câmaras, ela se pôs de pé, caminhou até a porta com um ar decidido e pôs a mão esquerda no leitor. A porta se abriu imediatamente, fazendo a manivela de Canister girar rápido e machucar sua mão.
Um segundo de espanto e dor, e Canister sacou a vibrolâmina, mas parou incrédulo.
O estampido foi assustador, e o recuo do disparo sacudiu o braço de Lisa, mas ela já havia se decidido a sobreviver. Ela puxou o gatilho de novo, e mais uma vez mesmo quando Canister já havia caído. Só parou quando os seis estojos estavam deflagrados e ela ensurdecida demais para escutar os estalos do mecanismo ou mesmo seu próprio grito cheio de liberação e euforia. Triunfara!
Com uma campainha horrível nos ouvidos, ela olhou durante algum tempo o corpo se esvaindo em sangue. Ela se preparou para correr, mas se voltou e pegou rapidamente a vibrolâmina. Se afastou alguns metros, para ver se Canister se movia. Não.
Correu até a ponte de comando, que estava aberta. Passou pisando cuidadosamente sobre as botas presas na camada adesiva.
Soltou a vibrolâmina no chão, que ficou cravada na vertical onde ela soltou. Caminhou até o console de comunicação, endireitou o corpo, respirando fundo para se livrar da tensão. Parou por instantes para digerir seu triunfo, e então se inclinou sobre o console para restabelecer o contato com a equipe de superfície.
Um sinal foi emitido pelo alto-falante no console de Lucky, fazendo todos dentro do lander se levantarem se entreolhando cheios de expectativa.
-Equipe de superfície – Soou a voz feminina, firme e determinada – Estou pronta para a parte difícil!